Retrato de uma Jovem em Chamas ressignifica a dor

(Foto: Reprodução)

Jho Brunhara

Alguns filmes são bons para se assistir e passar o tempo, outros para se emocionar e debulhar-se em lágrimas, outros para morrer de rir. Mas talvez um dos maiores problemas da velocidade em que consumimos arte audiovisual na era da informação – ainda mais após a popularização da Internet – é que nem tudo é memorável. Muito do que assistimos é esquecível, ou é visto com um sentimento de indiferença, sendo só mais um para a lista. Retrato de uma Jovem em Chamas é o completo oposto disso. O longa da diretora francesa Céline Sciamma é como uma marca na alma, uma queimadura deixada por um rastro de fogo. Aquela cicatriz que ao se olhar remete à uma memória intensa, que por mais dolorida que tenha sido em um breve momento, carrega consigo algo muito maior – uma lembrança boa. 

Assim como o enredo – a ida da pintora Marianne (Noémie Merlant) até o castelo de Héloïse (Adèle Haenel), a pedido da mãe (Valeria Golino) da jovem herdeira para que pinte a filha em segredo -, a fotografia de tela inteira do longa revela de cara a intenção de Sciamma: que as cenas se apresentem como pinturas. E a direção passeia entre os cenários claros e escuros do casarão, apresentando grandes planos e pequenos detalhes, que às vezes acompanham a própria fala – redundantes em certos momentos, quase como se a diretora quisesse confirmá-los ao espectador. Retrato de uma Jovem em Chamas bebe da fonte dos clichês românticos e os transforma em uma história de amor homoafetiva entre duas mulheres em pleno século 18. E o maior diferencial do roteiro de Céline é o poder de contar uma paixão com suas provações e tribulações sem ter que se explicar do ponto de vista da sexualidade. Do enlace à primeira vista, a tensão, o faiscar dos olhares até o momento de entrega das personagens, tudo se constrói em volta do sentimento do amor em si, e não da dúvida ou do medo, mesmo estando em 1760. 

Noémie Merlant e Adèle Haenel (Foto: Reprodução)

O sexo não é explícito em nenhum momento, e nenhuma cena parece ser desconfortável para as atrizes. Em comparação ao polêmico Azul é a Cor Mais Quente, o fato de Retrato ser dirigido por uma mulher lésbica e com uma equipe repleta de representatividade feminina – Céline é uma das fundadoras do movimento 50/50, que acredita em uma participação igualitária de mulheres no cinema – sem dúvidas torna a produção uma experiência diferente. A francesa atualmente está em um relacionamento com a atriz Adèle Haenel, o que dá bagagem à sua visão sobre o afeto lésbico.

Distante de uma militância explícita, o longa condena o patriarcado através de sutilezas presentes no roteiro e o principal ponto de sua história: um amor contracorrente incapaz de vencer o sistema. Não por falta de vontade das protagonistas, mas por um conhecimento de resiliência. Em uma condição de falência das moradoras do castelo, evidente em comentários de Marianne e da empregada Sophie (Luana Bajrami), além da ambientação – salões vazios, móveis cobertos de pano e nenhum outro funcionário -, a mãe de Héloïse precisa que ela se case para que ambas voltem a ter dinheiro. Em nenhum momento é deixado claro se a filha tem consciência dessa necessidade, mas a raiva não parece ser direcionada à sua mãe. Em uma cena preciosa, a Condessa pede para que Héloïse lhe dê um beijo “como fazia quando criança”. Talvez até mesmo ela não queria aquele destino, mas foi daquela forma que havia herdado o castelo em que moravam, e sabia que não existia outra escolha. 

Céline Sciamma com seu prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes 2019 (Foto: Reprodução)

“Ele chegou antes de mim. Estava me esperando”, relembrou a Condessa enquanto contava sobre seu retrato pendurado na parede para Marianne. É também através desses pequenos momentos que Céline parece explorar sua visão feminista, como a objetificação feminina a ponto que a imagem de uma mulher, na época, – praticamente vendida por uma herança à seu pretendente – chegava antes mesmo que a própria noiva. Em outra cena, Marianne denuncia que mulheres são proibidas de pintar homens nus, segundo ela, “para nos prevenir de fazer artes boas”. O maior medo dos homens é se sentirem inferiores perante à uma mulher. 

