The Black Keys volta ao lar com Delta Kream

Capa do CD Delta Kream. Apresenta o título da banda The Black Keys acima. Em uma fotografia quadrada, há um carro branco estacionado no centro, em frente a uma loja chamada Delta Kream, que possui dois símbolos da Coca-Cola ao lado do nome. O chão é de terra batida.
Homenageando suas principais influências, o álbum é o 10º na carreira do duo (Foto: Nonesuch Records)

Bruno Andrade

Parece ser comum vislumbrar nos artistas momentos em que avaliam seus projetos fracassados. Esse costuma ser o enredo de filmes B, geralmente cômicos, sobre musicistas falidos que criam projetos para superar a si mesmos. Não é o caso do The Black Keys, que chega ao seu 10º álbum de estúdio olhando para o passado, sem motivos para se envergonhar. Como homenagem aos artistas que influenciaram a banda, Delta Kream (2021) traz covers de grandes nomes do blues como Junior Kimbrough e R.L. Burnside, adaptando a essência do duo composto por Dan Auerbach e Patrick Carney em canções clássicas na história do gênero.

A música de The Black Keys carrega a forte influência que os artistas receberam do blues. Mesmo em seus projetos mais ambiciosos — Brothers (2010) e El Camino (2011), ambos sucesso de público e crítica —, a dupla fez questão de marcar suas origens. Com 20 anos de carreira, Auerbach e Carney parecem parar e contemplar a jornada que os alçou ao topo das paradas — vencendo quatro vezes o Grammy, uma delas como Melhor Álbum de Rock por El Camino, que também foi indicado a Álbum do Ano na edição de 2013 da premiação — enquanto tocam aquilo que ouviam na juventude.

A capa de Delta Kream apresenta uma fotografia de William Eggleston, tirada nos anos 1970, e o título do álbum é uma referência a região Delta do rio Mississipi, conhecida como a região que deu origem ao blues norte-americano, no final dos anos 1920, e por isso também conhecido como delta blues. Nomes relevantes surgiram nesse meio, como John Lee Hooker, Bessie Smith e a “Mãe do BluesGertrude Ma Rainey. O gênero começou a ganhar força quando as gravadoras perceberam seu potencial comercial, ainda sob o cenário violento de racismo e segregação que a população negra enfrentava nos Estados Unidos.

Foto de Patrick Carney e Dan Auerbach. Os dois são homens brancos, e Patrick é mais alto que Dan. Patrick tem cabelo curto e liso de cor preta, está com as duas mãos no bolso da calça, usa um óculos com armação preta, uma jaqueta de couro preta, uma camisa xadrez azul e roxa e uma camiseta preta. Dan é loiro, possui cabelo curto e liso, pouca barba, e está com uma camisa verde. Os dois estão encostados em uma parede cor vinho.
“Essas músicas ainda são tão importantes para nós hoje quanto eram no primeiro dia em que Pat e eu pegamos nossos instrumentos e começamos a tocar juntos”, contou Dan Auerbach (Foto: Reprodução)

Não é a primeira vez que os The Black Keys decidem homenagear suas influências. Chulahoma (2006) é um álbum tributo a Junior Kimbrough, e no álbum de estreia do duo, The Big Come Up (2002), há um cover de She Said, She Said, dos Beatles. Mas a pequena dupla originada em Akron, que teve seu primeiro álbum gravado no porão de Carney, atingiu os anos de ouro em uma época em que hamburguerias e cervejas artesanais estavam na moda. O estilo da banda — cru, rústico, e até barulhento — cabia como uma luva nessa nova era. O som de blues foi apropriado, à sua maneira, e transformado em algo mais palatável. As músicas foram convertidas em trilhas sonoras de filmes, seriados e transitavam por campanhas publicitárias. Eles eram onipresentes, e naturalmente ficaram cansados. 

