Pai tem gosto de revolta

Nikola na sua caminhada presente na 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: Divulgação Imprensa)

Caroline Campos

Existem filmes que deixam um sabor amargo na boca. Pai, do diretor sérvio Srdan Golubović, com certeza se encaixa nessa categoria. Coproduzido por seis países – Sérvia, França, Alemanha, Eslovênia, Croácia e Bósnia-Herzegovina -, o longa cria uma trama complexa e contida que trabalha um único personagem a partir de sua realidade brutal. Exibido na 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, dentro da seção Perspectiva Internacional, há momentos que é quase impossível conter a raiva e os gritos diante de tanta dor e injustiça que Golubović imprime em tela. 

Logo de cara, já somos tomados pelo espanto. Depois de dois anos que Nikola (Goran Bogdan) fora demitido do emprego e não recebera nem 1 centavo do prometido, sua esposa Biljana (Nada Šargin) vai até a indústria com os dois filhos e ameaça botar fogo em si mesma e nas crianças se não receber o dinheiro. Biljana, em uma cena desesperadora, grita sobre a fome que ela e seus filhos sentem, mas, quando não é respondida, se banha de óleo e taca fogo em seu corpo. Sendo rapidamente apagado pelos homens no local, a mulher é encaminhada ao hospital e, seus filhos, ao Serviço Social.

O filme foi vencedor dos prêmios do Júri Ecumênico e do Público da seção Panorama do Festival de Berlim (Foto: Divulgação Imprensa)

A partir daí que se inicia a trajetória de Nikola para conseguir as crianças de volta. A princípio, ele foi orientado a deixar a casa mais organizada, como manter a energia elétrica e a água corrente para a visita dos assistentes. No entanto, o homem não contava com a corrupção podre e escrachada dentro da instituição – mesmo fazendo o que lhe foi solicitado, o chefe Vasiljevic (Boris Isakovic), responsável pelos veredictos finais, negou a guarda de seus filhos, e não o permite vê-los. É então que Nikola toma uma atitude extrema: caminhar 300 km a pé até Belgrado para entregar seu recurso diretamente ao ministro.

Apenas com uma mochila contendo itens básicos como um cobertor, uma garrafa de água e um pão, o pai dos meninos enfrenta desmaios de cansaço, encontros com animais selvagens e até consegue uma carona ou outra. Sua jornada de poucas falas cobre a maior parte do filme, mas, ainda assim, o espectador tem dificuldades em exalar uma mínima respiração com tamanha tensão de sua caminhada e tamanha competência de seu ator principal. Bogdan carrega um olhar persistente e calmo, nunca arrumando confusões com quem entra em seu caminho, mesmo aqueles que brincam com sua boa vontade.

Nikola abraça Milos, protegendo do jeito que tanto deseja ao longo da narratuva (Foto: Divulgação Imprensa)

Ainda assim, parece que o mundo luta contra o objetivo de Nikola. Mesmo em Belgrado, o homem só consegue atenção do assistente do ministro após passar dias em frente ao Ministério e receber a atenção da mídia com uma greve pacífica e silenciosa pelo seu direito de entregar o recurso pessoalmente. Mesmo com a recomendação do assistente, ao voltar para sua cidade a crueldade e a injustiça continuam o acompanhando. Irritado com o ‘circo’ que Nikola fez, o chefe do Serviço Social enfatiza que o homem nunca mais conseguirá a guarda dos filhos. O motivo? Ele possui mais poder social que o humilde desempregado que o enfrenta.

Sendo apunhalado até pelos próprios vizinhos ao retornar a sua casa, sentimos o peso que o homem carrega a cada movimento desde seus eternos passos até a cidade. A câmera talvez seja a única acompanhante silenciosa que o segue decididamente, e Golubović, ciente disso, a utiliza com a sensibilidade que seu protagonista merece. Apesar dos olhares tristes e resignados, o Nikola de Bogdan é uma muralha impenetrável para recuperar sua crianças, e cada fagulha de esperança do homem quebra a narrativa pesada e densa em que ele estrela, apenas para deixá-la ainda mais sufocante depois.

O diretor Srdan Golubović já passou por festivais como Sundance, Berlim e Saravejo (Foto: Divulgação Imprensa)

Pai (Otac), é uma dura história sem final feliz. Percebemos que o único e maior crime que Nikola cometeu foi a pobreza, e, por isso, de acordo com a sociedade desigual e ineficiente que o cerca, ele deve pagar. E essa conta é cobrada em cada segundo do filme. São duas horas de dor, com momentos mínimos de gentileza que são esmagados de forma ainda mais bruta. No entanto, o filme é uma denúncia. Uma declaração contra a culpabilização das pessoas em situação de pobreza extrema que não são auxiliadas pelo Estado responsável. E, infelizmente, Nikola é apenas mais uma formiga entre os grandes leões da selva monetária.

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