Vitória Gomez
Sofia Coppola é mestre em retratar mulheres jovens adultas enclausuradas em residências enormes sob o controle de terceiros. No entanto, se Maria Antonieta terminou com a cabeça na guilhotina, Priscilla Presley quebrou o ciclo de solidão e escapou de sua prisão em Graceland, a segunda casa mais famosa dos Estados Unidos. Em Priscilla, uma adaptação do livro de memórias Elvis and Me, a diretora e roteirista deixa o nome do Rei do Rock de lado para direcionar o olhar à personagem-título.
Já sabemos o que precisamos sobre Elvis Presley. Para além da cultura popular, a recente cinebiografia indicada ao Oscar de Baz Luhrmann mostra a ascensão e queda do cantor, incluindo seu relacionamento com Priscilla Presley e com a fama. Priscilla existe no mesmo contexto, mas Coppola – que esclareceu que fez o filme para ela mesma – procura o lado da menina que chegou perto demais do brilho de uma estrela e teve o seu próprio apagado.
Na obra, Elvis (Jacob Elordi) conhece a protagonista – ainda então Priscilla Beaulieu (Cailee Spaeny) – na Alemanha, quando servia o exército. Na época, ele já era um astro da Música, tendo todos os olhos voltados para ele mesmo no exterior. Casualmente, a menina é convidada para um evento na casa dele e prova um pouco de sua atenção, que não seria constante pelo resto do casamento dos dois. Presley era a típica celebridade cercada de pessoas a seu dispor, dando palhinhas de seu talento e usando seu charme para questionar à protagonista qual era sua canção favorita dele.
Como toda adolescente dos anos 1960, Priscilla era fã de Elvis Presley e seus pôsteres na parede não a deixam mentir. Mesmo no nono ano da escola, como o cantor rapidamente descobre – e não parece ligar -, ela ganha a afeição do artista e conhece seu lado mais frágil e carinhoso. Ele estava de luto pela mãe, precisava de companhia e não media esforços para conquistar ela e os pais.
Já no primeiro ato, Sofia Coppola mostra um Elvis Presley apaixonado. Se a história do casal se desdobrou para um divórcio conturbado, o início não se mostrava assim. A cineasta não vê necessidade em discorrer sobre a carreira do Rei antes da entrada da protagonista em sua vida e, acertadamente, distorce o título do livro adaptado: Elvis e Eu se torna apenas Priscilla e, quem quiser assistir sobre a vida completa do astro, pode procurar essa história em outras obras. Aqui, o antes, durante e depois do casamento deles se torna a trama principal e a mudança de tom no relacionamento entre os dois, o grande chamativo.
Logo de cara, é palpável a influência que Elvis Presley exerce sobre Priscilla – e, diga-se de passagem, todos a seu redor. Com uma atuação contida e inquietante de Jacob Elordi, o artista usa todo seu charme para provar à protagonista que, por trás do topete invejável, bate um coração. No entanto, é só dele mesmo que Elvis sabe falar e todas as pessoas ao seu entorno parecem estar ali para meramente entretê-lo ou servi-lo, como a bizarra Memphis Mafia de urubus que nunca sai de perto. Ela aparenta ser a exceção, até não ser mais.
Para impor o desenrolar da narrativa, Priscilla se preocupa mais em contextualizar como a personagem foi parar em Graceland e trocou o Beaulieu por Presley do que o que vem depois. Também a partir da influência do futuro marido, a menina vai e vem entre os Estados Unidos e a Alemanha, até que ele convence os pais dela a aprovarem a mudança para Memphis, sob tutoria do pai de Elvis e estudando em uma escola católica.
Porém, como seria no restante do relacionamento, a protagonista deve se encaixar se quiser pertencer à vida do cantor. Ele está sempre entre trabalhos, seja na gravação de um filme com fofocas de envolvimento com alguma atriz da época ou projetos musicais – e o artista faz questão de lembrá-la o quão sortuda ela é pelo privilégio de estar com o Rei do Rock. Até quando o astro não quer aprofundar a relação íntima dos dois, ele faz questão de lembrá-la que, se ela não for a mulher que ele precisa, haverão outras.
Para apresentar as nuances do relacionamento dos dois, a direção de Coppola se une ao trabalho primoroso de Cailee Spaeny e Jacob Elordi. Presley poderia ser o homem mais apaixonado do mundo, mas sua demonstração iria apenas até a página dois. Elordi incorpora a visão da cineasta em mostrar como o cantor passou a usar o carinho pela namorada como uma forma de controlá-la, dizendo a como se portar, sentir e vestir. Em uma das cenas mais emblemáticas, Elvis convence a menina a trocar os cabelos castanhos por uma tintura preta e a maquiagem suave por um lápis escuro que destacaria os olhos, uma imagem que estamparia o álbum de casamento dos dois e as revistas da época.
