A Voz Suprema do Blues é a despedida de um rei

Na imagem, vê-se os dois protagonistas, o trompetista Levee (Chadwick Boseman) e a cantora Ma Rainey (Viola Davis), dividindo os holofotes do palco num concerto de blues.
O longa foi gravado enquanto o astro de Pantera Negra lutava contra um câncer agressivo (Foto: Reprodução)

Vanessa Marques

“O blues é uma forma visceral de rebeldia.” Com raízes africanas, o ritmo melancólico e potente do blues nasceu entre os escravos do sul dos Estados Unidos, a partir do século XIX. Ao longo das margens do Rio Mississipi, os homens e mulheres escravizados cantavam melodias lentas ou soturnas enquanto cumpriam o percurso comum do trabalho árduo no campo. Este legado da cultura negra é honrado em A Voz Suprema do Blues, último filme de Chadwick Boseman, falecido precocemente em 2020, que divide cena com a memorável Viola Davis.

Baseado numa peça homônima de August Wilson (Um Limite Entre Nós), a produção original da Netflix traz Davis na pele de Ma Rainey, a ousada “Mãe do Blues”, em uma tarde quente de ensaio na Chicago dos anos 20. Boseman dá vida ao trompetista Levee, jovem ambicioso e temperamental, que praticamente rouba os holofotes na trama. Envolto num caráter teatral, o drama é muito mais uma reflexão lúcida acerca do racismo e das injustiças sociais no período, do que uma biografia de Rainey. 

Em breve prelúdio, o longa dirigido por George C. Wolfe perpassa a Grande Migração, evento histórico marcado pelo deslocamento da comunidade negra do sul agrário (e sob o jugo das leis de Jim Crow) para o norte do país. Após o fenômeno, motivado por uma campanha de promessas oportunas de emprego, vozes poderosas do blues chegaram aos palcos de Nova York e Chicago. Não obstante, os preconceitos de raça e a exploração laboral permaneceram arraigados ao cotidiano do povo afro-americano. Apesar do progresso nos direitos civis, o intrincado cenário social enfrentado pelas figuras de Ma e da banda, numa indústria musical comandada por homens brancos, revela-se brutalmente contemporâneo (dado o caso George Floyd e os protestos antirracistas).

A cantora, que não escondia a sua bissexualidade, fora dos padrões da época, tinha a voz como a única moeda de troca. De fato, o talento criativo era o seu valor, o qual ela soube utilizar para impor mudanças pontuais na velha estrutura de poder. É preciso analisar com a devida atenção para constatar que os desmandos de Ma que exige um refrigerante para começar a gravar o disco e coloca o sobrinho para tocar junto aos instrumentistas não são um mero capricho da pretensa estrela.

Davis, que hoje só aceita papéis que lhe tragam orgulho e pertencimento, revive uma mulher apagada da história. Uma estrela cuja aparência altiva e corpulenta inspirou a geração Bessie Smith e abriu caminho para demais mulheres pretas na música. Rainey assim o fez com personalidade e nenhuma subserviência aos produtores, pois fora do estúdio, ela continuava a vivenciar os estigmas de cor e gênero.

A imagem mostra um ensaio de Ma Rainey (Viola Davis), ao centro, com a sua banda de instrumentistas. Da esquerda para a direita: Levee (Chadwick Boseman), Cutler (Colman Domingo), Slow Drag (Michael Potts) e Toledo (Glynn Turman).
Inspirado no teatro, o filme mantém o número super reduzido de cenários e direciona o foco na atuação: o que não agradou muito (Foto: Reprodução)

Boseman entregou monólogos reflexivos e angustiados em sua performance final no cinema. Levee divaga sobre a infância no Alabama, contando o trágico estupro da mãe, perpetrado por salteadores brancos. Em paralelo, a obsessão do personagem com o par de sapatos novos, que aparenta certa neurose, evoca uma antiga tradição do passado escravocrata. Quando emancipados, os negros livres passavam a usar calçados, a fim de apontar um símbolo nítido de liberdade e afirmação social. Levee atribui aos itens igual valor agregado. Assim, o artista tenta fisgar o seu espaço, ciente do brilho que possui, ao passo que uma emblemática porta sem saída, fechada e circunspecta — talvez mais um recurso visual por aí  — o intriga.

Nesse contexto, o eterno rei de Wakanda compôs uma despedida reservada e enérgica. Chadwick, embora não esteja mais presente em vida, tornou-se candidato para a temporada de premiações, incluindo homenagens póstumas no Oscar. A dupla com Viola Davis, já ganhadora de uma merecida estatueta por Um Limite Entre Nós, consagrou a parceria mais brilhante do longa. Destacamento Blood, do diretor Spike Lee, também promete uma segunda indicação para o intérprete de T’Challa, na categoria Ator Coadjuvante.

Carregado de alegorias, o mérito de Ma Rainey’s Black Bottom não parte tanto do roteiro de Rubens Santiago-Hudson, que até provoca certa estranheza no espectador desavisado, mas provém da entrega intensa dos atores, do arrojo simbólico e da realidade social que o circunda. A Voz Suprema do Blues contém pouco de extraordinário ou arrebatador, porém, na medida certa, é bem-sucedido.

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