Quando o assunto é Cinema, é difícil encontrar alguém que não tenha alguma memória relacionada a ele. Seja por uma trilha sonora que ganhou um lugar especial em nossos corações ou por um enredo que mudou completamente nossa visão de mundo, a Sétima Arte, assim como todas as outras, tem a incrível habilidade de movimentar as emoções do público. É por esse motivo que não deixamos de apreciar obras cinematográficas e, consequentemente, o Persona não deixa de trazer sua clássica lista dos Melhores Filmes do ano.
Essa conexão entre a Arte e a população é, também, um dos motivos pelo qual Hollywood parou em 2023 com a greve dos roteiristas. Más condições trabalhistas prejudicam qualquer criação, inclusive as do audiovisual, e não é preciso se alongar muito sobre como o aperfeiçoamento da inteligência artificial coloca em risco a integridade das obras. Ver o adiamento de produções tão aguardadas foi dolorido, mas os quatro meses de discussão foram essenciais para que o trabalho daqueles que dão vida a essas histórias fosse mais valorizado.
As obras que não foram afetadas pela greve e chegaram ao público, por outro lado, proporcionaram experiências que há muito o Cinema não vislumbrava. Não há dúvidas de que o contraste entre o mundo cor-de-rosa de Barbie e a mente perturbada de Oppenheimer ficará marcado como um dos principais – e mais divertidos – momentos do ano. O border collie Messi foi, de longe, o dono do espetáculo, e fomos presenteados com a melhor atuação da carreira de Emma Stone até então.
O mundo cinematográfico abre diversas portas, e tanto os membros da nossa Editoria quanto nossos colaboradores não pensam duas vezes antes de adentrá-las. As 55 obras que compõem essa lista falam de tudo um pouco: da denúncia de um genocídio aos encontros e desencontros do amor; das ruas de Recife às geleiras dos Andes; da esperança ao horror.
Ao reservar algumas horas para contemplar uma produção audiovisual, não importa se o fazemos com a intenção de nos educarmos sobre um determinado assunto ou se é apenas com o intuito de nos entreter. Criar essa conexão com o Cinema é, citando Scorsese, “algo que, por alguma razão, permanece”. Assim, no Melhores Filmes de 2023 do Persona, você confere todos os lançamentos que permaneceram em nós.
A Freira 2 (The Nun II)
Dando continuação em A Freira, o volume dois volta para assustar ainda mais seus fãs. Adentrando na história do universo de Invocação do Mal, A Freira 2 volta com as assombrações de Valak e a sua ligação com a Irmã Irene. Dado o contexto, é evidente a comparação que recai sobre o primeiro longa, que pecou em não ter cenas mais assombrosas e de gore – questão bastante comentada em relação aos demais filmes da franquia. Com isso, o diretor Michael Chaves, que dirigiu A Maldição da Chorona (2019) e Invocação do Mal 3 (2021) e não teve boas repercussões, concentra o sagrado e profano no mesmo nível, trazendo o ápice desse encontro nas atuações do elenco (ou naquilo que não podemos ver). Mesmo sendo um filme mais gráfico, o medo se insere no que não se vê e o diretor acerta em cheio nesses requisitos.
Com Taissa Farmiga como a Irmã Irene e Storm Reid como a noviça Debra, as atuações dos atores são ótimas e em muitas das vezes sentimos o que estão passando. A Freira 2 passa antes por todo um descobrimento do que está acontecendo na região francesa para que o enredo, de fato, tenha corpo e se desenvolva. É um filme em que não se aventura em inovações, mas que não falha no propósito de se assustar com o Valak. Afinal, é evidente que você não vai querer assistir a ele de noite. – Marcela Lavorato
A Memória Infinita (La Memoria Infinita)
Para o famoso jornalista chileno Augusto Gongora, a memória é um elemento fundamental na construção da identidade, tanto de uma pessoa, como também de um país. A diretora Maite Alberdi (Agente Duplo) acredita nesse pensamento de tal forma que faz de A Memória Infinita um exercício de reflexão sobre o tema. Seu objeto de estudo é justamente Augusto, cujos últimos anos de vida serviram de base para esse belíssimo documentário, que foi indicado ao Oscar 2024.
Com um olhar empático e melancólico, a diretora registra a rotina de cuidado domiciliar administrada por Paulina, esposa de Augusto e, assim como o marido, uma personalidade notória no Chile. Aliado a isso, Alberdi explora uma série de imagens de arquivo para compor um paralelo entre a vida pessoal do casal e a história política do país, ambas marcadas pela ditadura de Pinochet. Sua composição final é uma defesa da memória que, ao nos fazer lembrar de quem somos, justifica a sua importância. Em outras palavras, a memória que mostra porquê é infinita. – Nathan Nunes
A Sociedade da Neve (La Sociedad de la Nieve)
Baseado em uma história real de acidente aéreo, A Sociedade da Neve nos transporta a dias angustiantes que tornam nossa cama mais confortável e nossa comida mais saborosa. Nunca se sabe quando toda nossa vida será perdida em uma tragédia cujas consequências vão além da morte na concepção física. Em outros termos, o filme reflete sobre o tempo, assim como a falta dele.
Durante grande parte do longa, sentimos uma vontade quase incontrolável de pular para o final e sanar a dúvida que qualquer espectador já teve: ficará tudo bem? Afinal, são sequências aparentemente infinitas de sofrimento cuja explicitação torna a produção espanhola angustiante. Em meio ao caos, A Sociedade da Neve também deposita sua força na relação entre os personagens que, diante do horizonte solitário e cheio de neve, não têm outra escolha senão fazer amigos no caminho. – Ana Cegatti
AIR: A História por Trás do Logo (Air)
Todos conhecem o nome Michael Jordan e todos já pelo menos ouviram falar dos tênis da Nike, Inc. Mas será que todos sabem como o maior jogador de basquete de todos os tempos consolidou a marca de moda esportista como é hoje? Em AIR: A História por Trás do Logo, vemos como nasceram os tênis Air Jordans e uma estratégia brilhante de marketing desenvolvida entre a Nike e o atleta. O filme é a mistura perfeita para quem gosta de esporte, moda e publicidade. As cenas vão dos escritórios da Nike, passam pelas quadras da NBA e retornam para os ateliês de design de calçados esportivos. Todos esses cenários são palco para atuações convincentes, roteiro fluído e certo humor cômico que nos remete aos filmes dos anos 80, década na qual o longa se ambienta.
A produção da Amazon Studios foi dirigida e estrelada por Ben Affleck, em um dos seus melhores momentos, e conta com Matt Damon interpretando Sonny, o protagonista da trama, que foi responsável por contratar Jordan como garoto propaganda da marca. Outros nomes conhecidos também fazem parte do elenco, como Viola Davis, Chris Messina e Jason Bateman. O grande motim da história é como o talento de um jogador pode inspirar uma marca a apostar tudo o que tem, e no final acertar em cheio a cesta. O mesmo acontece com o telespectador que se permite abraçar esse filme. – Costanza Guerriero
Anatomia de uma Queda (Anatomie d’une chute)
É consenso entre críticas e audiências: Anatomia de uma Queda está entre os melhores filmes de 2023. A direção e o roteiro de Justine Triet transformam o thriller de tribunal em um comentário afiado sobre relacionamentos, família e dinâmicas de gênero. A cineasta francesa já é conhecida por filmes como Sibyl (2019) e Na Cama com Victoria (2016), mas esse é, até então, o grande destaque de sua carreira.
A protagonista do filme vê uma lupa sendo colocada não só sobre o incidente que a leva a julgamento, mas também sobre a sua vida, em seus detalhes mais íntimos e dolorosos. As sequências do tribunal são provocantes e te envolvem até o último minuto; entretanto, a investigação é o ponto menos interessante que Anatomia de Uma Queda tem a oferecer. A dissecação das relações dentro da família são invasivas e desconfortavelmente reais, acompanhando a queda de cada personagem individualmente e enquanto casal, ao ponto de que fica em segundo plano saber o que de fato aconteceu no dia do caso. – Giovanna Freisinger
Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon)
Máxima de David Grann em Assassinos da Lua das Flores, “a tarefa do diabo é não demorar muito em seu trabalho” se apequena diante da atmosfera trazida por Martin Scorsese ao adaptar o livro-reportagem para o cinema. Através da precisão participativa de uma carreira sexagenária em direção e roteiro, 206 minutos contam a história da nação Osage com a sustentação de um tripé narrativo, que se fixa no histórico de dor, impunidade e apagamento étnico envolto no genocídio de um dos principais povos originários dos Estados Unidos.
Em primeiro plano, a esplêndida montagem de Thelma Schoonmaker dá ritmo a três atos calculados para mostrar a frieza do homem branco, investido em derramar quanto sangue nativo for preciso para tomar escrituras e ver o petróleo jorrar em seus pés. Os cortes de cena espantam ao emendar momentos rotineiros a assassinatos à plena luz do dia, além de aprofundarem os impactos mentais e as consequências sociais da barbárie sob a força da trindade formada pelos papéis de Robert De Niro (William Hale, magnata desprovido de alma), Leonardo DiCaprio (Ernest Burkhart, peão ingênuo e abominável) e Lily Gladstone (Mollie Burkhart, matriarca de nuances tão poderosas quanto a indicação da atriz ao Oscar 2024).
