Arregace a manga e tome essa fabulosa vacina, porque Queer Eye é muito mais eficaz do que cloroquina

Imagem da série Queer Eye. Nela, 5 pessoas estão paradas a frente de uma placa em que está escrito o nome do estabelecimento El Arroyo ao lado do mapa do estado do Texas em letras vermelhas e fundo branco. Mais abaixo, está escrito em letras pretas "Queer Eye, a coisa mais fabulosa no Texas desde Chaps", também em fundo branco. Três homens estão fazendo pose do lado direito da placa, um deles está mais perto da placa, ele é um homem preto que usa boné azul e camisa jeans. Ao seu lado, um homem branco de camisa xadrez e colete marrom de franjas faz pose, e, agachado embaixo deles, um homem branco de jeans e casaco listrado colorido também posa. Do lado esquerdo da placa um homem indiano está de braços cruzados, encostando na placa. Ele veste camisa com estrelas vermelhas. Sentado no ferro inferior da placa, uma pessoa não binária branca está sorrindo com o rosto encostado nos braços, a pessoa veste saia preta e camisa azul.
Lá vem os Cinco Fabulosos novamente: Queer Eye arrebata o prêmio de Melhor Reality Estruturado no Emmy 2022 e comemora a quinta vez consecutiva ganhando na categoria (Foto: Netflix)

Nathália Mendes

Lá pela 3ª temporada, Queer Eye já fazia mais do mesmo: replicava sua receita de sucesso, espalhando o valor do autocuidado com alegria e empatia. Mas se em time que está ganhando não se mexe (sim, o contexto merece uma piada do meio futebolístico heteronormativo), uma pandemia de coronavírus desafiou o reality da Netflix a fazer ainda mais pelo amor próprio dos outros. E foi assim, abraçando a fragilidade de seus participantes recém vacinados, que Antoni Porowski, Bobby Berk, Karamo Brown, Jonathan Van Ness e Tan France entregaram uma 6ª temporada para se engasgar de tanto chorar.

Na edição anterior, cinco gays bateram nas portas de estranhos num momento crucial, pois foi ao ar quando o mundo enfrentava o crescimento de casos de Covid-19 sem saber o que fazer. Antes disso, ainda, a nova temporada já havia iniciado suas gravações, e os Fabulosos estavam em Austin, no Texas. Como se um dos estados mais conservadores dos Estados Unidos não fosse suficiente, a série foi interrompida pela pandemia em março de 2020. Pronto. Estava nas mãos de Queer Eye o poder de ajudar pessoas completamente transformadas por uma das maiores emergências de saúde da humanidade – e assim o fizeram, bem longe de hospitais e prontos socorros. 

Imagem da série Queer Eye. Nela, 7 pessoas estão abraçadas umas nas outras, sorrindo e posando para a foto. O fundo é um restaurante texano com letreiros neons e cabeças de animais empalhados. Da esquerda para direita estão: um homem indiano de jeans e camisa com estrelas vermelhas; um homem branco de conjunto jeans escuro; um senhor de idade branco com roupa típica cowboy e chapéu branco; uma mulher branca de meia idade com botas e shorts pretos, e blusa vermelho; um homem negro de jeans, camisa azul clara e chapéu preto; uma pessoa branca não-binária de saia preta, blusa bege, casaco branco e chapéu de mesma cor; e um homem branco de conjunto preto com colete marrom de franjas.
A Netflix e os apresentadores de Queer Eye não se pronunciaram sobre os rumores de racismo no restaurante da família que protagonizou o episódio de abertura da sexta temporada (Foto: Ilana Panich-Linsman/Netflix)

Antes de interromper as gravações, a série conta a história de Terri White em seu primeiro episódio, Um momento decisivo. A dançarina de meia idade, extremamente sulista e carismática, abre a temporada com uma narrativa semelhante às demais já contadas no reality, até que a Covid-19 chega. Um ano de tristeza e medo a envolveu, mudando até seu relacionamento com o cabelo natural – que teve tempo de crescer longe dos holofotes, e a transformou numa mulher introvertida pela tristeza da perda. Quando os Fabulosos a encontram novamente, em maio de 2021, seu pai, James White, havia falecido.