Enquanto o longa se desenrola e descobrimos mais sobre as protagonistas e a relação que se edifica, um dos ápices e uma das cenas mais importantes ocorre distante da trama principal. Uma gravidez indesejada resulta na decisão de realizar um aborto, e além da atenção ao mostrar os métodos abortivos do século 18, a direção e o roteiro seguros de Sciamma colocam o espectador diante de uma cena sensível, particular e extremamente consciente. Ao não retratar o aborto como uma angústia carregada de culpa, a mensagem é clara: não existe ódio ou uma moral. Existe somente uma escolha – “você quer uma criança?” -, e a resposta deve ser respeitada. 

A química entre Héloïse e Marianne é de tirar o fôlego desde o primeiro encontro das duas, em que a câmera desce as escadarias do castelo sem revelar o rosto da jovem, nem mesmo a cor de seus cabelos, cobertos por um capuz. Mas mesmo assim o olhar entregue por Noémie enquanto aguarda entre angústia e ansiedade pela revelação já convence do que as espera. A atuação de ambas as atrizes transita entre uma brutalidade tímida e uma aproximação tenra, ótimo trabalho tanto de Haenel quanto de Merlant.

“Eurídice retorna ao submundo”, Enrico Suri (Foto: Reprodução)

Sciamma preza por frases bem ditas, o que é coerente à cordialidade superficial do século 18 – afinal, o filme ainda é um romance de época -, mas a diretora francesa o faz de uma forma poética e cúpida. Em dado momento de interação entre as duas protagonistas e a empregada Sophie – Luana também é excelente em sua personagem -, Héloïse lê o mito de Orfeu e Eurídice. Na história grega, Orfeu desce ao mundo dos mortos após a morte de sua esposa Eurídice, e pede à Hades que devolva a vida à sua amante. Hades aceita, mas com uma condição: que o mortal não olhe para sua esposa até retornarem à superfície. Orfeu olha para trás pela tentação de ver Eurídice e a condena à morte novamente. 

Esse mito sem dúvidas é uma das peças chaves para entender a genialidade da obra de Sciamma. Enquanto debatem sobre a decisão de Orfeu, Marianne sugere que ele escolheu possuir a memória da amada. Retrato de uma Jovem em Chamas é sobre se lembrar. Sem dúvidas também é um longa que retoma vontade de ser livre, feito de mulheres e sobre mulheres, mostrando a necessidade de imposição em um mundo que beneficia homens. Desde sua primeira cena em que Marianne quase perde seu material de pintura, que cai ao mar, e nenhum homem se oferece para buscá-lo, tendo de fazer o resgate sozinha. Mas é um filme principalmente sobre o poder da lembrança. Ao longo das quase duas horas de duração, e os poucos dias em que as personagens conviveram, o amor impossível se dissolve em sua própria realidade, e manter os pés no chão – ainda que cruel – é uma escolha que vem de dentro do peito, com muito amor e cuidado mútuo.

Os cenários espartanos dividem tela com pequenos planos dentro do casarão (Foto: Reprodução)

E os dois momentos finais, que não farei maiores comentários pois não devem ser explicados e sim assistidos – e gravados na memória -, provam que pouco nos esquecemos das paixões verdadeiras, mas que nem por isso devemos lembrá-las com um gosto amargo e nos condenar à uma dor infinita. Retrato não é só marcante e poético, é um dos filmes mais importantes que 2019 teve. Pela sua qualidade magistral, pela sua importância LGBT+, e por sua sinestesia de contraste, quente e gelada. Mais de dois mil anos e a humanidade continua escrevendo sobre o amor. “Todos os amantes sentem que estão inventando alguma coisa?” Ainda bem que sim, a arte agradece. 

Ne regrette pas, souviens-vous. 

Um comentário em “Retrato de uma Jovem em Chamas ressignifica a dor”

  1. Lindíssimo texto, muito bem escrito e que capta a sensibilidade do filme de uma forma incrível. Obrigada por conseguir transmitir em texto tudo o que eu senti assistindo.

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