Essa segunda base também vem acompanhada da imersão fotográfica de Rodrigo Pietro, visualmente sóbria e contemplativa, e da trilha sonora suspendida na trama por Robbie Robertson. Contudo, o último e maior pilar de sustentação da obra está no triunfo de reunir profissionais familiares ao comando de Scorsese e gêneros fílmicos caros ao cineasta para ser uma visão intensa e responsável sobre crimes que poderiam facilmente cair em espetacularização em outro lado da indústria. Se o diabólico mora nos detalhes, Killers of the Flower Moon (no original) não tem medo nem falta de compostura ao expurgar cada um deles. – Vitória Vulcano
Asteroid City
Condenado pelo tribunal das redes sociais, Asteroid City é uma das empreitadas mais desafiadoras da carreira do cineasta Wes Anderson. O roteiro escrito em parceria com Roman Coppola tem grandes estrelas de Hollywood interpretando atores que, por sua vez, dão vida a personagens de uma peça teatral. Por isso, os primeiros minutos do longa são um pouco confusos, se não exóticos. Ainda assim, é difícil querer tirar os olhos dessa pacata cidade no deserto afetada por as maiores esquisitices que testes nucleares podem atrair para um lugar: crianças assustadoramente inteligentes e alienígenas.
Entre o preto e branco dos bastidores de uma peça teatral, a ambientação retrofuturista da década de 1950 explode em cores. O apreço visual de Anderson já é característica intrínseca de suas obras e, em Asteroid City, tal dicotomia de cenários também dialoga com o equilíbrio do trágico e do cômico na narrativa. Repleto de núcleos paralelos, algumas tramas se perdem ao longo do caminho, o que justifica o longa dividir opiniões. Na atuação, os papéis dos veteranos Jason Schwartzman e Scarlett Johansson, e dos jovens Jake Ryan e Grace Edwards são unanimidade por acertarem o tom exato das poucas expressões. – Nathalia Tetzner
Barbie
Em 2023, Barbie pintou o Cinema de rosa. Com a direção de Greta Gerwig e a ajuda de Noah Baumbach em um roteiro que sabe não se levar a sério ao mesmo tempo que traz profundidade para a trajetória da protagonista, Margot Robbie deu vida a uma boneca que sempre tudo pôde ser, exceto transcender a sua natureza de plástico. Até o lançamento do filme, a criação de Ruth Handler – desenvolvida para adotar múltiplas personalidades e atuar com excelência em todas as profissões possíveis –, ainda não havia convencido poder ser uma humana por inteiro, com suas alegrias e angústias.
Isso mudou com o longa que transformou um modelo de padrão inalcançável em algo que todos podem se identificar. Barbie, uma boneca da Mattel definitivamente não projetada para ter o coração quebrado ou lidar com decepções, ganha dimensão, enfrentando aquilo que todos passam ou passarão em algum momento: a fatídica sequência de acontecimentos em que o universo dos sonhos se prova uma fantasia irreal. Mas, mesmo diante de toda a amargura do nosso mundo, Barbie deixou espaço para o imaginário infantil nos detalhes do design de produção e na emocionante cena sobre mães e filhas.
A magia desse ícone das brincadeiras de infância também não é perdida devido à dose de comédia cavalar que somente Ryan Gosling sabe entregar sem parecer uma esquete sem graça de quase duas horas. Nos atos musicais, o seu Ken brilha e consagra aquilo que todo estúdio almeja: a combinação explosiva entre um filme de sucesso e hits nas paradas musicais. Assim como descrito pelos primeiros trailers, Barbie é construída tanto para os amantes quanto para os haters da boneca, o que explica ter sido a maior bilheteria do ano, ultrapassando um bilhão de dólares. – Nathalia Tetzner
Bares, Bolos e Amizades (Sitting in Bars With Cake)
Dirigido por Trish Sie, Sitting in Bars With Cake (no original) é uma comédia dramática inspirada no livro homônimo de Audrey Shulman. O filme conta a emocionante história das amigas Corinne (Odessa A’Zion) e Jane (Yara Shahidi) ao se aventurarem entregando bolos em diferentes bares de Los Angeles para conhecer pretendentes amorosos, antes que esse plano desmorone em virtude de uma fatalidade. O longa-metragem fala sobre a vida, como os vinte anos parecem ser eternos e como tudo isso pode acabar em instantes.
Para aqueles que gostam de chorar por uma amizade em tela, aqui está o filme perfeito. Embora a temática girlhood não seja nenhuma novidade dentro do Cinema, Bares, Bolos e Amizades se diferencia de outras obras pelo seu elenco cativante – as atuações de A’Zion e Shahidi carregam quase toda a trama, que não é tão interessante como deveria ser. Além do talento das atrizes, a fotografia de Mateus Clark é essencial para embarcarmos na narrativa desejada. Com todas as cores, sabores e formatos, é quase impossível não desejar um pedaço de bolo após se debulhar em lágrimas pela jornada dessas amigas. – Ludmila Henrique
Batem à Porta (Knock at the Cabin)
Adaptação do livro O Chalé no Fim do Mundo, a obra Batem à Porta evoca as reflexões contemporâneas do fanatismo religioso sem perder a mão de seu thriller voraz e sobrenatural. Situado quase na totalidade em uma única locação, ficamos isolados em uma cabana remota quando um grupo de quatro estranhos toma como reféns uma criança e seus dois pais. Sem outra escolha, eles devem decidir quem irá se sacrificar para salvar o mundo do apocalipse. Neste frenesi caótico e claustrofóbico, o diretor M. Night Shyamalan utiliza de um drama ambíguo e politizado a favor de trabalhar suas imagens potentes sobre o caos presente na violência perpetuada em nossa sociedade.
Com nomes proeminentes no elenco, as excelentes atuações de Dave Bautista, Rupert Grint, Nikki Amuka-Bird e Abby Quinn como os quatro cavaleiros do apocalipse, atingem um nível de horror que invade cada cômodo em que se passa. Entretanto, Batem à Porta se destaca muito mais na maneira em que funciona como a união das diversas pautas do diretor, que representa naquele surto coletivo as alegorias que sempre focou: violência social, sobrenatural e a fé – por mais questionável que seja. Sua divisiva resposta aos males sociais surpreende na ambiguidade, mas ainda assim é suficientemente concisa em sua abordagem. – João Pedro Bronzoli
Clube da Luta para Meninas (Bottoms)
Clube da Luta Para Meninas explora em 90 minutos os temas propostos sem clichês e com bastante liberdade. Com a volta de Emma Seligman como diretora e Rachel Sennott como atriz e agora corroteirista, o trabalho das duas reflete o que já foi feito em conjunto em Shiva Baby (2020). Desenvolver enredos que saem fora da caixinha normativa hollywoodiana conhecida é um acontecimento cativante que podemos perceber em comum nos longas. Como destaque além da narrativa original, o filme conta com um elenco incrível que passa por nomes como Ayo Edebiri, Nicholas Galitzine e Havana Rose Liu.
A história gira em torno da criação de um clube falso por PJ (Rachel Sennott) e Josie (Ayo Edebiri), que são virgens, em uma tentativa de conquistar os líderes de torcida que gostam antes de ir para a faculdade. Com o cenário clássico de um filme estadunidense em um ambiente escolar, temos também um time de futebol americano que irá perturbar ainda mais a vida de Josie e PJ depois da criação do clube.
Por isso, é impossível dar errado quando é misturado todos os elementos de um clichê estadunidense com boas doses de ironia, queer e mulheres bonitas. Bottoms (no original) é um filme em que a amizade da dupla é muito bem trabalhada e gera um calorzinho no coração ao ver o amor que as duas têm entre si. Além de ter risadas garantidas, é certo que você terá inveja por não ter tido a ideia do clube antes. – Marcela Lavorato
Crescendo Juntas (Are You There God? It’s Me, Margaret.)
Religião é um dos temas mais traiçoeiros de se tratar nas telas. Por essa razão, Crescendo Juntas (que tem como título original Are You There God? It’s Me, Margaret) pode torcer o nariz daqueles que julgam um filme pelo poster. Porém, o longa, que veio após a diretora e roteirista Kelly Fremon Craig ganhar os holofotes de Hollywood com Quase 18, é o que trata do tema de forma mais singela e consegue conquistar do ateu ao crente.
Baseado no livro homônimo de Judy Blume – que negava uma adaptação de sua obra desde os anos 70 –, Crescendo Juntas conta a história de Margaret Simon, uma menina de onze anos, filha de uma mãe cristã e um pai judeu, que decidem não força-la a seguir nenhuma das duas religiões. Margaret sai da metrópole e se muda para uma cidade suburbana de Nova Jersey e, por conta de um trabalho escolar, decide estudar as crenças, a fim de se encontrar, não só na religião, mas no período mais transitório de sua vida.
