Entre o vírus e o verme, morre aos poucos um país

Capa do livro Entre o vírus e o verme se esgueiram poemas. Fotografia quadrada. Ao fundo, uma parede de tijolos expostos, de cor cinza, apoia o livro. Na parte superior da capa, pode-se ler “Entre o vírus e o verme se esgueiram poemas” em letras tortas, de cor verde claro, com exceção de “vírus” e “verme”, grafados em branco. No centro da capa, sobre um fundo verde escuro, há um losango verde claro com a imagem do novo coronavírus, fazendo alusão à bandeira do Brasil. No canto inferior esquerdo da capa, lê-se “André Plez” em letras brancas. Sob o livro, há um apoio de madeira.
Novo livro de André Plez, Entre o vírus e o verme se esgueiram poemas aborda temas urgentes com uma lírica que se assume engajada (Foto: Editora Penalux)

Eduardo Rota Hilário

Um Brasil à deriva, sem controle sobre a pandemia de covid-19 e diariamente deturpado pelo desgoverno de Jair Bolsonaro: esse é o cenário que ambienta o novo livro de André Plez. Lançado em 2021 pela Editora Penalux, Entre o vírus e o verme se esgueiram poemas expõe, já na capa, aqueles que serão dois verdadeiros inimigos do país. É justamente nesse primeiro contato imagético que nos deparamos com uma bandeira nacional sem o clássico céu estrelado, coberto pelo tenebroso novo coronavírus, enquanto vestígios de vermes, metáfora para o abominável Presidente da República, emergem do fundo esverdeado de nosso maior símbolo pátrio.

Antes de adentrar os textos, o leitor deve ter consciência de que está diante de uma lírica declaradamente engajada. “Versos em fúria”, como classifica o poeta Marcio Dal Rio no prefácio da obra, não há isenção nessa literatura que denuncia e cutuca nossas feridas mais recentes. Desde entre sombras e sóis, poema que abre o livro, fixa-se na memória a imagem de um país decadente. “Pobre de nós – os que sonham”, lamenta um verso: será preciso conhecer a fundo o momento presente para então “resgatar nossa consciência crítica para suportar e combater a opressão que nos cerca”, dever defendido por Plez à Revista Literária da Lusofonia.

Se uma das funções da arte é, hoje, a militância, as criações que a assumem ou se destacam pela preocupação estética, ou correm o risco de cair em discursos vazios. No caso da poesia de André Plez, o lapidar cauteloso do texto é nítido. Seja pela estrofe única, sem espaçamento entre palavras, de #ELESIM, estrutura que explicita que os preconceitos de Bolsonaro eram frequentes e óbvios, ou pelos flertes com o concretismo de alguns poemas sem título, o autor não deixa aspectos formais a desejar. Mesmo em versos livres, tal qual os de aspas, elementos como o diálogo entre gramática e literatura confirmam um poeta consciente do que e de como escreve.

“as aspas sangram

como se torturadas fossem

em uma cruz pós-calvário

que ostenta o nome do salvador

para celebrar a tortura”

Preocupado com as atualidades, seria injusto dizer que Entre o vírus e o verme se esgueiram poemas ignora o passado, principalmente os períodos mais recentes. Nos versos de 2016, por exemplo, a indignação com “o golpe” que “pariu um golpe maior que o golpe” faz clara alusão a tudo que Dilma Rousseff, então presidenta do país, enfrentou naquele ano. Já em o nove dedos, o poeta redime o ex-presidente Lula das acusações de corrupção que vem sofrendo nos últimos tempos. Dessa maneira, há em todo o livro a sensação de que os noticiários de ontem e hoje foram poetizados, sempre sob a ótica de posicionamentos críticos, progressistas e transparentes.

Apesar de toda dor, sofrimento e náusea que rondam a obra, a ironia e o humor também encontram, em algumas páginas, espaço como ferramenta de luta. Melhor ilustração disso é o poema diálogo sensato, que simula uma conversa entre um emissor com noções básicas de ciência, referindo-se à seleção natural de Charles Darwin, e um receptor que só entende deseleção canarinho. No fim da prosa, o emissor prefere não corrigir o receptor, pois sabe que não o convencerá de algo importante, como tomar vacina. Ele apenas deixa a teoria de Darwin se desenvolver na prática.