É interessante notar que James havia sido parte da alegorização texana construída pela série logo de cara. Perdê-lo trouxe à tona a dor que, de certa forma, a sociedade experenciava desde o começo da pandemia. Diferente do animado reencontro com os participantes que normalmente acontece, Antoni, Bobby, Karamo, Jonathan e Tan voltam até o restaurante da família de Terri muito amuados. Não há outra cena em toda Queer Eye que se compare a essa, pois, ainda que o programa tenha influenciado diretamente a vida da heroína no período de isolamento, no final o saldo não era positivo. 

Completando a tragédia, o The Daily Beast realizou uma pesquisa mais profunda sobre os White logo após o lançamento dos episódios. Não precisou de muito para descobrir rumores de casos de homofobia e racismo no restaurante da família, o Broken Spoke. Segundo o portal, as críticas do local no site Yelp contém acusações de discriminação e relatos de que as aulas de dança são acompanhas de comentários ofensivos. Sem surpresas, os desafios para uma temporada em um estado conservador foram turbinados por uma crise de saúde mundial, mas tudo bem: os momentos mais emocionantes e compensadores estavam por vir.

Imagem da série Queer Eye. Nela, 5 pessoas estão paradas ao fundo de um restaurante olhando duas pessoas que estão mais a frente se abraçando. O restaurante tem paredes brancas e azuis e decoração do mar. Atrás, da esquerda para a direita estão: um homem branco de camisa floral verde e branca e jeans; um homem indiano de blusa vermelha e calças largas estampadas de preto e branco; uma pessoa branca não binária de vestido listrado em preto e branco; um homem preto de boné e casacos esportivos vermelhos; uma pessoa branca cujo rosto é o único visível. Mais a frente, um senhor de idade de camisa laranja e jeans escuros está apontando algo com o braço direito enquanto abraça uma mulher branca jovem e loira, que está o abraçando de volta, deitada em seu peito, e vestindo calças e sapatos de salto vermelhos, blusa branca e colete jeans.
A repaginada no restaurante de frutos do mar da família de Todd Maddox, o Plookys Cajun Boiling Pot, foi uma das mais significativas para Bobby, pois ele era o sonho da falecida esposa de Todd, Jodie, e compõe o portfólio de seu site (Foto: Ilana Panich-Linsman/Netflix)

Após o retorno, as gravações aconteceram com vacina no braço dos norte-americanos. De diferentes formas, o arco de todas as narrativas se baseou na família, seja qual fosse sua composição, ou nos desafios que a pandemia de coronavírus haviam trazido para suas vidas. Seja com os formandos do Colégio Navarro ganhando um espetacular baile de formatura presencial, depois de tanto tempo vendo os colegas por uma tela de computador, ou assistindo a Dra. Jereka Thomas lutar contra a desigualdade social e trazendo as comunidades pretas e pobres para dentro da área da saúde, o aguaceiro do espectador está garantido. 

Já Reggie Devore sofreu com a interrupção de sua carreira em ascensão na Música. Infelizmente, a história do rapper pertence a realidade de grande parte da população: sem trabalho, devido ao isolamento social, ele ainda precisava garantir a segurança da família. Isso não só o desmotivou completamente, mas diminuiu o brilho com que produzia e cantava. Essas sequelas específicas da pandemia, completamente pessoais para cada indivíduo, nunca foram abordadas por uma série, e Queer Eye o fez de forma respeitosa e empática. Não por acaso, a edição foi a mais intensa e emocionante para os próprios apresentadores.

Imagem da série Queer Eye. Nela, duas pessoas estão encostadas em um muro branco conversando, em frente à vitrine de uma confeitaria. Do lado esquerdo, uma pessoa branca não binária de cabelos compridos e barba na cor castanha, que veste uma blusa de quadrados salmão e bege, está olhando para a outra pessoa, de lado, com expressão de questionamento. Em frente a ela está uma mulher asiática virada de lado e vestindo blusa branca, uma boina azul clara esconde o cabelo preto, e ela está dando uma risada tímida.
A confeiteira Sarah Lim não só teve que enfrentar o fechamento de seu estabelecimento, o OMG Squee, devido à pandemia, mas também o preconceito e ignorância dos norte-americanos com sua descendência asiática (Foto: Ilana Panich-Linsman/Netflix)