O principal acerto do longa é entender que coming of ages não se limitam ao período da adolescência em direção a vida adulta. Envoltos pela personagem central de Abby Ryder Foston, a obra consegue trabalhar a importância da mãe de Margaret, em uma atuação sincera e cativante de Rachel McAdams, ao mesmo tempo que também discorre os desafios da mãe em se tornar um porto seguro para a filha. Do mesmo modo, ele constrói a relação com a avó, interpretada por Kathy Bates, em cima da adaptação que a matriarca precisa ter, agora distante da neta. Ao conceber que amadurecimento não tem data de validade, Crescendo Juntas é o melhor do gênero no ano, e um dos melhores em anos. – Guilherme Veiga
Dentro (Inside)
Angustiante, perturbador e metafórico: assim podemos definir Dentro. Estrelado por Willem Dafoe, a trama gira em torno de Nemo, um ladrão de artes que fica preso dentro de uma cobertura em Nova York. A direção de Vasilis Katsoupis foca em uma fotografia imersiva e provocativa, o que permite que o ambiente criado transpasse a tela e chegue ao telespectador, enquanto o roteiro de Ben Hopkins deixa margens para que o público faça suas próprias interpretações da produção. É o tipo de filme que te instiga a participar da narrativa e criar teorias sobre tudo o que acontece.
Dafoe, por sua vez, apresenta-se impecável no papel. O nível de insanidade que o autor consegue alcançar é, ao mesmo tempo, exemplar e assustador, e boa parte da qualidade do filme é devida à sua atuação. O desenvolvimento do suspense quase todo em único espaço e com foco em um único personagem torna possível compreender a complexidade de Nemo – e apreciar a genialidade do ator por 1h45 – até seu ponto mais crítico, no ápice da produção cinematográfica. Com tempo de duração ideal, Dentro não se prolonga mais do que o devido e consegue estimular a curiosidade do telespectador, deixando um gostinho de quero mais. – Gabriela Bita
Dungeons & Dragons: Honra Entre Rebeldes (Dungeons & Dragons: Honor Among Thieves)
Com Dugeons & Dragons: Honra Entre Rebeldes, dá para sentir que a equipe criativa esbanja carinho pelo universo e seus personagens. A adaptação do famoso jogo de RPG D&D marca o retorno do bom Cinema medieval em Hollywood. A dupla de diretores, John Francis Daley e Jonathan Goldstein, que já tinham trabalhado juntos na comédia A Noite do Jogo (2018), carregam um humor inspiradíssimo. Alguns momentos de comédia, como a cena do cemitério e a do derretimento facial, são trash e lembram Army of Darkness (1922) de Sam Raimi.
A mistura de CGI e efeitos práticos dão vida à fantasia e ajudam a ficção a se aproximar do momento em que o D&D foi criado e se popularizou, nas décadas de 70 e 80, além de tornar palpável e expressivo o remoto mundo medieval. Para se assemelhar ainda mais com o século XXI, os roteiristas acrescentam problemas verossimilhantes aos personagens e ao público, seja o sentimento de estar à margem da sociedade ou de ausência paterna.
Lembrando um jogo de tabuleiro, a aventura conta com o resultado improvável dos planos criados pelo personagem Edgin (Chris Pine), tal como o resultado da rolagem de dados. Um dos objetivos do RPG é progredir e conquistar melhorias – dinheiro, equipamentos, subir de níveis – e, no longa, isto não é diferente. Conforme o enredo avança, os personagens ganham coragem, aprendem a usar suas habilidades e até abdicam de sonhos por um bem maior. Dungeons & Dragons: Honra Entre Rebeldes te deixa com gostinho de quero mais sem precisar de pontas soltas ou cena pós-créditos para isso, se garantindo unicamente em uma história muito bem contada. – Davi Marcelgo
Elementos (Elemental)
No universo Disney Pixar, aqueles que amam romances batidos com personagens de personalidades totalmente opostas foram presenteados com Elementos em 2023. No longa, Faísca se muda com sua família em busca de melhores condições de vida para a Cidade dos Elementos, onde se apaixona e vive um romance imprevisível com Gota.
A Pixar foca em construir um amor pautado em um contexto real. O filme traz à tona a questão da desigualdade social, onde os elementos do fogo sofrem uma considerável discriminação em meio aos demais. Por serem quem são, eles não podem acessar boa parte da cidade, e acabam se abrigando em grande maioria nas zonas periféricas. Ao longo de sua duração, a obra cria um contraste nítido com a beleza e a ostentação do centro da cidade, lugar em que os elementos do ar, água, e terra vivem confortavelmente.
Apesar de todas as dificuldades, o objetivo do longa é representar o amor, tanto em contexto familiar, quanto na paixão dos personagens. Mesmo com a baixa adesão do público na estreia, Elementos deu a volta por cima e entregou bons resultados de bilheteria. Afinal, quem não gosta de assistir um clichêzinho emocionante no cinema? – Pâmela Palma
Fale Comigo (Talk to Me)
Que a A24 possui um catálogo de filmes invejáveis no currículo não é novidade alguma. Oferecendo liberdade criativa para seus diretores e impulsionando ao sucesso obras de alto nível, a produtora se mostrou um exemplo e ganhou cada vez mais a crítica e os telespectadores. Em 2023 não foi diferente: assim que adquiriram os direitos de distribuição de Fale Comigo, a A24 sabia que estava levando da Austrália para o mundo algo com potencial de se tornar um clássico. Dirigido pelos irmãos gêmeos Michael e Danny Philippou, o longa ganhou a alcunha de melhor terror de 2023 e tem muito a oferecer para quem decidir embarcar nessa jornada.
A história conta a vida de Mia, uma personagem que perde a mãe e desde então vive desolada pelo luto. Sozinha, a garota é a isca perfeita para o ritual de possessão que acontece em festas de adolescentes com uma espécie de objeto místico macabro: uma mão embalsamada cheia de escritos. O momento de 90 segundos é como uma droga, que vicia aquele que pratica e torna factível para quem assiste. Ao fugir do óbvio no que se segue, o longa demonstra maturidade recriando aquilo que já se observou anteriormente no gênero e oferecendo algo novo, nos fazendo ouvir tudo aquilo que ele pode falar por 95 minutos e permitindo sempre uma reprise. – Aryadne Xavier
Fechar os Olhos (Cerrar los ojos)
Fechar os Olhos começa como um filme antigo, intitulado The Farewell Gaze. Nele, vemos o detetive Gardel (José Coronado, de Um Contratempo) ser contratado pelo misterioso milionário Sr. Levy (Josep Maria Pou, de O Candidato) para encontrar sua filha desaparecida Qiao Shu (Venecia Franco). O último registro da jovem é uma foto antiga, com as marcas do tempo impressas em seu aspecto sujo e gasto. Consequentemente, a cena é também o último registro de Júlio Arenas, ator que dá vida ao investigador e que desapareceu logo após as gravações.
As marcas, nesse caso, são outras, como o grão estourado da película, por exemplo. No entanto, a situação não poderia ser menos parecida, pois, anos mais tarde, vemos um outro homem receber a missão de encontrar alguém. No caso, é o ex-cineasta Miguel (Manolo Solo, de O Bom Patrão), diretor do longa original, antes amigo pessoal de sua estrela desaparecida e agora incumbido por um programa de TV da tarefa de encontrá-lo.
Para o diretor Victor Erice (O Espírito da Colmeia), essa relação de espelhamento metalinguístico dentro de seu filme entre a realidade e a ficção é apenas o começo. Seu objetivo, de fato, é explorar a memória como um meio de busca e reencontro da nossa identidade. Nesse sentido, um gesto simbólico, como um nó de marinheiro, tem o mesmo valor que o deslumbramento de um homem ao olhar para o seu rosto sendo projetado na tela de Cinema. O resultado se traduz em algumas das cenas mais bonitas e melancólicas do audiovisual em 2023, como essas e outras. – Nathan Nunes
Ferro’s Bar
Tamanho não é documento e disso Ferro’s Bar bem sabe. O curta-metragem, dirigido a oito mãos por Nayla Guerra, Aline A. Assis, Rita Quadros e Fernanda Elias, reconta em poucos minutos o levante do Ferro’s Bar, em 1983, pela visão de mulheres lésbicas que frequentavam o local antes da invasão policial. Na época, o espaço era ponto de encontro para discutir sexualidade e gênero, mas também para apenas encontrar amigas, se vestir como bem entendesse e flertar com outras mulheres.
O bar, no centro de São Paulo, jamais foi transformado em local de memória, como recomenda o relatório da Comissão da Verdade. Nisso, o documentário faz o papel de relembrar o que não pode ser esquecido, não só pela resistência organizada à opressão e ao preconceito, mas pelo que se tornou um marco do movimento lésbico no Brasil. Na voz das pioneiras que estiveram presentes nos momentos de paquera, de luta (inclusive, no nascimento do lendário ChanacomChana) e de violência policial, Ferro’s Bar cria seu próprio espaço de lembrança, resistência e ode às mulheres lésbicas que estruturaram as bases para as que vieram depois. – Vitória Gomez
Folhas de Outono (Kuolleet Lehdet)
Não há nada como assistir a um casal de coitados que deveriam focar mais em engolir suplemento de vitamina D do que em cuspir seus trejeitos solitários um no outro. Folhas de Outono é o nada em nenhum lugar e em nenhum momento, ou seja, o diretor Aki Kaurismaki constrói a cinematografia a partir de uma lógica observadora responsável por ver tudo e, ao mesmo tempo, perceber pouco.
