O Papai chegou: em Daddy’s Home, Annie Clark toma controle da própria narrativa

Capa do álbum Daddy’s Home, de St. Vincent. Imagem quadrada com bordas laterais pretas. Ao centro, está St. Vincent como Papai, de peruca loira chanel, plumas brancas, vestido de cetim e meia 4/8. A artista está sentada sobre uma poltrona e ao fundo podemos ver um cômodo com papel de parede florido desgastado. A fotografia possui filtro sépia, comum de câmeras analógicas. No canto superior direito, é possível ler o título do álbum Daddy’s Home, em amarelo com bordas verdes. A tipografia do título é arredondada e comum da década de 70.
Presa em casa em meio a uma pandemia, St. Vincent, vulgo Annie Clark, retorna como Papai e nos convida a viajar através do espaço-tempo numa aventura psicodélica sob o Sol escaldante (Foto: Loma Vista Recordings)

Ayra Mori

Conhecida por sua habilidade bowiana de se metamorfosear, St. Vincent retorna em seu sexto álbum solo como nunca, anunciando: o Papai chegou. Da assexual Pollyannaa líder de culto de um futuro próximo” a “dominatrix em instituição psiquiátrica”, Annie Clark assume em Daddy’s Home uma nova persona a quem chama de Papai. De peruca loira, plumas extravagantes e plataformas altas – claramente inspirados em Candy Darling, musa de Andy Warhol e ícone trans –, Clark se entrega inteiramente à temática e sonoridade setentista, mesclando ficção à autobiografia.

Daddy’s Home é com certeza o registro mais confessional da cantora, compositora, produtora e multi-instrumentista norte-americana. Nele, ela toma controle da narrativa de um drama familiar, agora, sob sua perspectiva. “Eu queria contar isso não como uma grande fofoca, mas como uma história humana, com amor e compaixão”, diz Annie Clark quanto a prisão do pai, sentenciado a 12 anos de cárcere por fraude de 43 milhões de dólares em 2010.

Após a soltura do patriarca em 2019, a artista inicia o projeto numa reflexão íntima sobre a relação pai-filha, através de uma lente espaço-temporal que confunde memórias e interliga pretérito ao presente. Somos transportados para a década de 70, um mundo pós-idealismo hippie e precursor da disco music, onde rock, blues e jazz flertam entre si. E St. Vincent, como um dos principais nomes da indústria musical contemporânea no que diz respeito a redefinir gêneros e contrariar padrões sonoros, não apenas mimetiza o período referenciado, mas, com um pé no passado, recria o estilo de maneira muito autêntica e, de certo modo, futurista.

Fotografia em modo paisagem. Ao centro está St. Vincent, também como Papai, de peruca loira chanel, vestindo camisa vermelha bordô desabotoada, calça e sobretudo de mesmas cores. A artista está dentro de uma cafeteria, sentada sobre um banco de pernas abertas e apoiada em uma bancada logo atrás. A fotografia possui um filtro granulado envelhecido.
“Então eu fui ao parque apenas para observar as crianças/As mães viram meus saltos e disseram que eu não era bem-vinda” (Foto: Loma Vista Recordings)

Em meio a gritos sufocantes, percussão latejante e groove denso, St. Vincent introduz Daddy’s Home com Pay Your Way In Pain. Entoando versos pessimistas, a artista abraça completamente a nova faceta, uma persona non grata que existe absorvida por um sistema que a faz escolher entre sobrevivência e dignidade. O clima nostálgico da faixa se colide com as tensões políticas atuais, no qual ficção se transforma em instrumento de expressão clara da opinião pessoal de Annie Clark presente ao longo de todo o álbum.

Eu assinei autógrafos na sala de visitação/Esperando por você da última vez, detento 502” profere St. Vincent com sequência de um inebriante “Daaaddy’s home”, na faixa-título do disco. Talvez a mais objetiva referência à prisão do pai, revela-se uma Annie Clark real. Uma filha, que ao visitar o pai, homem rico e branco, responsável por um crime absurdo de colarinho branco, vê de perto como se dá o sistema carcerário estadunidense. Tentar comparar a realidade discrepante entre o patriarca e a maioria restante dos encarcerados seria ofensivo. E apesar de Clark não abordar a questão diretamente na canção, essa foi uma discussão constantemente levantada durante entrevistas de divulgação do último trabalho.