Próxima da dor de Terri e Todd, a heroína Angel Flores, uma atleta de levantamento de peso transsexual, experenciava um tipo diferente de luto: aquele que rasga a alma quando se pertence à comunidade queer e o próprio pai não compreende sua verdadeira versão. Isso não foi suficiente para que Queer Eye levasse para casa mais prêmios no Emmy Criativo, cerimônia que aconteceu separada da principal, nos dias 3 e 4 de setembro. Seu episódio Angel ganha asas foi o escolhido para ser submetido nas categorias do Emmy 2022. As indicações vieram em Melhor Direção para Aaron Krummel; Melhor Design de Produção para Thomas Rouse e Josh Smith; e Melhor Montagem para Nova Taylor e Sean Gil, mas não venceu em nenhuma.

O reality não leva outras categorias da premiação desde 2019, quando venceu Direção e Montagem pela 3ª temporada, mesmo tendo sido indicada em todos os outros anos. Aparentemente, a série escolhe submeter episódios com heróis LGBTQIA+, sendo incongruente, pois, nem sempre suas histórias compartilham o brilhantismo da temporada. Angel é incrível, sendo a primeira mulher trans no show, perpassando o caminho sofrido da saudade de um pai que era tudo em sua vida, e ganhando a reaproximação com a ajuda de Karamo. No entanto, seu capítulo não tinha a característica que precisava para ganhar.

A fragilidade do ser humano a nível extremamente pessoal após uma emergência de saúde é a verdadeira protagonista da 6ª edição. O que Sarah, Jereka e Reggie viveram e fizeram em meio à pandemia merecia atenção para além de seus episódios, como poderia ter sido com o Emmy deste ano. Mesmo assim, os erros de Queer Eye são poucos – entre continuar insistindo na transformação de pessoas dotadas de preconceitos e não submeter os capítulos certos -, e a série fez um trabalho único. Afinal, não é pra qualquer um tornar as dificuldades do outro em algo mais leve de ser superado, tudo feito junto de momentos divertidamente prazerosos e botas de cowboy.

Imagem dos apresentadores da série Queer Eye em frente ao painel da premiação do Emmy. O painel é preto e está padronizado com o nome da premiação, da academia de televisão e com a logo dourada do prêmio. Estão parados à frente do painel, da esquerda pra direita: uma pessoa branca não binária de cabelos compridos e barba castanha, vestindo um vestido comprido branco sem alças, com colar prata brilhante no pescoço e segurando uma bolsa pequena colorida; um homem branco de cabelos e barbas curtos e loiros, que este um conjunto floral preto, branco e verde; um homem branco de terno preto; um homem indiano de conjunto verde esmeralda; e um homem preto de conjunto rosa pink.
Indicada também em Melhor Direção de Elenco e Melhor Apresentador, Queer Eye recebeu seis nomeações no Emmy Criativo de 2022 e venceu em apenas uma, repetindo a edição anterior (Foto: Michael Tran/AFP via Getty Images)

A experiência foi diferente dessa vez. Nem só de poses, botas neon e casas super decoradas vive Queer Eye. A combinação de elementos que aquecem o coração e fazem o estômago doer de rir é o que torna a série um conforto, sim, mas há muito mais ali do que só isso. A série aceitou o desafio de recuperar o amor de quem sofria com sequelas quase invisíveis da pandemia. Mais do que isso, a 6ª edição contou ao mundo sobre situações realmente difíceis de pessoas atormentadas por monstros da vida real, ou por estruturas e estigmas sociais que esmagam vidas.

Quando uma temporada acaba, os protagonistas mais incríveis parecem ter se tornado velhos conhecidos, e, com muita admiração, o desejo de que estejam felizes inunda o coração. Não é o desejo da produção de que você ame seus apresentadores, mas de que os heróis da vida real sejam verdadeiros protagonistas, bem como o amor próprio seja tratado com seriedade e importância. No final, Antoni, Bobby, Karamo, Jonathan e Tan, transformam também cada espectador. Ainda bem que a sétima temporada já está sendo filmada.

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