Quando não há coragem de chamar alguém de esquisito, opta-se por chamá-lo de peculiar. É o que faz as análises do filme finlandês cuja beleza disfuncional reside, sobretudo, na ressignificação da frieza. Europeus podem ser, sim, românticos, mesmo com tanta falta de molejo e empatia. Esta, aliás, parece ser um terceiro protagonista o qual não aparece fisicamente, mas sempre paira no ar gelado de uma narrativa que, no fim, vai muito além de um mero relacionamento, aventurando-se em declarações, na verdade, políticas, mais do que românticas. – Ana Cegatti
Guardiões da Galáxia Vol. 3 (Guardians of the Galaxy Vol. 3)
Guardiões da Galáxia Vol. 3 encerrou a trilogia de forma perfeita. O grupo de heróis teve a rara oportunidade no MCU de contar uma história isolada, sem a preocupação de sequências ou de apresentar conexões para a próxima grande saga do estúdio. Assim, James Gunn pôde desenvolver e aprofundar os seus personagens, dando um fim ideal ao arco do grupo que começou em 2014. O roteiro, escrito pelo próprio diretor, gira completamente em torno de seus protagonistas no momento presente: o que importa é o agora. Todos eles têm um momento no filme, o que permite concluir suas jornadas com maior proximidade. O grande destaque do longa vai para Rocket (Bradley Cooper), o único personagem da trilogia que não teve sua história desenvolvida até então.
James Gunn usou com maestria essa evolução, fazendo com que ela servisse de base para o argumento geral da trama. A jornada de Rocket é o fio condutor que permeia os arcos narrativos da equipe. Gunn consegue extrair sentimentos do público que há tempos não apareciam, graças às diversas histórias rasas e genéricas que pavimentaram os filmes de heróis nos últimos tempos. No entanto, os personagens de Adam Warlock (Will Poulter) e Gamora (Zoë Saldaña) compõem o ponto fraco da obra. Ambas as narrativas são forçadas na trama apenas com o intuito de não deixar pontas soltas, fazendo com que eles não se encaixam muito bem com o restante.
Guardiões da Galáxia Vol. 3 se mostra, enfim, como um dos grandes acertos da Marvel. Com o último filme, James Gunn fez uma carta de amor a esses personagens, que não eram conhecidos pelo público geral, e os transformou, dando novas personalidades e fazendo com que fossem amados como nunca foram. Tendo total liberdade para criar, Gunn fez um fechamento de ciclo que é todo coração, e é com um final lindo e emocionante que o diretor se despede da Marvel com um adeus digno aos heróis imperfeitos que tanto amamos. – Rafael Gomes
Godzilla Minus One
Depois do excelente Shin Godzilla (2016), as expectativas para o novo filme do Gojira feito pela produtora japonesa Toho eram altas. Os núcleos humanos em Godzilla (2014) e Godzilla vs Kong (2021), ambas produções estadunidenses, são desinteressantes e formam uma barriga colossal nas obras. Se o objetivo era fazer o espectador temer por alguma vida, o tiro saiu pela culatra e só serviu para causar tédio. Agora, dentre os ótimos elementos de Godzilla Minus One, a veia humana é, sem dúvidas, uma das melhores. Felizmente, os sete anos de espera valeram a pena e a obra se mostra como uma aula de como fazer filmes de monstros.
Kōichi Shikishima (Ryunosuke Kamiki) é um ex-kamikaze que pretende reconstruir a sua vida após ter tudo alterado pela Segunda Guerra Mundial. No entanto, tudo muda quando o Godzilla ressurge. Minus One acerta em fazer do kaiju uma alegoria para bomba atômica e todas as dificuldades que a sociedade japonesa enfrentou. Ele não é só um mero monstro, ele é a personificação de traumas e mazelas; então, enfrentar e vencer o Godzilla significa sair da escuridão. Por isso, é importante estabelecer vínculos entre os personagens e o espectador, porque Godzilla e o núcleo humano estão numa relação comensal.
As cenas de destruição da cidade e perseguição são relativamente curtas, mas abrigam uma posição amedrontadora no peito de quem assiste. O som da rajada radioativa, das explosões e dos rugidos são produzidos com alto profissionalismo. A morte é temida não só pelos laços humanos, mas também pela magnitude do poder a ser enfrentado. Godzilla Minus One foi indicado em apenas uma categoria no Oscar, mas, chutando baixo, deveria estar em pelo menos cinco – o que é pedir muito da premiação americana. – Davi Marcelgo
Homem-Aranha: Através do Aranhaverso (Spider-Man: Across the Spider-Verse)
Depois de Homem-Aranha: No Aranhaverso, muitos se perguntaram se seria possível se igualar a um filme tão ilimitadamente criativo e estilisticamente ousado. O maior receio do público era a possibilidade de que uma sequência não fizesse jus ao frescor, à energia e à vivacidade visual do filme. Por sorte, Homem-Aranha: Através do Aranhaverso aceitou o desafio e triunfou – não há um único momento dessa animação rica e caleidoscopicamente detalhada que não seja deslumbrante.
A sequência utiliza os temas básicos do primeiro filme e constrói mundos inteiros com eles. Muitos longas que abordam o multiverso usam o conceito simplesmente como um meio para atingir um fim, um dispositivo de contar histórias que pode burlar as regras narrativas para trazer personagens de volta à vida ou para transportá-los para novos mundos. Em outras obras, no entanto, o dispositivo narrativo tem o grande objetivo de explorar a raiz do que torna uma pessoa única quando há infinitas versões dela em universos paralelos. Através do Aranhaverso faz parte desse grupo, e não é exagero dizer que Joaquim dos Santos, Kemp Powers e Justin K. Thompson fizeram um trabalho excepcional. – Raquel Freire
How to Have Sex
Longe de soar didática ou performática ao retratar um dos considerados ritos de passagem da adolescência, a estreia de Molly Manning Walker na direção de longa-metragens até se aproveita de sensos comuns, como as noitadas regadas a álcool e libertinagem dos spring breaks americanos, mas não se blinda da crueza – diversas vezes revestida de crueldade – da experiência. Em How to Have Sex, três amigas embarcam em uma viagem à Malai, no litoral grego, para celebrar o fim do ensino médio. A expectativa é ainda maior em Tara, protagonista lapidada por Mia McKenna-Bruce que sente a tão sonhada perda de sua virgindade se transformar em um lento emaranhado de microagressões.
Nas entrelinhas do texto, também elaborado por Walker, contrasta-se o caráter que o sexo assume para meninas e garotos; enquanto a visão feminina fantasia com uma primeira vez prazerosa e terna, o ângulo masculino é atravessado pela violência da pornografia e do patriarcado desde sempre. Mas, conforme os abusos implícitos e verbalizados avançam através dos maneirismos de Mc-Kenna Bruce, o clima festivo da cidade segue inabalável. A luz solar não esconde seus antagonistas da dimensão emocional dada pela edição de Fin Oates, nem as cores vibrantes da fotografia de Nicolas Canniccioni obscurecem para deixar o trauma criar raízes. Isso porque, fora da ficção, histórias similares acontecem todos os dias, debaixo de nossos narizes e dentro de nossos círculos pessoais, e o mundo não paralisa para abraçar o vazio inexorável dessas vítimas. – Vitória Vulcano
Jogos Vorazes – A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes (The Hunger Games: The Ballad of Songbirds & Snakes)
Jogos Vorazes – A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes narra a história da juventude de Coriolanus Snow. O contexto se passa 64 anos antes dos primeiros jogos de Katniss (Jennifer Lawrence) e Peeta (Josh Hutcherson), apenas algum tempo após a grande guerra entre a Capital e os distritos. O filme conta com um elenco de peso, como Viola Davis e Peter Dinklage e alguns nomes emergentes como Rachel Zegler e Hunter Schafer. Mas o grande destaque do filme foi Tom Blyth, que deu vida ao futuro presidente Snow. Suas expressões, sua postura e seu desenvolvimento foram ótimos e deixaram os fãs impressionados.
A produção tinha um grande desafio: ser uma adaptação tão boa quanto as outras que vieram antes dela. Como a obra de Suzanne Collins é bem extensa, com quase quinhentas páginas, houve o debate sobre dividir ou não o longa em duas partes, já que a separação de A Esperança não agradou a todos. No final, o filme foi uma ótima adaptação; um pouco acelerado, mas bastante satisfatório. A mudança que se sobressai são os próprios Jogos, que se tornaram muito mais dinâmicos do que eram no livro, entrando no modelo do Cinema e agradando os espectadores. – Gabrielli Natividade
John Wick 4: Baba Yaga
Neon, tiros, coreografias de luta e música eletrônica vibrante se tornaram marcas registradas da saga John Wick, fruto da criatividade estilosa de Chad Stahelski. O primeiro filme da série já veio como um marco para o Cinema de ação; depois dele, os filmes do gênero abandonaram de vez o excesso de câmeras tremidas, as shaky cams, e voltaram a apreciar ao máximo os contrastes das luzes noturnas. O quarto filme poderia apenas reproduzir o que foi bem sucedido nos anteriores, mas os roteiristas colocaram quatro vezes mais zelo.
