Segredos de Um Escândalo prova que a Arte não passa a história a limpo

No Oscar 2024, May December concorre à categoria de Melhor Roteiro Original (Foto: Diamond Films)

Vitória Gomez

Pode a Arte imitar a realidade sem se basear nela? Pode a vida de alguém virar arte se não houver autorização? Todd Haynes prova que sim. Tão melodramático quanto bem-humorado, Segredos de Um Escândalo, inspirado em uma história real, mostra que o papel da arte não é necessariamente passar as coisas a limpo. Do contrário, a obra disseca os restos do que um dia foi um escândalo, reimaginando os ecos reais dele muito tempo depois que os noticiários se esqueceram. 

A tarefa de encarar o dramalhão é de Julianne Moore, Charles Melton e Natalie Portman. Os dois primeiros são um casal aparentemente feliz, mas que escondem mais do que a superfície mostra. Ela, Gracie, e ele, Joe, tem uma diferença de idade de praticamente 30 anos e começaram a se relacionar quando o menino tinha apenas 13. Já a última é Elizabeth Berry, uma atriz que passa a conviver com a dupla para estudar Gracie e interpretá-la fielmente em um filme independente. Quando o equilíbrio perfeito da casa é abalado pela convivência com a atriz, o passado volta à tona – dessa vez, para ser questionado e não endossado.

Gracie e Elizabeth travam uma guerra de narcisismo (Foto: Diamond Films)

Tudo começa com a falta de cachorros quentes na geladeira. Longe de se autointitular camp ou fazer justiça com as próprias mãos, May December (no original) come pelas beiradas. Isso porque o caso por trás do escândalo-título é digno de tabloides, mas não requer uma nova exposição. Pelo contrário, a Elizabeth de Portman conhece as nuances da história na mesma ordem que o espectador: primeiro de fora, quando observa trechos de revistas e jornais sobre o julgamento do “pet-shop romance” ou fotos de Gracie tendo a primeira filha com Joe na prisão, ainda vestindo a tornozeleira eletrônica. Depois, de dentro, quando é confrontada com um casal calmo, com uma casa grande em um bairro familiar, uma churrasqueira com cachorros quentes, cervejas geladas, bolos de abacaxi, amigos preocupados, dois filhos adolescentes prestes a partir para a faculdade e uma encomenda com fezes dentro. 

Se a conta não fecha, é aí que Elizabeth Berry entra. A atriz assegura que só quer fazer jus à Gracie no filme, conhecer as zonas cinzas de onde o suposto romance nasceu. Aqui, não há opinião formada: ela está aberta para escutar o que seus objetos de estudo têm a dizer, não imputar suas próprias conclusões sobre eles. Segredos de Um Escândalo funciona justamente nessas áreas cinzas. Enquanto Gracie alega uma paixão avassaladora e um relacionamento feliz – e Joe acredita -, o dia a dia mostra uma dinâmica controladora, em que a mulher manda tão comumente quanto o marido obedece. Os anos de diferença evocam algo maternal. Você já está na segunda cerveja, desacelera. Não deixe suas coisas espalhadas na sala. Vá tomar banho antes de dormir.

Nisso, tanto Julianne Moore quanto Gracie se mostram uma raposa. Sempre que o assunto da diferença de idade vem à tona, a personagem declara o amor dos dois e lembra o quanto Joe a seduziu. Ela infla seu ego com comentários cortantes em direção a ele e às crianças, reitera o quanto sempre foi ingênua, reforça sua feminilidade e, quando precisa, chora desamparada como se não tivesse o dobro de maturidade do que qualquer um em cena. Na pele dela, Moore calibra seus gestos, ora se portando com inocência, ora com um ar de quem calcula cada movimento para ser percebida como quer. Modulando a voz, Gracie é incisiva e firme, mas rapidamente muda e soa como uma criança que não sabe as consequências de seus atos, enganando a vizinhança e o próprio marido. Ou quem sabe ela é assim e realmente acredita na própria infantilidade?

