Reality shows são uma mentira – e Jury Duty é uma muito engraçada

Cena da série Jury Duty.
Depois de arrancar risadas, Jury Duty abocanhou quatro indicações ao Emmy (Foto: Prime Video)

Vitória Gomez

12 jurados participam de um julgamento relativamente simples nos Estados Unidos. Um funcionário versus uma empregadora que o acusa de destruir o patrimônio de sua empresa. Por lá, o júri é formado apenas por civis e é dever constitucional de cada um comparecer quando for convocado – então por que não filmar o processo? É assim que Ronald Gladden acaba entre o grupo de 12 pessoas da vez, com a promessa de participar de um documentário sobre esse rito da justiça no país. O que ele não sabe é que ele é o único que está lá com esse propósito: todo o resto, incluindo os outros 11 jurados, os agentes federais, o juiz, a acusadora e até o réu são uma mera armação para emboscá-lo nas situações mais constrangedoras possíveis.

Jury Duty já deixa o público ciente da grande pegadinha acontecendo ali desde o primeiro momento. Apesar de algo realmente estar sendo gravado naquela corte, não é nada parecido com um documentário. No entanto, ao invés de se escorar em um mero programa de chacotas que caçoa do protagonista desavisado, a série cresce justamente por causa da humanidade de Ronald. No estilo mockumentary, a estrela da produção (que sequer sabe que é o centro das atenções) encara o dia a dia do julgamento com a certeza de que tudo está sendo registrado, mas ignorante às reais intenções das câmeras.

Cena da série Jury Duty.
Jury Duty foi produzido pela dupla Lee Eisenberg e Gene Stupnitsky, os responsáveis por The Office (Foto: Prime Video)

Os mockumentaries não são uma novidade no ramo da comédia. O falso documentário já é conhecido de grandes produções, como The Office, Modern Family e What We Do in the Shadows, e mostram como a presença escancarada de uma câmera, a falsa sensação de participação e a dinâmica de depoimentos pode envolver o espectador e fazê-lo adentrar uma realidade. Em um cenário tão rígido como o julgamento de um crime, então, a risada é certa. 

Diferentemente das produções anteriores, que tinham no jogo de montagem e nas sacadas cômicas o seu auge, o trunfo de Na Mira do Júri (na versão traduzida) é seu protagonista. Ronald Gladden viu o anúncio da vaga para o documentário em um site de classificados e aceitou a proposta. Afinal, bastava participar de um julgamento simples e dar seu depoimento do processo. Com um elenco escolhido a dedo para viver personagens assumidamente caricatos, o charme dos episódios vem do contraste entre a naturalidade de Ron e as personalidades escrachadas de seus companheiros de júri, que não deixam dúvidas de que tudo aquilo é roteirizado para se tornar uma grande piada.

Cena da série Jury Duty.
Depois do sucesso da série, Ronald Gladden assinou um contrato com a Amazon MGM Studios para participar em outras produções do estúdio (Foto: Prime Video)

Os pés no chão de Gladden é que conquistam. Situações que poderiam rapidamente dar errado e se tornar odiosas de assistir viram um poço de doçura – e ainda mais comédia – graças às reações do jurado. Todd (David Brown), por exemplo, é um nerd obcecado por invenções e insiste em apresentá-las na hora errada, como levar uma cadeira vestível ao tribunal. Apesar dos olhares e risadas desconfortáveis de Ron e do resto da equipe de atores, o protagonista opta por acolhê-lo e incentivá-lo em suas criações sempre que possível.

Sem pesar a mão, o roteiro escrito a múltiplas mãos fabrica situações absurdas, certos de que Gladden fará jus à expectativa. Não por menos, o trabalho foi digno da indicação à categoria de Melhor Roteiro em Série de Comédia no Emmy – nesse caso, especificamente pelo episódio Ineffective Assistance, escrito por Mekki Leeper, que também atua na obra. A condução conta com a bondade, sabendo que Ron não caçoará de Noah (Leeper) quando o jovem entra em negação sobre estar sendo traído e o ajuda a lidar com Jeannie (Edy Modica), uma colega jurada que dá em cima dele; acalma Ken (Ron Song) sobre um dívida de jogo na casa dos milhares; e aconselha Ross (Ross Kimball) sobre seu divórcio. Mesmo que nada disso seja real, o personagem não sabe disso.

Cena da série Jury Duty.
Na categoria de atuação, James Marsden compete com Anthony Carrigan e Henry Winkler, de Barry; Phil Dunster e Brett Goldstein, de Ted Lasso; Ebon Moss-Bachrach de The Bear; e Tyler James Williams de Abbott Elementary (Foto: Prime Video)

Alguns dos melhores momentos dos oitos episódios acontecem entre o protagonista e James Marsden – que, inclusive, foi mencionado na categoria de Melhor Ator Coadjuvante em Série de Comédia do Oscar da TV ao interpretar ele mesmo. Quando a celebridade entra em cena (a princípio sem ser reconhecido) e é convocado para participar como jurado reserva, apesar das tentativas falhas de usar a fama para livrá-lo do dever, ele se mostra egocêntrico e desesperado por atenção. Desde momentos naturais, como Ron perguntando se ele havia atuado nos filmes de X-Men e lembrando que o live-action de Sonic não foi dos melhores, até os mais roteirizados, como o jurado tendo que levar a culpa por um vaso entupido do ator, as interações mostram dois personagens extremamente opostos e que rendem as reações mais improváveis em todos os capítulos.

É também no aprofundamento das relações de Gladden com o restante do elenco de atores que ele deixa de ser unilateral. Não é surpresa que reality shows se formam na base da colagem de filmagens, recortando momentos indesejados e priorizando os que servem ao propósito do produto final. Mesmo que a desconfiança não deixe de existir em Jury Duty – o que não foi mostrado? Ron realmente não sabia que tudo era armado? -, a série se dedica aos momentos em que a estrela da produção quebra expectativas, revela seus reais pensamentos acerca dos colegas (inclusive Marsden) e admite fraqueza diante da posição de liderança na qual foi colocado. Unidos, as peças que compõem o tabuleiro de Na Mira do Júri foram reconhecidos na indicação como Melhor Elenco em Série de Comédia no Emmys.

E para não deixar dúvidas acerca dos seus méritos e sanar a curiosidade daqueles que duvidam da veracidade das pegadinhas, o episódio final, The Veredict, mostra como Na Mira do Júri confeccionou o que vemos em cena. O posicionamento de câmeras milimetricamente ensaiado, as improvisações do elenco e as reações dos próprios atores quando algo dá errado provam que a comédia vem justamente da imprevisibilidade das situações cotidianas. Repetidamente, a série prova desse inusitado.

Cena da série Jury Duty.
Na categoria de Melhor Série de Comédia, Jury Duty compete com The Bear, The Marvelous Mrs. Maisel, Wandinha, Abbott Elementary, Only Murders In The Building, Ted Lasso e Barry (Foto: Prime Video)

Se a ganância dos streamings pode tirar a essência da produção com uma continuação, a primeira temporada de Jury Duty surge como um respiro de originalidade. A série também foi reconhecida no Emmy na categoria de Melhor Série de Comédia, uma das mais notáveis da TV, e deve rezar por um milagre se quiser levar a melhor. Ainda assim, entre os oito nomes da modalidade este ano, o mockumentary conquista pelo inusitado e pela singularidade de seu protagonista, mostra que, se os realities shows não passam de uma grande mentira, essa é a mais engraçada delas.

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