Aceitando o impossível, Rosa e Momo aprendem a sobreviver

Foto retangular com fundo laranja. À direita vemos o rosto do garoto Ibramin sobreposto ao de Sophia Loren. A montagem possui tons alaranjados. À esquerda lê-se em branco ROSA E MOMO.
Fora da categoria de Melhor Filme Internacional, Rosa e Momo está na corrida para Melhor Canção Original no Oscar 2021 (Foto: Reprodução)

Ana Júlia Trevisan

Sophia Loren. Apenas o nome dela basta para iniciar a crítica. Uma das principais atrizes do mundo, e talvez a mais renomada da Itália, estava há mais de uma década longe dos grandes holofotes, após atuar ao lado de Daniel Day-Lewis e Penélope Cruz no filme Nine, dirigido por Rob Marshall, fazendo apenas breves aparições nas telas desde então. Mas como a aposentadoria nem sempre é a escolha mais fácil para quem respirou Cinema durante toda vida, como Sophia, ela retorna ao audiovisual sob a direção de ninguém menos que seu filho Edoardo Ponti, e mostra que ainda tem força e talento de sobra para atuar.

La Vita Davanti a Sé é o título original da produção que marca a volta de Sophia Loren. Mundialmente conhecido como The Life Ahead, o filme recebeu o nome de Rosa e Momo no Brasil. Se engana quem acha que a tradução feita não tem nada a ver com a história, Rosa e Momo são os protagonistas da trama. Rosa é uma ex-prostituda que, ao chegar na velhice, passou a cuidar dos filhos das colegas de profissão, e Momo é um órfão senegalês que, após perder a mãe, ficou aos cuidados do Dr. Coen. Todas as mudanças na vida do garoto acabam levando-o para o mundo do tráfico e do roubo.

Distribuído pela Netflix, o roteiro é uma adaptação do livro A Vida Pela Frente de Romain Gary, que já havia ganhado outra filmagem em 1977, dois anos depois de seu lançamento. Madame Rosa não é muito conhecido na terra das palmeiras, mas recebeu a estatueta do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e do César de Melhor Atriz para Simone Signoret. Diferente da produção de 1977, que é francesa, Rosa e Momo se ambienta na Itália, trazendo mais conforto à atriz veterana.

Foto da atriz Sophia Loren. Uma mulher branca de 86 anos. Ela tem cabelos grisalhos, ondulados e longos. Veste um vestido azul com flores roxas. Ela está sentada numa cadeira de madeira. No funda à direita vemos uma parede de azulejo branco, à esquerda um armário aberto. Na primeira fileira do armário vemos embalagens de comida, na segunda pratos branco e na terceira canecas azuis.
Aos 86 anos, Sophia Loren prova que ainda tem fôlego para premiações (Foto: Reprodução)

Para quem é acostumado com a turbulenta cenografia estadunidense, o visual de Rosa e Momo chega a ser aconchegante, com a calorosa iluminação das ruas italianas muito bem aproveitadas. O visual da casa, e principalmente suas cores, é tão bem trabalhado que você se pega pensando que é óbvio Rosa morar naquele local. 

Assim como Breaking Bad é marcado pela teoria das cores, que se reflete na vestimenta das personagens, a direção de Rosa e Momo também acerta em cheio ao utilizar a técnica de modificar a paleta de cores das roupas dos protagonistas conforme eles carinhosamente se aproximam. Isso ajuda a criar o apelo emotivo que é corroborado para os sentimentos que pairam no ar do telespectador quando o filme acaba. 

Rosa e Momo começa por aquilo que é seu final, não entendemos direito toda afobação da primeira cena até que há o corte para o real início da história. Tendo em vista que a trama é construída cena após cena, conforme são revelados os traumas das personagens principais, e que não há grande plot twist na produção, pois o intuito é ser um melodrama simples e emocionante, não havia necessidade do início e do fim serem o mesmo.

Cena de Rosa e Momo. À esquerda vemos o ator Ibramin, um garoto negro de 12 anos. Ele veste moletom com estampa de camuflagem. Ele está olhando para personagem  de Sophia Loren que está à direita. Ela veste uma roupa preta com flores rosas e seu cabelo está solto. Seu olhar é fixo. Está chovendo. Ao fundo vemos lençóis marrom, branco, azul e florido de azul, estendidos no varal.
Sto qui (Foto: Reprodução)

A vida deles se cruza quando Momo rouba no meio da rua a bolsa de castiçais de Rosa, mas eles verdadeiramente começam o enredo a partir do momento em que o Dr. Coen não pode mais cuidar do menino de 12 anos e, humildemente, vai até Rosa pedir para que fique com o garoto. Até então, ela é apenas uma mulher que cuida de filhos de prostitutas, as incógnitas sobre sua vida surgem conforme há evolução na personagem, e é nessa construção onde todo brilhantismo de Sophia Loren é depositado.

Temos duas pessoas vivendo traumas pessoais. A comunicação corporal do ator mirim, Ibrahima Gueye, foi excepcional. Sua solidão e suas explosões de raiva nos fazem esquecer que tudo aquilo não passa de encenação. O ator mostra ser promissor ao encarnar com tanta verdade o personagem pré-adolescente de psicológico complexo. O envolvimento comercial com um traficante e a ânsia de querer ser o melhor representam de maneira cirúrgica que comportamentos problemáticos são reflexos de dores e grandes perdas. É um prazer assistir a atuação de Ibrahima Gueye durante uma hora e meia.