Após o lançamento de Turn Blue (2014), a banda entrou em um hiato que só terminaria em 2019. Muitos sites replicaram teorias esquisitas sobre o fim da banda, mas Patrick Carney confirmou em entrevista que só precisavam de um tempo. É fato que os dois integrantes não pararam de pensar em música, envolvendo-se em projetos paralelos. O blues polido da banda, que deu as caras principalmente em Brothers, abriu caminho para um som mais psicodélico em Turn Blue, sobretudo pela produção de Danger Mouse — produtor de Demon Days (2005), do Gorillaz, e The Getaway (2016), do Red Hot Chili Peppers. Quando Let’s Rock (2019) surgiu, sem a produção de Mouse, soou exatamente como deveria soar: um blues rock valvulado. 

Foto de Patrick Carney, Eric Deaton, Kenny Brown e Dan Auberbach tocando em um bar. Os quatro são homens brancos. Patrick está tocando bateria, usa um óculos com armação preta, e veste uma camisa de manga curta florida, nas cores azul e laranja.Eric Deaton veste uma camisa xadrez preta e cinza, está tocando o instrumento baixo e possui cabelos loiros compridos e barba; também utiliza óculos com armação preta. Kenny Brown está sentado em um banco de madeira, toca uma guitarra preta, veste botas na cor marrom, calça jeans azul, camisa azul aberta e uma camiseta branca por baixo. Ele também utiliza um chapéu de rodeio na cor preta. Auerbach toca uma guitarra de cor branca, preta e laranja, veste calça preta, camiseta branca e uma jaqueta jeans de cor azul. Ele possui barba e cabelos loiros, e está sentado em um banco. Ao fundo há uma parede branca com diversas fotos coladas e alguns quadros pendurados.
Da esquerda para a direita, Patrick Carney, Eric Deaton, Kenny Brown e Dan Auerbach (Foto: Ryan Nadzam)

Ainda sob os efeitos do trabalho de 2019, o duo iniciou de forma despojada a gravação do próximo projeto. Delta Kream foi gravado durante uma pausa na turnê de Let’s Rock, ocorrendo em duas tardes e totalizando uma sessão de dez horas. O álbum possui um tom de nostalgia, não apenas pelo aceno ao passado, mas por suceder um hiato — as gravações ocorreram sob o ar do penúltimo álbum, transmitindo a reconciliação da dupla com o projeto. A banda coloca nos covers sua marca, adaptando à reconhecível guitarra distorcida de Auerbach e à bateria marcada de Carney os clássicos originalmente mais próximos do country. As versões são expansivas, ruidosas, e mais pesadas, proporcionando a levada blues rock. Gravado à moda das jams sessions, Delta Kream traz participações de Eric Deaton e Kenny Brown, famoso por sua técnica de slide e por ter integrado o grupo que tocou com R.L. Burnside.

O CD se inicia com uma versão de Crawling Kingsnake, single do disco, composta por John Lee Hooker em 1949, e também famosa pela versão de Junior Kimbrough de 1994. Hooker é conhecido no gênero por converter em canções a dura realidade segregacionista dos Estados Unidos — como James Baldwin fez em sua literatura —, especialmente no sul do país, ao mesmo tempo em que criou peças artísticas únicas. 

O cantor não utilizava suas canções para entreter, mas para alertar e informar a sociedade sobre a tragédia racial vivenciada pela população negra. Junior Kimbrough — a principal influência dos Black Keys — ajudou a popularizar o subgênero hill country blues, e não era conhecido até seus 60 anos. Como ocorreu com vários nomes do blues, Kimbrough tornou-se famoso no meio após sua morte, e não à toa os The Black Keys dedicaram um CD totalmente ao músico.

Quando se fala em blues, naturalmente se lembra do ar emancipador que o gênero propagou, e esse movimento ocorre em parte pelo que não foi gravado. O blues se consolidou por passar de boca em boca, ser transmitido pelas conversas entre amigos, e por transcender o valor moral que uma sociedade racista impunha a uma parcela da sociedade. Por essa razão, é possível visualizar como a mesma música tem caminhos diferentes tratando-se de artistas diferentes — eles deixaram sua marca. 