Todd Haynes e Segredos de um Escândalo concorreram ao Palma de Ouro no Festival de Cannes 2023; o prêmio foi para Justine Triet e Anatomia de uma Queda (Foto: Diamond Films)

O cinismo é a chave de Segredos de Um Escândalo. Ao contrário de Moore, que nunca deixa transparecer a verdade por trás de suas intenções, Natalie Portman é ótima atriz em interpretar uma atriz mediana. Por mais que tente, Elizabeth Berry preenche a tela em branco com suas opiniões e intenções, mas, no caminho, rende cenas tensas ao lado de Joe e Gracie. A frente de um espelho ou em um consultório médico, o desconforto surge ao passo que ela cruza a linha entre observação e intromissão, se aproveitando dos maneirismos de uma Moore brilhante para incorporar Gracie o máximo que pode – até de forma cômica, intencionalmente ou não.

No meio disso está Joe. Como uma criança perdida, ele não cria conflito, assiste TV, cuida de suas lagartas e apazigua os ânimos quando convém. É na presença de Charles Melton que o trio protagonista se eleva: introvertido e retraído, o personagem é resultado do “escândalo pet-shop”, um adolescente para sempre preso no corpo de um homem adulto, que nunca teve a chance de amadurecer sozinho. Até a relação com os filhos, com pouco mais da metade da idade dele, é desigual, já que as crianças viveram experiências que o próprio nunca pôde. A mera constatação de que adultos fazem coisas de adulto o abala, como se ele não soubesse como agir como um.

Injustiçado, May December não levou nada no Globo de Ouro e no Critics Choice Awards (Foto: Diamond Films)

Além das performances, a direção novelesca de Todd Haynes cria a atmosfera inquietante que move as incertezas de May December. A condução simples, mas eficiente, as metáforas escancaradas, composições visuais geniais e uma boa dose de humor fazem o filme passear entre um drama voraz e uma sátira à própria indústria do Cinema que pouco o reconheceu. Apesar de superar outras obras nomeadas, seu nome não foi mencionado o suficiente nas grandes premiações norte-americanas, como o Oscar, SAG Awards ou outros prêmios de sindicatos hollywoodianos. 

Os poucos reconhecimentos foram os nomes de Melton, Moore e Portman em eventos como Critics Choic Awards e Globo de Ouro, mas, ainda assim, sem receber os devidos louros. Um alívio foi a indicação certeira da roteirista Samy Burch, que dois domingos antes do Oscar consagrou seu nome junto de Alex Mechanik (responsável pela história, junto dela) no Spirit Awards, premiação de filmes independentes. Com um tato para desconcertar o espectador e não dar de bandeja se Segredos de Um Escândalo é camp ou não, a novata aproveitou uma polêmica real para criar algo maior do que uma cinebiografia não autorizada e mergulhou nas vulnerabilidades de seus personagens. A torcida é para que Burch continue sua caminhada representando o longa e faça uma competição grandiosa com Anatomia de uma Queda e Vidas Passadas, deixando Maestro e Os Rejeitados para trás.

Natalie Portman é uma das produtoras de May December e escolheu Todd Haynes a dedo para dirigi-lo (Foto: Diamond Films)

Sem previsão para chegar na Netflix Brasil (nos Estados Unidos, o longa foi lançado direto na plataforma de streaming), Segredos de Um Escândalo adentra as entranhas do imaginário popular e ainda cutuca os adeptos ao método de atuação e às produções true crime. O segredo é não se levar a sério demais e render boas risadas proibidas no caminho, sem acreditar se a canalhice das protagonistas são reais ou elas estão cegas na própria desonestidade que nos fazem acreditar junto. Ao final, quem sai ferido é Joe e quem sai curado é Charles Melton, que alça seu nome à A-List de Hollywood.

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