A trama do filme escrita por Shay Hatten e Michael Finch introduziu diversos personagens instigantes, quase alheios ao protagonista de Keanu Reeves e focados nas próprias histórias, que tem uma profundidade incomum a muitos filmes de ação. A cinematografia de Dan Laustsen é extremamente sagaz ao explorar a luz do sol e reflexos de espelhos, além do vários tons de neon da noite. John Wick 4: Baba Yaga marcou o ano com muita elegância e criatividade. – Guilherme Dias Siqueira
La Chimera
O Cinema quase rural e fantasioso da diretora italiana Alice Rohrwacher sempre busca uma perspectiva profundamente sentimental sobre a leitura da alma humana, seja da bondade do homem ou de suas contradições. Assim, como já havia feito maravilhosamente em Lazzaro Felice (2018), ela reitera ao denotar o caráter político do não pertencimento em La Chimera. Além disso, ela aprofunda essa sensação ao teor romântico com o personagem de Arthur, que se vê sem rumo após perder sua amada. Nessa perspectiva, o trabalho artístico da obra recai na delicadeza de encontrar o caminho dos andarilhos ou expressar os percalços da jornada deles, algo que Rohrwacher alcança duplamente.
Com a participação de Carol Duarte como a personagem Itália e Isabella Rossellini como Flora, os diversos vínculos de Arthur fazem o protagonista repensar as suas relações com a vida e as memórias. Ademais, o trabalho do personagem como caçador de tesouros perdidos demonstra a ambiguidade de quem deve escolher entre renegar o passado ou persegui-lo. Para mais do que essa busca, de quem precisa aprender a viver novamente. O acerto da diretora em se aprofundar na psique dos sem-rumo nos alcança com uma estética avassaladora. – João Pedro Bronzoli
Los Colonos
O longa de estreia de Felipe Gálvez Haberle pode não ter feito barulho nos cinemas brasileiros, mas encantou o júri da seção Um Certo Olhar do Festival de Cannes, onde saiu vencedor do Prêmio da Crítica, e da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, que o recebeu com uma sessão lotada. As 200 e poucas pessoas que, naquela noite, experienciaram Los Colonos ficaram imóveis nas poltronas enquanto a herança chilena era coberta de sangue em nome da colonização.
No filme, três homens são contratados por um cruel senhor de terras para abrir caminho da Patagônia chilena ao Atlântico, aniquilando o que houver pelo caminho. A travessia vira um show de horrores já que, ainda em 1901, com a independência do Chile recém-conquistada, partes mais remotas do país ainda eram habitadas por povos nativos, ocupando seus locais de origem antes de serem aniquilados por mãos estrangeiras.
Para além de acompanhar a matança pelo caminho, a própria dinâmica do trio deixa qualquer um angustiado, esperando pela próxima tragédia: um imprudente cowboy americano e um tenente britânico sanguinário trocam farpas, enquanto vigiam um indígena ‘mestiço’ contratado para ajudá-los a desbravar as terras de seus descendentes. O conflito de interesses do protagonista, vivido por Camilo Arancibia, personifica a construção do Chile, da matança em nome da civilização, e aprofunda a reflexão sobre uma colonização tão presente na América Latina. – Vitória Gomez
Monster (Kaibutsu)
Há muitas discussões a respeito do posto de maior vilão do Cinema. No meio de criaturas fantasmagóricas, psicopatas e homens amorosamente frustrados, o verdadeiro ser maligno é, na verdade, o sistema. Este, por sua vez, é a cola que gruda os pedaços do fragmentado Monster, um filho muito bem criado por Hirokazu Koreeda.
Assistir ao filme é uma experiência na qual dualidades – bem e mal, certo e errado – são colocadas em xeque. A tradição hollywoodiana difunde uma passividade entre os espectadores que os torna carentes de neurônios funcionais. Por conseguinte, treina-se um olhar o qual irá sempre buscar pelas mesmas fórmulas. Apesar disso, há ainda filmes cujo objetivo não é estar nos telões da Time Square, mas honrar os que, em vez de preferirem o quebra-cabeça pronto, almejam acompanhar sua montagem, peça por peça.
A vida pode ser resumida a uma gigantesca coleção de recortes. Muitas vezes olhamos pela janela e vemos apenas momentos cabíveis dentro de uma forma retangular. No entanto, quando abrimos a porta, descobrimos toda uma realidade invisível a olhos carentes de consciência de classe. O longa japonês nos convida a nadar em um rio mais fundo do que parece. No fim, ficamos imersos em uma narrativa a qual questiona: com quantas verdades se faz uma memória? – Ana Cegatti
Missão: Impossível – Acerto de Contas Parte 1 (Mission Impossible: Dead Reckoning Part One)
Se há uma certeza na franquia de Missão Impossível é que, desde a sua origem De Palmiana nos anos 90, os percalços da série passaram por altos e baixos, mas a variedade de abordagens autorais está presente em todos os filmes. Nesse sentido, com o envolvimento de Christopher McQuarrie na produção dos longas desde 2017, a jornada de Hunt encontra uma direção ao espetáculo cinematográfico que tem seu elo inevitável na visão de De Palma com a presença de uma das abordagens mais potentes na ação. Em uma obra movida por um Macguffin, Ethan precisa encontrar a chave que vai destruir Gabriel na primeira parte dessa nova missão, junto com um profundo confronto com seu passado e suas vivências.
Longe de vícios a um puro saudosismo, McQuarrie reafirma as estruturas da franquia alinhado com um senso de espetáculo que retoma boa parte do que consolidou Missão Impossível. Com as proporções da obra aumentando, a dinâmica de Ethan com seus parceiros se consolida nessa disputa interna que coloca em risco sua carreira e sua vida. – João Pedro Bronzoli
Nimona
Sofrendo mais que muitos para poder sair do papel, o projeto de animação de Nimona, originalmente uma graphic novel de ND Stevenson, chegou aos streamings em 2023 após longos oito anos de espera. Se distanciando em vários aspectos da original, a obra aproveita muito do meio audiovisual e se garante no básico bem feito. A história narra a vida de uma figura metamorfa, Nimona, que tem seus caminhos cruzados com Ballister Boldheart, um soldado do reino procurado por um crime que não cometeu. Em uma aventura que causa risadas e prende a atenção, o longa se desenrola em um tom amigável e em um ritmo agradável.
Ao tratar da pergunta “O que é você?” no decorrer de toda a obra, a animação cria uma segunda camada de interpretação muito mais profunda, que dialoga com aquilo que há de mais íntimo em se descobrir alguém fora dos padrões socialmente aceitos. Ao final, Nimona pode ter diferentes interpretações de cada um, mas acerta em cheio ao se tornar identificável e uma afirmação de grande carisma que está tudo bem em ser diferente e está tudo bem não se limitar apenas em uma caixinha; o universo é gigante e a gente pode ser tudo aquilo que a gente quiser. – Aryadne Xavier
Nuovo Olimpo
Com uma fotografia de brilhar os olhos, desenvolvida por Gian Filippo Corticelli, Nuovo Olimpo retrata um romance, inspirado em eventos verídicos, entre dois jovens na década de 70 em Roma. Envoltos por manifestações e contradições, Enea Monte (Damiano Gavino) e Pietro Gherardi (Andrea Di Luigi) se encontram em um set de filmagens nas ruas da cidade italiana. A metalinguagem é um aspecto muito explorado pelo filme – afinal, Enea é estudante de cinema, o que torna a narrativa ainda mais interessante para os amantes de filmes e para aqueles que sonham em encontrar seu par perfeito em uma sala de projeção.
O drama romântico de Ferzan Özpetek teve sua estreia no Festival Internacional de Cinema de Roma e tem sua narrativa formada por passagens entre o passado e o futuro. O desenrolar da trama emociona o telespectador e o roteiro de Özpetek e Gianni Romoli encontra o melhor final para a história, apesar de não ser o mais esperado. Abordando questões sensíveis que vão além do relacionamento do protagonistas, Nuovo Olimpo se configura como um filme de encontros, desencontros e destinos, além de ser uma adição de sucesso para o catálogo da Netflix. – Gabriela Bita
O Assassino (The Killer)
A notória meticulosidade de David Fincher é quase satirizada pelo próprio diretor em um filme que esbanja perfeccionismo e detalhismo, ao mesmo tempo que o observa como algo que não é necessariamente alcançável. O Assassino tem uma estética marcante, quase como se fosse feita por um autômato. Esse estilo robótico orna perfeitamente com o personagem de Michael Fassbender, um assassino frio e calculista mas que não pode escapar de uma realidade baseada no acaso e na falta de controle sobre os acontecimentos.
