20 anos de A Sociedade do Anel: lá e de volta outra vez

Cena do filme O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel. Um plano médio captura os  nove membros da Sociedade do Anel. Da esquerda para a direita, Aragorn (Viggo Mortensen), Gandalf (Sir Ian McKellen), Legolas (Orlando Bloom), Boromir (Sean Bean) e, na frente deles, Sam (Sean Astin), Frodo (Elijah Wood), Merry (Dominic Monaghan), Pippin (Billy Boyd) e Gimli (John Rhys-Davies). Aragorn é um homem caucasiano, magro, de cabelos castanhos-escuros e longos e uma barba rala, usando uma túnica cinza escura. Gandalf, um mago caucasiano e magro, possui cabelos e barba longos e grisalhos e um robe cinzento, segurando um cajado de madeira com sua mão direita. Legolas é um elfo caucasiano, magro, de orelhas pontudas e cabelos longos e loiros, usando uma túnica prateada. Boromir é um homem caucasiano, magro, de cabelos ruivos e longos, usando um colete preto por cima de uma túnica vermelha com detalhes em dourado. Os quatro hobbits, com cerca de metade da estatura deles, estão na frente de Gandalf e Legolas: Sam, magro e caucasiano, de cabelos loiros encaracolados, usando uma blusa cinza por cima de uma camisa branca; Frodo, magro e caucasiano, de cabelos pretos encaracolados, usando um colete rubro por cima de um paletó marrom; Merry, magro e caucasiano, de cabelos loiros encaracolados, usando um colete amarelo por baixo de um paletó verde e Pippin, também magro e caucasiano, de cabelos castanhos encaracolados, usando uma camisa branca por cima de um paletó verde. Na frente de Boromir, Gimli, um anão de barba e cabelos longos e ruivos, usando uma túnica vermelha por cima de malha de ferro, segurando o topo de seu machado com as duas mãos. Atrás de Gandalf e Boromir, podemos ver outros membros do Conselho, um elfo e um homem, ambos caucasianos. Folhagem verde preenche o fundo da tela, que é iluminada de amarelo pela luz do Sol. Todos os membros da Sociedade olham para a esquerda da tela, virados de frente.
“Nove companheiros…” (Foto: New Line Cinema)

Gabriel Oliveira F. Arruda

É muito difícil imaginar o que seria do Cinema, especialmente o gênero de fantasia blockbuster, quase sempre pautado em emoção e espetáculo, sem O Senhor dos Anéis. A trilogia de adaptações comandadas por Peter Jackson e produzidas pela New Line Cinema foi um dos maiores gambitos da história da Sétima Arte, custando quase 300 milhões de dólares e 8 anos de produção, criando uma nova cultura de turismo na Nova Zelândia e assomando juntos dezessete estatuetas no Oscar. Baseados no épico de J.R.R. Tolkien, – por muito dado como inadaptável – os filmes deram nova vida à fantasia e inspiraram uma geração de cineastas a desafiarem os limites técnicos de suas obras.

Composto igualmente por caminhadas lentas através das paisagens neozelandesas quanto por sequências de batalhas gigantescas, O Senhor dos Anéis é uma história sobre as grandes jornadas que fazemos. Seja na missão de Frodo (Elijah Wood) para jogar o Um Anel nas chamas da Montanha da Perdição ou nas lutas que Aragorn (Viggo Mortensen) trava para reaver um trono por direito seu, mas que ele nunca desejou, a narrativa sobre a natureza do poder, a esperança em tempos difíceis e a força da amizade ressoa até hoje, 67 anos após sua publicação original.

Duas décadas após sua estreia nos cinemas brasileiros, voltamos ao idílico Condado e às cavernas sombrias de Moria para reexaminar o primeiro capítulo desta grande jornada, e como ele introduziu um dos legados cinematográficos mais duradouros de todos os tempos. A primeira parte da história é focada na formação do grupo titular de heróis, representantes de todos os povos livres da Terra-Média, e sua eventual separação durante a missão para destruir o Anel do Poder e acabar com o mal de uma vez por todas.

