Há 15 anos, o clássico de Jane Austen estreava no cinema com orgulho, mas sem preconceito

“É estranho pensar que todas as grandes mulheres da ficção tenham sido, até o advento de Jane Austen, não só retratadas pelo outro sexo, mas apenas de acordo com sua relação com o outro sexo”.   (Virginia Woolf)

Na foto vemos cinco mulheres numa sala, com a protagonista, Elizabeth Bennet, na frente
Da esquerda para a direita: Kitty, Sra. Bennet, Elizabeth, Lydia, Jane e Mary, ao fundo (Foto: Reprodução)

Vanessa Marques

Orgulho e Preconceito (2005), dirigido por Joe Wright, é a adaptação para o cinema da obra famosa de Jane Austen. Sob uma capa de aparente inocência, a trama retrata os costumes rígidos e patriarcais da aristocracia rural inglesa do século 19. Estrelado por Keira Knightley (Elizabeth Bennet) e Matthew Macfadyen (Darcy), o longa-metragem, que retornou ao catálogo da Netflix em seu ano de debutante, mergulha o espectador numa estética delicada e sensorial, fruto da tríade indicada ao Oscar — produção, direção de arte e trilha sonora.

A família Bennet, composta de cinco irmãs e nenhum filho homem, vive o desprazer de não possuir um herdeiro legítimo, visto que a mulher, pela Lei do Morgadio, não desfrutava do direito à herança. Nesse sentido, o casamento era a única fonte de segurança financeira e estabilidade, de modo que a matriarca Sra. Bennet (Brenda Blethyn) aspira casar suas filhas com rapazes abastados. Assim, a notícia da fixação temporária de Charles Bingley (Simon Woods), homem de posses e solteiro, numa propriedade vizinha aos Bennet, traz certa agitação para a vida pacata da família.

Durante os bailes e demais protocolos sociais, a ingênua Jane Bennet  (Rosamund Pike) captura a afeição imediata do novo morador de Netherfield Park. Na companhia de Bingley, o Sr. Darcy, embora mais endinheirado que o amigo, demonstra uma natureza taciturna e reservada. A primeira aparição do protagonista dá-lhe uma feição excessivamente blasé e arrogante. Logo, a relação dele com Elizabeth, oriunda de uma condição menos privilegiada, nasce entre diversas turbulências, dentre os quais obstáculos internos (orgulhos) e externos (preconceitos sociais).

Na foto vemos oito persoangens numa sala clássica
O figurino do filme foi criado por Jacqueline Durran, que também assinou os figurinos de Anna Karenina (2012) e Little Women (2019) (Foto: Reprodução)

Keira Knightley, a mocinha de Piratas do Caribe, interpreta uma protagonista incisiva, perspicaz e contestadora. Elizabeth não partilha das ambições econômicas da progenitora quanto ao matrimônio. Na realidade, ela se prova uma jovem expansiva que não teme expor enfaticamente as suas ideias. Como comenta a esnobe Lady Catherine (Judi Dench), Elizabeth “dá a própria opinião de forma decisiva para uma pessoa de tão pouca idade”. Com efeito, quando o primo Collins (Tom Hollander) a pede em casamento, Lizzy recusa por enxergar a faceta caricata e pedante daquele homem. O fato de ele ser o único potencial candidato a herdeiro do Sr. Bennet (Donald Sutherland) pouco faz diferença. Ela triunfa ao impor a sua vontade, contrariando a regência patriarcal e a lógica comercial vigente nos acordos matrimoniais.

Embora o romance seja o fio condutor do título original, a autora era particularmente isenta de sentimentalismo. Em seus livros, Austen desenvolveu os casais por meio de diálogos rápidos e mordazes, em oposição ao romantismo exagerado que lhe foi contemporâneo. O realismo, a ironia e o anti-sentimentalismo pouco são explorados no filme, que destaca a tensão entre os pares opostos, o despertar da paixão repentina e o melodrama. É construído um romance altamente idealizado, desprovido de apelo sexual, que não hesita em esbanjar olhares e declarações profundas de Darcy ao longo do enredo.

Na foto vemos ambos os protagonistas juntos ao amanhecer, Darcy e Elizabeth.
O longa-metragem recebeu quatro indicações ao Oscar 2006 nas categorias Melhor Atriz, Melhor Direção de Arte, Melhor Figurino e Melhor Trilha Sonora (Foto: Reprodução)

O enfoque atribuído para a narrativa do casal, entretanto, leva ao equívoco comum de se pensar que a obra originária e sua criadora eram decididamente românticas. A escritora, que nunca se casou e introduziu críticas sociais em seus escritos, não era romântica. Austen criava personagens femininas complexas e satirizava as contradições e futilidades da aristocracia inglesa. O seu advento, conforme Virginia Woolf reiterou no ensaio Um Teto Todo Seu (1929), permitiu que a ficção universal finalmente conhecesse o protagonismo feminino representado pelas lentes de uma escritora. Austen, portanto, não escreveu um conto de fadas, na verdade, ironizou toda uma classe orgulhosa e decadente, que buscava sustento através de associações amorosas lucrativas.

Num século em que mulheres não produziam manuscritos e sequer recebiam educação fora do âmbito doméstico, Jane Austen publicou o primeiro livro anonimamente, somente com os dizeres “por uma dama”. Dessa maneira, a intelectual deixou legado em sua escrita, a partir da concepção de uma heroína espirituosa e avessa aos costumes tradicionais. Em suma, é preciso lembrar que Orgulho e Preconceito não é um romance água com açúcar, mas uma obra que representa o pioneirismo e o olhar crítico de uma mulher que perpassou o status quo de seu tempo.

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