Apesar de uma participação modesta, a atriz brasileira Sophie Charlotte interpreta um importante papel na trama, que apesar de não ter muitos detalhes, conta com discussões e dilemas profundos. Ainda que o protagonista não queira de modo algum se desviar do seu propósito, seus próprios pensamentos o dominam, acabando por ser levado da posição de controlador à de controlado. O Assassino é um neo noir marcante que deveria ser visto como símbolo de seu subgênero. – Guilherme Dias Siqueira
O Livro dos Sonhos (La Chambre des Merveilles)
A narrativa francesa de O Livro dos Sonhos, dirigido por Lisa Azuelos, é o tipo de clichê que aquece os corações. O filme conta a história de Thelma (Alexandra Lamy), uma mãe que faz o possível e o impossível para realizar os sonhos de seu filho Louis, enquanto ele está em coma devido a um acidente. Apesar de parecer sem propósito, o roteiro, de Fabien Suarez e Juliette Sales, tem como objetivo maior falar sobre perda, descobertas, libertação e muito mais dos temas sensíveis que rodeiam a vida e a morte.
Além dos acontecimentos muito bem construídos, vale destacar a presença de Maria Fernanda Cândido como Paula, uma personagem com pouco tempo de tela, mas muita coisa a dizer. A atuação magnífica da atriz brasileira é responsável por grande parte das reflexões da trama e é um dos pontos mais emocionantes do longa-metragem. Entre busca, esperança, renascimento e outros efeitos causados por acontecimentos drásticos, assistir O Livro dos Sonhos é uma experiência apreensiva e linda. – Jamily Rigonatto
O Menino e a Garça (Kimitachi wa Dou Ikiru ka)
Após a trágica morte de sua mãe no cenário de guerras, Mahito Maki precisa se mudar para o campo, onde seu pai trabalha para uma família fabricante de aviões para o exército japonês. Nem tão sozinho assim, o menino lida com a perda em contato com a natureza e uma garça, que posteriormente revela o fato de que sua mãe ainda está viva.
Após a notícia, os personagens partem em busca da mãe em uma aventura ilustrada e imersa na animação 2D tradicional do Estúdio Ghibli. Sob a direção de Hayao Miyazaki, famoso por A Viagem de Chihiro e Meu Amigo Totoro, O Menino e a Garça relembra metáforas clássicas de suas obras: o vôo significando a liberdade e a guerra trazendo o panorama histórico e pessoal de Miyazaki. O filme é embriagante para qualquer um que ame animações, e a tradicionalidade e beleza nos movimentos tornam a obra hipnotizante. – Amábile Zioli
Os Rejeitados (The Holdovers)
Filmes coming of age, aqueles que se concentram em desenvolver um personagem que está nos primeiros estágios da vida adulta, são um dos subgêneros do Cinema mais legais de acompanhar. Em Os Rejeitados, o incompreendido Angus Tully passa o recesso do final do ano com o professor Paul Hunham e a cozinheira Mary Lamb em um internato. Como diz o próprio título do longa, a narrativa é contada por meio da rejeição que cada um dos três personagens principais passa em suas respectivas vidas.
No futuro, espera-se que o filme dirigido por Alexander Payne se torne um clássico do Natal, já que se passa nessa época e subverte um feriado marcado por amor em dias infinitos de solidão por meio de três gerações. Sendo o primeiro trabalho do novato Dominic Sessa, Os Rejeitados faz jus à carreira do veterano Paul Giamatti e, com o roteiro de David Hemingson (um dos maiores destaques), entrega à Da’Vine Joy Randolph (The Idol) cenas de tirar o fôlego. O longa-metragem é o encontro perfeito entre histórias de amadurecimento e tramas natalinas, se tornando um deleite para qualquer um que ame essas narrativas. – Guilherme Machado Leal
Os Segredos do Universo por Aristóteles e Dante (Aristotle and Dante Discover the Secrets of the Universe)
Inspirado no best seller de Benjamin Alire Sáenz, a produção audiovisual Os Segredos do Universo por Aristóteles e Dante é um retrato sensível de um dos romances LGBTQIA+ mais aclamados dos últimos tempos. O longa-metragem, dirigido por Aitch Alberto, adapta com bastante verossimilhança a história dos dois jovens de ascendência latina e nome peculiar que se apaixonam, mas com algumas alterações necessárias ao tempo de tela que tinha disponível.
O filme traz Ari (Max Pelayo) e Dante (Reese Gonzales) bem caracterizados a apropriados para a idade que representam ter. Ainda assim, existem mudanças consistentes e importantes no roteiro, com o corte de cenas mais íntimas que não teriam como fazer sentido com o amadurecimento mais veloz dos protagonistas nas telas. Além disso, o polêmico discurso transfóbico presente em uma das páginas do livro não ganha espaço, o que é essencial para a integridade ética da obra. Em suma, o enredo continua emocionante como o esperado e, se não descobrimos os segredos do universo, com certeza desvendamos os da doçura da autodescoberta. – Jamily Rigonatto
Oppenheimer
Filmes biográficos caminham por diversas linhas tênues, necessitando cuidados relacionados com a precisão dos fatos narrados, formas de trabalhar a história para torná-la interessante, escolha de elenco, entre outros pontos. Especialmente um filme de guerra, pois o gênero sofre, por vezes, com o problema de ‘ser mais do mesmo’. No entanto, quando bem feitos, os dois gêneros podem brilhar e contar histórias fascinantes, e esse é o caso de Oppenheimer, de Christopher Nolan.
O filme conta a história do físico teórico Robert Oppenheimer (interpretado por Cillian Murphy), conhecido como o ‘pai da bomba atômica’. A obra de Nolan se inicia com a trajetória acadêmica do cientista, quando estudou na Europa e achou sua paixão: a física quântica. O filme, então, vai até ao ponto alto (e terrível) da carreira de Oppenheimer, quando lidera o Projeto Manhattan, responsável pelas bombas que destroem as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki.
As atuações brilhantes de Emily Blunt como Katherine ‘Kitty’ Oppenheimer, Matt Damon como Leslie Groves, Robert Downey Jr. como Lewis Strauss e Florence Pugh como Jean Tatlock deixam tudo ainda melhor. Sem contar com a belíssima e inquietante trilha sonora composta por Ludwig Göransson. – Marina Barrelli de Carvalho
Pânico 6 (Scream VI)
A saga Pânico marcou o cinema de terror quando foi lançado nos anos 1990 e, desde então, novos capítulos são adicionados a essa história envolvente. Em Pânico 6, Sam (Melissa Barrera) e Tara (Jenna Ortega) – que, novamente, se destacaram por suas atuações – lidam com as consequências do último massacre e tentam uma nova vida em Nova York. O filme segue a mesma fórmula dos anteriores, mas tem os novos avanços tecnológicos e uma ousadia que agrada quem assiste. O mais novo lançamento eleva a violência típica, sendo um ótimo representante do gênero slasher.
Seguindo o quinto filme da franquia, fantasmas do passado são trazidos de volta. Todos já esperavam o retorno de Gale Weathers (Courteney Cox), mas o que deixou os fãs chocados foi a volta de Kirby (Hayden Panettiere), que teve um final aberto em Pânico 4. A personagem é bastante carismática e foi uma ótima adição ao roteiro. Outro retorno interessante foi o do personagem que iniciou toda essa trajetória, Billy Loomis (Skeet Ulrich), que está presente no longa como uma visão de Sam, sendo essencial para o seu desenvolvimento e sua batalha interna com a sua própria ética. – Gabrielli Natividade
Passagens (Passages)
O diretor Ira Sachs construiu uma carreira sobre o tema comum de relacionamentos amorosos, em suas inúmeras formas. Em Passagens, o americano se uniu ao roteirista brasileiro Maurício Zacharias para a quinta colaboração da dupla. O filme acompanha o triângulo amoroso confuso que se conecta pelo protagonista, Tomas, um homem impulsivo e indeciso sobre o que quer.
O filme compreende que o processo de autodescoberta não é sempre agradável, muito menos linear. É um respiro assistir um protagonista que não é restrito a ser compreendido ou sequer perdoável. Como na vida real, sua trajetória pode te colocar como o vilão na história de outros. Passagens explora isso: como as nossas relações impactam as vidas de outras pessoas, aqueles que passam pelas nossas vidas e por cujas vidas nós passamos. – Giovanna Freisinger
Perdida
Fãs de Orgulho e Preconceito, Jane Austen, Bridgerton e afins, uni-vos: Perdida chegou às telas brasileiras em 2023 para surfar no nosso hype e saudade de Anthony e Edwina. Aqui, misturamos a correria de São Paulo, os amores efêmeros, a época das redes sociais e da pressa de viver da cidade com os campos, o passado, vestidos de época e cortejos do século 19.
Apossando-se do discurso ‘eu nasci na época errada’, Sofia (Giovanna Grigio) se vê em dúvida dessa afirmação quando, de fato, é transportada para bem longe de tudo aquilo que ela conhece para ficar perto dos charmes do gentleman Ian (Bruno Montaleone).