Fotografia quadrada, em preto e branco, do escritor André Plez. Ele ocupa quase toda a foto, principalmente o centro e o canto inferior esquerdo. André é um homem branco, de cabelos longos e barba. Ele olha para a câmera com seriedade. Ao fundo, há uma parede onde vemos parte de um retrato de uma menina.
Sempre atento ao conteúdo e aos aspectos formais do texto, André Plez é eclético ao juntar versos livres, soneto, poemas de inspiração concreta e outros tipos de escrita em um mesmo livro (Foto: André Plez)

Por outro lado, há momentos no livro em que nos deparamos com episódios que seriam cômicos, quer não fossem trágicos e, até certo ponto, reais. É o caso de releitura de Renoir, texto que dialoga com o quadro Rosa e azul – As meninas Cahen d’Anvers, do pintor francês Pierre-Auguste Renoir. Nos versos, as principais figuras dessa obra de arte aparecem com vestidos cor-de-rosa, sem espaço para roupas femininas azuis, numa espécie de aceitação das normas de gênero que a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, sonhava em impor aos brasileiros em 2019. Diante desse horror, versa o poeta: “assim persiste a nova tela/(que exala podridão)/pintada toda de rosa”

Pode-se imaginar que, diante de um cenário tão caótico, com uma nação aflita e desiludida, nem mesmo o eu-lírico sai intacto do que registra. Na verdade, pouco a pouco, ele morre. Esmaga-se “ante as trevas/de infecundas e malditas palavras/que deve ouvir e relatar e gravar e poetar”, como confessa um dos textos sem título, de influência concreta. 

Identificados com o desgosto daquele que tudo narra, sofremos um pouco da mesma morte lenta no respiro de cada página virada. Algumas vezes, até criamos nossas próprias obras a partir daquilo que foi escrito. Prova disso são as releituras audiovisuais de trechos do livro desenvolvidas pelo grupo mocoquense de Cinema e Teatro TPM&Cinema, conterrâneo de André Plez, em um diálogo inevitável entre diferentes expressões artísticas.

De maneira geral, Entre o vírus e o verme se esgueiram poemas é um livro de pouca esperança. No entanto, seria um erro afirmar que esse sentimento é totalmente desprezado pelo autor. Em aos idólatras, uma rosa!, primeiro sinal mais sólido de que bons tempos um dia retornarão, o poeta faz referência explícita a Carlos Drummond de Andrade. Isso porque, quando a “rosa drummondiana irrompe o asfalto”, temos certeza de que “um dia/brindaremos/nossa face/ilesa”

Não sem cicatrizes, como também indica esse poema. Ou como lucidamente lembra o penúltimo, Marcas: “o poema carrega/uma cicatriz/de quem diz” – traduzindo uma realidade da obra inteira. Como lição, aprendemos que é preciso enxergar antes de tudo o caos, para que possamos no mínimo desejar mudanças e, assim, alimentar qualquer espírito esperançoso.

“um dia, afinal,

seremos nós de novo

porém

intubados”

Quem lê esse livro na efervescência dos acontecimentos nacionais certamente não chegará a um fim delimitado. Continuará lendo ou dando espiadas em várias páginas, na tentativa de absorver aos poucos conteúdos densos, de numerosas nuances. Urgente, porque é uma resposta à barbárie a que assistimos, essa obra afasta toda zona de conforto possível e provoca-nos o “nó na garganta” anunciado no poema máscara

Pode ser que não se torne um clássico, já que a arte enviesada nem sempre é amplamente aceita e compreendida. Pode ser que também seja alertado pelo público por usar, de maneira pejorativa, termos como “demência”, vício de linguagem cada vez mais apontado como capacitista. Mas uma coisa é certa: estamos diante de um belo e caprichoso documento histórico, que capta muito bem, com exatidão e crítica, o momento que atravessamos hoje.         

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