Os Black Keys nunca foram adeptos de mudanças radicais, e na sua versão de Crawling Kingsnake encontramos mais dos gestos que consagraram a banda. A bem da verdade, encontramos o duo em seu estado mais vulnerável, abrindo caminho diante daquilo que consolidou seu estilo. “Alguém me disse ontem: ‘Isso me lembra o velho Black Keys.’ E eu tipo ‘não, não é, porque nós não éramos tão bons’”, disse Dan Auerbach em entrevista.

Foto de Kenny Brown e Dan Auerbach. Os dois são homens brancos e estão em um estúdio, com guitarras penduradas ao fundo. Kenny é mais velho que Dan, está com fones de ouvido na cor preta, camisa xadrez vermelha, branca e preta, e toca uma guitarra preta. Está usando uma calça jeans clara e botas na cor marrom. Dan está com fones de ouvido na cor preta, uma camisa verde, tocando uma guitarra branca, laranja e preta, com uma maleta de pedais aberta no chão. Ele usa uma calça jeans escura e botas na cor marrom. Ambos estão sentados em bancos da cor marrom.
Kenny Brown e Dan Auerbach durante as gravações de Delta Kream (Foto: Alysse Gafkjen)

Poor Boy a Long Way from Home, de R.L. Burnside, ganha uma versão mais lenta com a banda, assim como Louise, de Mississippi Fred McDowell. Poor Boy — como a maioria das outras músicas do disco — parece sintetizar a ideia de continuidade do blues presente em todo o álbum, pois, em Delta Kream, a banda fez versões de músicas que também ficaram conhecidas por outras interpretações. A versão original de Poor Boy a Long Way from Home é desconhecida, mas trata-se de uma canção tradicional do blues, com versões de Jeff Buckley, John Fahey, e gravações datadas de 1927.

A sétima faixa do disco, Do the Romp, também foi gravada em The Big Come Up, e grafada pelo The Black Keys como Do the Rump. As diferenças não ficam somente nas vogais. A versão mais recente do cover soa mais madura e despretensiosa, um relaxamento de quem consolidou seu nome com diversos hits nas paradas de sucesso, e que agora grava com uma das referências do gênero sentado bem ao lado. Auerbach deixa de lado a voz rosnada, Carney traz uma bateria com mais groove, mas o grande diferencial está na sujeira controlada das duas guitarras, que em certo momento parecem tocar versões paralelas da mesma música.

Na foto, Dan Auerbach, um homem branco e loiro, veste uma camiseta cinza e calça creme, enquanto toca uma guitarra preta e branca sentado em um balde amarelo. Ao seu lado estão um amplificador preto e dois homens negros; um toca outra guitarra preta e outro toca bateria, cujo bumbo possui cor azul e a caixa da bateria possui cor creme. Ambos vestem boné preto, camiseta branca e calça jeans clara. Eles estão em um quintal aberto, em frente à uma casa. Um homem negro de camiseta branca está ao fundo em uma churrasqueira, enquanto uma mulher negra está sentada em frente a porta da casa e outra mulher negra está de pé entre a porta.
Registro da viagem de Dan Auerbach (à esquerda) no final dos anos 1990, em busca de suas influências [Foto: Aaron Blower]
Em 1996, Dan Auerbach viajou com o pai pelo interior do país, em uma espécie de peregrinação em busca de suas influências. Começaram em Akron, depois Nashville, e por fim Memphis. Auerbach foi direto para o pub de Junior Kimbrough — que já estava debilitado e no fim de sua vida —, e foi informado pelo filho do músico, Kingney, que ele não estaria presente. Davy, outro dos filhos de Kimbrough, poderia comparecer e tocar algumas músicas, mas precisaria de um dinheiro emprestado para sair da cadeia. O pai de Auerbach arrumou o dinheiro, e com Garry Burnside, filho de R.L., no baixo, todos tocaram juntos. No fim da noite, o dinheiro foi devolvido aos Auerbach, devido ao lucro inesperado da venda de cervejas e pelo movimento que a jam session trouxe ao pub. Como na viagem de Auerbach, a banda revisita nas onze faixas do disco os artistas que fizeram suas cabeças, e ao mesmo tempo se veem transformados nas novas referências grisalhas. Depois da recepção morna do antecessor, Delta Kream mostra que os The Black Keys ainda são aqueles dois caras de Ohio.

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