É inegável que temos muitos clichês e poucas surpresas, mas não podemos deixar que eles ofusquem todos os detalhes e beleza do longa. Em uma produção que não fica para trás das internacionais, Perdida é um ótimo presságio para um futuro de adaptações brasileiras ainda mais brilhantes. – Clara Sganzerla
Pobres Criaturas (Poor Things)
Banhado em uma estética surrealista (e colorida em sua maioria), Pobres Criaturas conta a história de Bella Baxter (Emma Stone) e sua jornada de autodescoberta, em busca do que realmente significa ser humano. O nono filme do diretor grego Yorgos Lanthimos – conhecido por suas obras excêntricas, como Dente Canino (2009) –, baseado no romance homônimo de Alasdair Gray, apresenta um retrato cru e explícito da natureza humana desde seu estado mais primitivo até o amadurecimento e independência. Contornando essa narrativa, o filme também propõe reflexões relevantes que exploram os inúmeros lados da moeda humana, sempre de forma atemporal e intransigente.
Os momentos e diálogos provocativos são regados por performances impecáveis em personagens como a própria protagonista Bella, o charlatão Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo) e o cientista Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe), sendo que cada figura possui uma personalidade única – e imperfeita, como o filme faz questão de nos mostrar. A trilha sonora abstrata e dissonante de Jerskin Fendrix casa perfeitamente com o visual absurdo da obra. Além disso, os cenários e figurinos cativam os olhos de qualquer espectador ao longo do filme, muitas vezes contrastando com os temas ásperos tratados acerca do desprendimento de quaisquer normas e padrões que a sociedade impõe a si própria. – Leandro Santhiago
Priscilla
Nas cores pastéis de Priscilla, conhecemos a história da ingênua jovem que se apaixonou por Elvis Presley. Indo de uma inocência pueril para uma maturidade adulta, Cailee Spaeny faz uma Priscilla Presley com muito louvor: a evolução marcada por mudanças no cabelo, nas roupas e na maquiagem quase nos fazem esquecer que a personagem era uma criança quando conheceu o astro do rock and roll. O filme ainda contou com a atuação divertida e levemente assustadora de Jacob Elordi como Elvis Presley. Cheio de energia e sex appeal, Elordi arrasou corações dentro e fora do longa.
Depois de On The Rocks (2020), Sofia Coppola fez seu retorno às telonas com Priscilla. Após sua estreia no 80º Festival Internacional de Cinema de Veneza e no Festival do Rio, o filme foi lançado no final de 2023 nos cinemas brasileiros. A diretora – que tem como marca registrada contar histórias sobre mulheres – traz novamente visuais graciosos, uma trilha sonora bem-pensada e uma fotografia que nos transporta para os anos 60. – Laura Hirata-Vale
Propriedade
Exibido no Festival do Rio, Propriedade traz os ecos do passado colonial brasileiro para os dias atuais. Na trama, a estilista Tereza (Malu Galli) e o marido vão para a fazenda da família e se deparam com um motim em curso. Os funcionários da propriedade ilustram uma situação de escravidão moderna: trabalham para pagar a moradia e alimentação na própria terra dos patrões, sem nenhum tipo de segurança e com os documentos confiscados até quitarem suas dívidas impossíveis. A centelha da rebelião é o anúncio de que serão despejados porque o local será vendido – mas não sem antes pagar o que devem.
Como lembra Dona Antônia, personagem vivida intensamente por Zuleika Ferreira, os trabalhadores estão naquelas terras há mais tempo que o dono atual. A tomada do controle da propriedade vem seguida de mortes e brigas internas, já que a própria abordagem dos funcionários não é um consenso entre eles. O ápice da tensão é a presença de Tereza no meio: ela conseguiu escapar da casa e ficou trancada dentro do próprio carro blindado, mas sem conseguir tirá-lo de lá.
O diretor Daniel Bandeira (de Vinil Verde) não propõe soluções fáceis. O diálogo é na base da paulada, mostrando que cada lado quer, acima de tudo, sua própria sobrevivência e liberdade. É tão fácil torcer para Tereza sair ilesa de lá quanto para as famílias que vivem na fazenda finalmente se livrarem das garras escravocratas de seus patrões. A oposição vira uma caçada e a conclusão é longe de unânime, deixando a moral da história a cargo de quem quiser pensar. – Vitória Gomez
Que Horas Eu Te Pego? (No Hard Feelings)
Há tempos que a nostalgia tem tido protagonismo quando falamos de comédias românticas, seja pelos atuais roteiros rasos, atuações fracas ou pela falta de capas icônicas com fundos brancos que ditaram sucessos atemporais. Felizmente, Que Horas Eu Te Pego? prova que ainda temos sinais de vida no gênero – e mais que isso, fazem doer a barriga!
Com uma progressão fantástica e um clímax muito bem construídos, a leveza do longa amplia todas as emoções de uma atriz veterana (Jennifer Lawrence) quando contracena com o novato Andrew Barth, além de criar uma química surpreendentemente tensa e engraçada. Em um domingo à tarde, não há escolha melhor. – Henrique Marinhos
Retratos Fantasmas
Depois de Bacurau, especulou-se muito sobre o que seria o próximo projeto de Kleber Mendonça Filho. No filme Retratos Fantasmas, o diretor volta à cidade natal e conta, pelas lentes de alguém que vive da Sétima Arte, a história dos cinemas de rua no centro de Recife. Ao mesmo tempo em que é considerado um longa-metragem, o pernambucano utiliza algumas técnicas usadas em documentários, e é aqui que ocorre o triunfo da trama. Servindo como uma forma de acervo para o próprio diretor, é através do conhecimento amplo de Mendonça Filho que o espectador avalia o desmantelamento do cinema como espaço cultural.
História, Geografia, suspense e comédia definem o sentimento após o encerramento de Retratos Fantasmas, uma vez que o diretor situa o público acerca dos pontos principais de Recife, bem como a história que ali ocorre. Fora isso, KMF também brinca com o suspense por meio da comédia e a escolha de sons que remetem ao slasher, subgênero do terror. Infelizmente, o longa não conseguiu uma vaga na disputa de Melhor Filme Internacional no Oscar 2024, mas a conversa em torno dele será imortalizada, assim como o amor pelo Cinema, que preenche e dá sustentação às obras do nordestino. – Guilherme Machado Leal
Rye Lane – Um Amor Inesperado (Rye Lane)
Rye Lane é o primeiro longa-metragem da diretora Raine Allen-Miller e conta a história de Dom e Yas, um jovem casal que passa um dia juntos aprendendo a lidar com as suas emoções após seus respectivos términos com outras pessoas. Discutindo relações e amores passados, os personagens quebram estereótipos de gênero de forma sensível e envolvente.
Remetendo também a Antes do Pôr do Sol, o filme é prazeroso e verdadeiramente apaixonante. A complexidade do relacionamento dos personagens é cativante, uma vez que pode-se observar como os dois estão dispostos a adentrar o mundo um do outro, ainda que de maneira efêmera, não tendo ao menos a certeza de que ficarão juntos no final. – Rebecca Ramos
Saltburn
Nada é notório ou exato. A obsessão de uma vida fantasiada desfruta da aparência inocente e não tem nada além de um desatino exuberante e uma cobiça em conquistar ainda mais. O glamour da aristocracia inglesa passada de pais para filhos, futuros sucessores de uma riqueza geracional, adentram o íntimo de Oliver Quick (Barry Keoghan). Oliver, calouro na Universidade de Oxford e sem relevância na esfera milionária dos outros estudantes, encontra em Felix Cotton (Jacob Elordi) uma rachadura permeável na qual ele se molda, sem dó e nem piedade, para tomar tudo que deseja.
Em Saltburn, acompanhamos a insanidade da mente em ação, um conflito pessoal sobre se apaixonar por pessoas que detestamos. Sendo o segundo longa-metragem de Emerald Fennell, o thriller psicológico se desenrola durante o verão onde todos da elite abraçaram o delírio. Cada personagem garante uma personalidade única, camadas de luxo e uma fascinação pelo excêntrico. Acentuando com mais profundidade essa admiração pelo bizarro, a fotografia de Linus SandGren é, sem dúvidas, um dos pontos mais altos do filme. Um espetáculo entre o gótico e a estética barroca, que sustenta inteiramente a sátira macabra das diferenças de classes roteirizados por Fennell. – Ludmila Henrique
Segredos de Um Escândalo (May December)
Quando você vê a assinatura de Todd Haynes em uma produção, pode saber que é coisa boa. Se reformulando em sua filmografia, o diretor dessa vez aborda a história real de Mary Kay Letourneau e Vili Fualaau, que engataram um relacionamento quando tinham 36 e 13 anos, respectivamente. Aqui eles viram Gracie e Joe, e após as polêmicas submersas numa vida de subúrbio, tem seu passado desenterrado por Elizabeth Barry, uma atriz que passa um tempo na família para estudar Gracie, papel que ela desempenhará em um filme independente.