Cena do filme O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel. Gandalf e Frodo chegam no Condado em uma carroça movida por um cavalo marrom. Ela começa a cruzar uma ponte de pedra, da direita para a esquerda, em direção a um amontoado de casas, à esquerda da tela, com o rio que passa embaixo da ponte refletindo-o. O vilarejo se encontra no meio de um campo verdejante e, ao longo do horizonte, podemos ver alguns cavalos pastando na parte direita da tela. O céu é azul e sem nuvens. Gandalf usa um robe cinzento e um chapéu pontudo também cinzento enquanto só o topo da cabeça de Frodo é visível, os cabelos pretos encaracolados.
De pé até hoje, o set de filmagem de Hobbiton é um ponto turístico essencial para os fãs que visitam a Nova Zelândia (Foto: New Line Cinema)

Após o monólogo introdutório de Cate Blanchett como a elfa Galadriel, narrando o forjamento dos Anéis de Poder e a artimanha de Sauron, Senhor do Escuro, somos jogados no Condado, uma paisagem campestre habitada por hobbits, um povo pequeno e feliz que, nas palavras de Bilbo (Ian Holm), dividem “um amor por todas as coisas que crescem”. Um lugar peculiar para se iniciar uma história sobre o embate épico entre o bem e o mal, com certeza, mas que faz sentido conforme sua narrativa se desenvolve, pois é na lembrança dele que os heróis se apoiam quando estão prestes a perder a esperança. Além disso, é lá que o filme oferece uma primeira impressão de seu minucioso design de produção, retratando uma unidade social completamente funcional e crível, se concretizando nas ilusões técnicas que criam a altura do hobbits, quase imperceptíveis até hoje.

E por mais que toda essa atenção aos detalhes tenha só aumentado de filme em filme, é talvez aqui, em seu primeiro encontro, que ela é mais impressionante: A Sociedade do Anel tem o dever não só de nos colocar dentro desse universo, mas também de nos convencer da lógica interna dele, de fazer com que essa minúcia converse com seus temas e sua narrativa, de verdadeiramente trazer o texto à vida de maneira que o resto da narrativa cresce organicamente ao longo de sua vida útil. Assim como os hobbits, Grant Major, designer de produção (indicado novamente ao Oscar recentemente por Ataque dos Cães), e o resto de sua equipe tiveram que desenvolver um amor pelas coisas que crescem, criando alguns dos lugares fictícios mais célebres da ficção, seja com efeitos práticos ou digitais.

Cena do filme O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel. Aragorn (Viggo Mortensen) ajuda Frodo (Elijah Wood) a se levantar após ele ter escorregado pela neve. Na frente deles, na parte direita da tela, em primeiro plano, vemos o Um Anel, um anel dourado com uma corrente prateada passando por dentro, no meio da neve. Fora de foco, Frodo e Aragorn, na parte esquerda da tela, procuram pelo objeto. Aragorn é um homem caucasiano de cabelos pretos e Frodo é um hobbit, com cerca de metade da altura de Aragorn, também de cabelos pretos. Ambos usam roupas escuras e quentes. Atrás deles, podemos ver uma cadeia de montanhas nevadas se estendendo até o horizonte. O céu está azul e sem nuvens.
Um Anel do tamanho de um prato foi utilizado para compor os planos detalhe do objeto (Foto: New Line Cinema)

Há uma qualidade teatral no roteiro do filme, assinado por Jackson, Fran Walsh e Philippa Boyens, uma paixão inerente à interpretação desse mundo no meio audiovisual e que move tanto suas cenas mais emocionalmente carregadas quanto os instantes levianos, cada vez mais raros conforme a narrativa avança. Cada ator leva seu texto com uma seriedade que beira à tosquice, mas que é sincera e comprometida o suficiente para nos imergir ainda mais nos dramas entre seus personagens e na maneira com que eles reagem aos acontecimentos: a todo momento o mundo parece prestes a acabar conforme o inimigo se aproxima de Frodo e do Anel, e nossos heróis quase sempre apenas escapam por um triz, entregando desespero, alívio e antecipação com intensidade palpável.