Aqui, St. Vincent oficialmente se intitula Papai. Ela brinca deliberadamente com a expressão carregada de forte ambiguidade paterna e sexual, transformando tudo sobre si mesma. Ser Papai é sobre estar orgulhosamente confortável com si mesmo, sem desculpas. Assim, a rigidez artística de MASSEDUCTION é deixada de lado, assumindo um novo cenário espontâneo com tons quentes, digno de um filme de Cassavetes, “para contar histórias de pessoas imperfeitas sendo imperfeitas e fazendo o melhor que podem”, revela Clark em entrevista para STEREOGUM.

Dois retratos ao lado um do outro, formando uma única fotografia em modo paisagem. Fotografia em preto e branco, com filtro granulado envelhecido. Em ambas as fotos podemos ver St. Vincent debruçada sobre uma janela. Na primeira, ela admira o exterior. Na segunda, ela encara a câmera. Ela veste peruca loira chanel, robe de cetim florido e pulseiras.
Quase uma Gena Rowlands, St. Vincent incorpora todos os trejeitos de Papai (Foto: Loma Vista Recordings)

A co-produção veterana de Annie Clark com Jack Antonoff se destaca luxuosamente em Daddy’s Home. Mesmo fazendo uso de técnicas setentistas, a escolha por uma sonoridade sônica, texturizada e surreal consuma uma obra estimulante para ouvidos atuais. Os interlúdios presentes em meio às faixas se perdem, mas somos compensados logo em seguida por instrumentais exuberantes sobrepostos aos vocais psicodélicos, seja da própria St. Vincent, seja do coro de fundo, misturados a um só, como na alucinante The Melting Of The Sun – uma ode às figuras femininas do rock, citando desde Joni Mitchell à Nina Simone.

Começando com forte presença, o álbum parece perder o ritmo a partir da segunda metade dele. Entre as faixas finais, são poucos os destaques em relação a introdução, se sobressaindo a catártica My Baby Wants A Baby. “O que no mundo (o que no mundo)/Meu bebê diria?/‘Eu herdei seus olhos e seus fracassos’”, lamenta a artista, se debruçando diante dos medos da hereditariedade intrínseca. Numa crescente intensificação dos instrumentos a partir do ponto médio da canção, ela analisa a influência inevitável da ausência paterna sobre sua relação com compromissos e responsabilidades em geral. E em meio a tantos ressentimentos e confissões, Clark se expurga dos traumas quase perdendo o fôlego, levando o nosso junto.

Fotografia em modo paisagem. Vemos no centro St. Vincent agachada e de pernas abertas, com uma mão apoiada sobre o joelho. Ela encara a câmera, vestindo uma peruca loira chanel, uma camisa vermelha bordô desabotoada, calça de alfaiataria e terno brancos, anéis dourados e um cinto com a palavra “DADDY” em dourado.
“Nós nunca paramos de torcer por você, querida/E sua peruca, loira, chega em casa/Acenando com o último trem da parte alta da cidade” (Foto: Loma Vista Recordings)

O álbum é encerrado com Candy Darling, uma homenagem afetuosa à musa inspiradora da figura de Papai. St. Vincent. No entanto, não entrega um grand finale, principalmente pela disposição sequencial das quatorze faixas, que acaba por segregá-lo tematicamente em duas partes – e, talvez, esse seja um dos principais charmes dele. Considerando o clima lírico-sonoro denso do restante do disco, a última canção soa como um desfecho agridoce, instaurando uma sensação de ciclo completo. Entendemos, somente no final, onde St. Vincent, totalmente reinventada, quer chegar. Daddy’s Home ousa, criando uma perspectiva promissora ao gênero do rock. Seria o futuro do rock feminino?

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