Em menos de duas horas, o ator conduz um homem misterioso e apaixonado a um marido distante, indiferente e violento em todos os sentidos. Ao contrário de sua outra versão no Cinema, o Elvis de Priscilla não ganha tons extravagantes, mas uma aura de intocabilidade e fascínio envolvente, principalmente ao reconhecer seu verdadeiro caráter e assistir seu declínio.
Já Spaeny é o contrário. De uma menina inocente que saiu de casa para doar sua vida a Presley e se gabava de namorar o ídolo na escola, Priscilla cativa ao finalmente levantar a voz, mesmo que isso signifique ser calada e repreendida. No entanto, antes disso tudo, ela se entrega à própria solidão e quietude de forma gritante, apenas no interior. Andando perdida e solitária por uma Graceland vazia na ausência de Elvis Presley ou cheia de gente indiferente em sua presença, ela é acompanhada da própria solidão e da fantasia de estar do lado de um astro, retrato que a rendeu o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Veneza.
Como é marca registrada em outras obras, Sofia Coppola abusa dos detalhes. A visão do universo feminino de uma maneira sensível se une à atenção pelas pequenas coisas. Unida a uma direção de arte e uma fotografia cuidadosa – essa segunda por responsabilidade de Philipe Le Sourd -, os pôsteres nas paredes, o quarto do casal decorado pelo cantor (sem um detalhe sequer lembrando a esposa), a recriação das capas de álbuns e revistas, e as pílulas cada vez em maior quantidade ganham atenção especial da câmera, como se naquele casamento, o diabo realmente estivesse nos detalhes.
No entanto, a sensibilidade do retrato de Priscilla Presley – apoiado, inclusive, pela própria celebridade, que exerceu o cargo de produtora executiva do filme – encontra seu fraco no roteiro, também realizado por Coppola. O relacionamento dos artistas e como ambos se desenvolvem para melhor ou pior dentro dele cria a atmosfera envolvente de observar duas pessoas reais, cegadas pelos holofotes e pela atenção, em uma situação já conhecida na cultural popular, mas vista de dentro. É aliada à montagem de Sarah Flack (colaboradora da cineasta desde Encontros e Desencontros) que a narrativa se dedica demais a alguns pontos, enquanto esquece outros.
Porém, enquanto roteirista, Coppola passa mais tempo pintando o quadro de Priscilla como uma doce menina submissa do que mostrando os momentos em que a jovem cresce para além da sombra perversa do marido. Inclusive, a cineasta acena para aqueles da internet que decidiram que as cenas de sexo não agregam à narrativa como um de seus maiores pecados: depois de anos desejando a atenção do marido, quando Priscilla e Elvis finalmente concretizam o casamento, a cena que poderia ser a mais íntima e reveladora de como o matrimônio dos dois seguiria é esquecida – ou simplesmente deixada de lado.
Aqui, não há espaço para interpretações errôneas e é notável o quanto, ao longo dos mais de seis anos que passaram juntos, os Presleys mudaram – inclusive um ao outro. Sem esconder os abusos físicos, verbais e psicológicos de Elvis, Priscilla não romantiza, mas também não desrespeita a biografia da protagonista e passa a mensagem de que, para além de um vilão maniqueísta, Elvis fez parte de sua vida. Apesar do ponto de virada acontecer durante todo o tempo em que estiveram juntos e não do dia para a noite, ainda é amarga a sensação de que são poucos os minutos dedicados à emancipação de Priscilla, agora uma mulher junto da filha, das garras da fama, luxo e falsidade dos jardins de Graceland, deixando um gosto de quero mais para um clímax curto demais.
Exibido com uma sessão lotada na Gala de Encerramento da 25ª edição do Festival do Rio, Priscilla prova novamente e mais uma vez o talento de Sofia Coppola em tornar narrativas peculiares, universais. Sob sua visão única, até a trilha sonora encabeçada por Phoenix, que de Elvis Presley não tem nada, vira uma grande contadora de histórias. De comum os Presley não entendem, mas a cineasta sim: a solidão e o enclausuramento são os mesmo em Memphis da década de 1960 ou na França do século 18. O que muda é que, de repetido, Priscilla não tem nem o título.