Rosa é sobrevivente do holocausto, carregando em si a tatuagem de identificação de Auschwitz. Em uma tocante cena, Momo pergunta à ela o que é a marca em seu braço e não entende o significado de campos de concentração. Nesse momento entendemos o traço de personalidade mais isolado de Rosa, que toda noite procura refúgio em um quarto separado de sua casa. Ela opta por manter a inocência de Momo em relação a Auschwitz do que contar todas barbaridades cometidas por nazistas. Em uma temporada de premiações onde não vemos tantos filmes de guerra como de costume, a sensibilidade em que o assunto é tratado em La Vita Davanti a Sé é um respiro em meio a canhões.

Foto de Ibramin. Ele é um garoto negro de 12 anos. Usa moletom com estampa de camuflagem, blusa azul e um fone de ouvido azul no pescoço. Ao fundo vemos paredes brancas e à direita um cameraman segurando uma camera preta no ombro. Esse homem é branco e veste camiseta azul. Ao lado dele há mais duas pessoas desfocadas.
Em seu segundo filme, o menino de 12 anos mostrar ser um prodígio do cinema (Foto: Reprodução)

O passado das personagens não cobram um grande enredo para a produção do presente filme. Esse fato, junto a incessante preocupação em construir laços afetivos entre os papéis interpretados por Ibrahima Gueye e Sophia Loren, torna as tramas secundárias completamente esquecíveis. Lola, interpretada pela roteirista de Vis a Vis, Abril Zamora, se encarrega apenas pelo papel de amiga de Rosa e mãe de uma das crianças, não tendo nenhuma linha do tempo própria que a faça caminhar sozinha.

Ao mesmo tempo que o filme conta o passado, ele constrói o presente, com as atitudes das personagens sendo justificadas pelos traumas. A história sobre cuidado mútuo mostra Rosa aceitando cuidar de Momo contra sua vontade, mas quando a personagem começa apresentar os sinais do trágico Alzheimer, é o garoto privado de cuidados durante a segunda infância que se mostra leal a ela.

A confiança também é peça fundamental para o quebra-cabeça de emoções. O pedido de Rosa nos momentos de lucidez, refletido de seu medo durante a Segunda Guerra, é acatado pelo menino de maneira fiel. Toda defesa que ele constrói em relação àquela figura que o cuidou por um curto período reforça o apelo emocional que é o foco.

Cena de Rosa e Momo. À direita temos Sophia Loren (Rosa). Ela usa um vestido branco de flores vermelhas. Esta segunda as mãos da atriz Abril Zamora que está ao seu lado. As duas estão se olhando. Abril é uma mulher branca de cabelo loira e usa um vestido preto de flores vermelhas e brancas. Ao fundo vemos parte da casa de Rosa. A cortina vermelha, o sofá com almofadas coloridas e uma estande de madeira.
Só peço favor de que tenhas cuidado (Foto: Reprodução)

Sem intenção de ser grandioso, a simplicidade do filme e o retorno de Sophia Loren são os principais fragmentos de sucesso da produção cinematográfica que vem dando o nome em premiações como o Globo de Ouro e o Critics Choice Awards,  concorrendo em ambas na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira. Ibrahima Gueye que, dirigido com maestria, se fez notável ao lado da gigante Loren, recebeu a também indicação no Critics Choice Awards na categoria de Melhor Ator/Atriz Jovem.

Com apenas essa indicação à Canção Original ao Oscar 2021 fica o questionamento se veremos Sophia Loren, primeira atriz a ganhar o prêmio com um filme não falado em inglês e outro pelo conjunto de sua obra, e seu filho correndo em produções futuras pela campanha para o prêmio de Melhor Atriz, da mesma forma que tentou emplacar o curta de La voce umana de Edoardo Ponti, apresentado no Festival de Cannes em 2014. E foi pré-selecionada, mas não chegou à lista final da premiação com O que Sophia Loren Faria?, curta em documentário lançado pela Netflix esse ano.

Mas o verdadeiro destaque e que já conseguiu faturar um prêmio televisionado pra conta, além de uma indicação ao Oscar, é Io sí. A canção original de Rosa e Momo é assinada por Diane Warren – mulher com maior número de indicações ao prêmio da Academia sem nunca ter ganho – e magicamente interpretada pela inconfundível voz de Laura Pausini, que instiga o telespectador a assistir aos créditos para continuar apreciando a canção. Parte desse encanto talvez seja porque a trilha sonora deixa a desejar, à exceção de Malandro, cantada por Elza Soares, que rendeu a cena de Loren dançando, por momentos as faixas tocadas destoam da premissa inscrita no roteiro. 

Rosa e Momo encarna um roteiro forte com suas sutilezas que nos faz pensar horas a fio mesmo depois de seu término. O sacrifício de histórias secundárias permite que a produção atinja seu objetivo central, o de emocionar. O filme em sua totalidade pode não ser um primor, mas a direção sabe onde quer chegar e consegue elaborar um trabalho sequencial que não se perde durante a caminhada. A Canção Original foi a cereja no topo do bolo, dando melodia pra dança da trama. Ibrahim Gueye inicia sua jornada com potencial de abrilhantar muitos produtos culturais e Sophia Loren retorna completa e dona de si.

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