Com uma atmosfera de novela, muito familiar a nós brasileiros, Haynes constrói, assim como na tortura chinesa, um suspense latente que goteja em nossa cabeça até se tornar insuportável, culminando num desmoronamento daquele castelo de farsas construído por Gracie. Isso se dá, em grande parte, nas atuações do trio. Julianne Moore dá vida a uma esposa meticulosamente calculista que controla a todos em um misto de ingenuidade e poder. Natalie Portman imprime uma atriz que se deixa levar até demais pelo método e rompe barreiras éticas, enquanto Charles Melton saiu dos esgotos de Riverdale para ressurgir como um Joe atado a um escândalo, carregado de traumas que nem ele mesmo reconhece.
Segredos de Um Escândalo definitivamente merecia mais reconhecimento, seja nas premiações ou até mesmo em sua distribuição (lá fora ele é da Netflix, mas aqui chegou de maneira tímida aos cinemas para cumprir tabela na temporada). Mas isso é entendível por ser uma produção feita naturalmente para incomodar, traçando uma crítica 360º da indústria acerca de casos reais, seja pelo consumo dos telespectadores ou pelo sensacionalismo dos idealizadores, capaz de girar a faca ainda mais nos estômagos das vítimas. – Guilherme Veiga
Sem Coração
Das cinebiografias ao terror, o Brasil não deve nada ao Cinema estrangeiro. Com Sem Coração, o audiovisual nacional ganha um coming of age delicioso para chamar de seu. A trama acompanha Tamara (Maya de Vicq) em suas últimas semanas na vila pesqueira onde mora antes de se mudar para estudar em Brasília. Por lá, ela ouve falar de uma menina apelidada de Sem Coração (Eduarda Samara), que, envolta em mistério, mexe com a cabeça dela e dos amigos.
Os acontecimentos enigmáticos que envolvem a interação das duas são curiosos de se assistir, mas escondem algo ainda mais profundo por trás: o nascimento de uma conexão inexplicável, algo tão incompreensível quanto descobrir a própria sexualidade ao se apaixonar pela primeira vez. Com os cenários paradisíacos da praia alagoana ao fundo, o grupo de adolescentes aproveita o mar, invade casas alheias ao som de risadas e provocações, discutem seus futuros, medos e esperanças, e defendem uns aos outros com a própria vida, se for necessário – um companheirismo que dá saudade dos dias intensos de infância. – Vitória Gomez
Todos Menos Você (Anyone But You)
Sem Tinder, sem Instagram, sem um blind date arranjado pela melhor amiga e sem flertes por mensagem, Todos Menos Você consegue resgatar o clichê do acaso como o brilho especial para o romance de Bea (Sidney Sweeney) e Ben (Glen Powell). Aproveitando-se também da famosa e adorada fórmula enemies to lovers (ou seria lovers to enemies to lovers?), a direção de Will Gluck fez sucesso não só por preencher a falta de romcoms de qualidade do catálogo, mas pela química e tensão sexual entre os protagonistas.
Para viralizar dentro e fora das redes e resgatar a magia de um bom romance em tela, bastou adicionar ao roteiro uma viagem internacional, um casamento na praia, um quarteto amoroso, algumas cenas vergonhosas (que só quem assistiu Cassie Howard conseguiu sobreviver sem tantos arranhões) e uma trilha sonora chiclete para que o assunto do momento fosse, ao som de Unwritten, Todos Menos Você. – Clara Sganzerla
Todos Nós Desconhecidos (All Of Us Strangers)
A produção de Andrew High, Todos Nós Desconhecidos, ganhou notoriedade principalmente pelos outros trabalhos dilacerantes, mas indiscutivelmente encantadores, dos protagonistas. Lançado em Dezembro de 2023, o longa criou um imaginário coletivo sem muitos precedentes.
A princípio, acompanharíamos o nascer do relacionamento de um escritor de meia idade solitário, Adam (Andrew Scott), e seu novo vizinho Harry (Paul Mescal). Mas, sem qualquer aviso prévio, tudo começa a fazer sentido enquanto nossas expectativas se quebram em mil pedaços.
Desde a fotografia (Jamie D. Ramsay) à montagem (Jonathan Alberts), a veia artística e representativa é muito forte. Nos imaginamos em seus lugares e vivemos um amor recente em seu impulso mais primitivo. Em ambientações noturnas e dramáticas, Todos Nós Desconhecidos vale cada segundo de emoção, dúvida e lástima. – Henrique Marinhos
Um Pacto de Amizade (Prom Pact)
Mandy Yang (Peyton Elizabeth Lee) tem um sonho: ir para Harvard. Porém… ela foi para a lista de espera. E agora? Seguindo a recomendação de Ms. Chen (Margaret Cho), sua conselheira escolar, a estudante vai atrás de uma carta de recomendação. Usando um método ambicioso e – no mínimo – curioso, a menina resolve se aproximar do garoto mais popular da escola, o jogador de basquete Graham Lansing (Blake Draper), cujo pai é senador e ex-aluno da faculdade mais desejada pela protagonista. Enquanto isso, Yang firma um pacto com seu melhor amigo, Ben Plunkett (Milo Manheim): ir ao baile de formatura juntos.
Um Pacto de Amizade é, de várias formas, uma ode à nostalgia. Com muitas referências aos famosos filmes sobre o Ensino Médio americano, como a querida trilogia High School Musical, podemos retornar à infância recheada pela Sessão da Tarde e pelo Disney Channel por meio do Disney+. Além disso, o longa ainda homenageia os anos 80: a década foi o tema escolhido pelos alunos para o prom, o famoso baile de formatura estadunidense. – Laura Hirata-Vale
Vermelho, Branco e Sangue Azul (Red, White & Royal Blue)
Baseado no livro homônimo de Casey McQuiston, o filme Vermelho, Branco e Sangue Azul mergulha em um romance LGBTQIA+ entre o filho da presidente dos Estados Unidos, Alex Claremont-Diaz (Taylor Zakhar Perez), e o príncipe da Inglaterra, Henry (Nicholas Galitzine). A adaptação, dirigida por Matthew López, acerta em cheio ao satisfazer o novo desejo de Hollywood à volta das comédias românticas, ainda mais com a inclusão queer que tanto ansiamos.
O longa captura com detalhe as delicadezas e intensidades do início de uma relação, explorando o desenvolvimento do relacionamento entre Alex e Henry, desde a inimizade até o amor. As cenas sensuais, bastante intensas até para o Prime Video e bem dirigidas, contribuem para a química inegável entre os protagonistas. Outro ponto positivo é a fotografia de Stephen Goldblatt, que, apesar de sofrer com algumas telas verdes, captura muito bem as emoções dos personagens e o contraste de seus sentimentos.
Além disso, a adaptação consegue superar o livro original em alguns aspectos, principalmente na construção dos diálogos, na dinâmica do relacionamento entre Alex e Henry e a pitada de humor e energia feminina evocadas por Uma Thurman no papel de presidenta dos EUA e por Sarah Shahi como chefe de gabinete. Considerando a produção como um todo, Vermelho, Branco e Sangue Azul é um filme divertido que acalenta o coração, com algumas falhas apressadas, mas que não impedem que seja uma experiência agradável e memorável. – Arthur Caires
Vidas Passadas (Past Lives)
Felizmente, ao menos uma vez por ano, o Cinema passa pelo momento em que uma nova estrela entra em cena. Isso aconteceu em 2022 com o célebre Aftersun, de Charlotte Wells, e em 2023 com o terno Vidas Passadas, de Celine Song. O longa acompanha a trajetória de dois amigos de infância ao longo dos anos através de reencontros e separações. É uma história melancólica e significativa sobre duas pessoas, as crianças que foram e os adultos que se tornaram.
A estreia de Celine Song na direção vai além de qualquer expectativa ao passo que ela tece, com muita habilidade, uma vasta combinação de emoções que é, ao mesmo tempo, sutil e profundamente sincera. Past Lives (no original) é, em sua essência, uma ode ao amor que se esvai. Uma narrativa assombrada pelas milhares de possibilidades daquilo que nunca aconteceu, mas que, ainda assim, consegue enxergar a beleza e o valor do tempo e das lembranças. – Raquel Freire
Wonka
Revisitar o passado de uma personalidade tão marcante no universo cinematográfico pode ter seus desafios. Sendo um prequel de A Fantástica Fábrica de Chocolate (1971), Wonka apresenta as primeiras aventuras de Willy, antes de se tornar o incrível chocolateiro metade mágico que conhecemos. Dos mesmos diretores de Paddington (2014), Paul King se dedicou em contar uma boa e açucarada história, mantendo a essência das outras adaptações, mas construindo uma narrativa nova e criativa.
A composição da obra não poupou em parecer exagerada – do enredo até os efeitos visuais permeia-se o fantástico, brincando com o imaginário e resgatando nosso lado sonhador. A cereja do bolo foi Timothée Chalamet como protagonista. O ator, além de cantar, entregou um lado mais inocente e amigável do personagem, distanciando-se totalmente da imagem enigmática promovida por Tim Burton e executada por Johnny Depp em 2005. – Ludmila Henrique