No entanto, na passagem da literatura para o audiovisual, alguns sacrifícios são feitos. Ao invés de acompanharmos os pensamentos de Frodo conforme o verdadeiro peso de sua missão aumenta, temos de ver essa mudança primariamente através de outros personagens, o que diminui seu impacto. Mais ênfase é dada ao monomito americano, posicionando Aragorn como seu herói. Como resultado disso, a percepção de Frodo no Cinema é a de um protagonista fracassado, negando a abordagem empática planejada por seu criador. Porém, se encararmos os filmes não como uma adaptação, mas como uma reinterpretação dos mitos introduzidos por Tolkien, esse tipo de sacrifício se torna mais um sinal do comprometimento com o qual todos os seus elementos foram retrabalhados para funcionar no Cinema, e não apenas emular a literatura.

Cena da 76a cerimônia de premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Howard Shore sobe para receber seu prêmio pela Trilha Sonora Original de O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel. Howard é um homem caucasiano, magro, de cabelo grisalho e óculos pretos e circulares, usando um terno smoking com uma gravata preta. Atrás dele, alguns membros da orquestra aparecem tocando seus instrumentos. Ele segura sua estatueta com ambas as mãos e, na metade inferior da tela, por cima de um fundo dourado, em letras brancas, aparecem os dizeres: “ORIGINAL SCORE” e, embaixo dele, “Howard Shore” e “THE LORD OF THE RINGS: THE FELLOWSHIP OF THE RING”; Do lado esquerdo do letreiro, um modelo digital da estatueta.
A Sociedade do Anel deu ao compositor Howard Shore sua primeira estatueta da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (Foto: Reprodução)

Mas, quando falamos na ambientação e imersão da trilogia, a cereja do bolo é, e talvez sempre será, a trilha sonora operática do compositor Howard Shore. Criando provavelmente a mais vasta e complexa coleção de leitmotivs na história do Cinema, ele cria uma camada pulsante sobre todas as cenas, revestindo-as de emoção e antecipação, não apenas acompanhando o tom da narrativa, mas efetivamente refletindo-a e modificando-a junto dela. Quando você ouve o alegre tema do Condado, ou o místico dos elfos de Lothlórien, não há como confundi-los com qualquer outra coisa que não seja simplesmente O Senhor dos Anéis.

E em nenhum lugar essa construção de mundo através do som é mais evidente do que no tema dos heróis que embarcam na aventura: o tema da Sociedade do Anel vai dando seus primeiros passos conforme Frodo e Sam (Sean Astin), seu companheiro constante e amigo fiel, saem do Condado em direção à Valfenda, na esperança de impedir que o Anel caia na mão dos espectros que os perseguem. Começando de maneira tímida e esperançosa, ele ruge apenas quando o grupo conta com todos os membros presentes, e vai se fraturando no decorrer da narrativa conforme os vínculos entre seus personagens vão se desenvolvendo, criando uma sinfonia que vive no coração de sua história.

Cena do filme O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel. Frodo e Sam caminham por um campo verdejante. Frodo (Elijah Wood) caminha um pouco à frente de Sam (Sean Astin). Os dois usam roupas leves com mangas brancas e carregam cajados na mão direita e mochilas nas costas. A mochila de Sam também tem várias panelas e utensílios de cozinha pendurados. No plano de fundo, uma floresta densa de pinheiros preenche a metade esquerda da tela, enquanto grandes colinas ocultas pela sombra assomam ao fundo. O dia está claro e nuvens ao fundo cobrem o horizonte.
“É um negócio perigoso, Frodo, sair da sua porta. Você pisa na Estrada e, se não controlar seus pés, nunca se sabe para onde será levado.” (Foto: New Line Cinema)

Embora à primeira vista sua narrativa épica possa ser erroneamente resumida em uma coleção de nomes estranhos, caminhadas sem fim por paisagens neozelandesas e lutas grandiosas entre exércitos inimigos, os três capítulos reexaminam os temas de esperança e amizade em face do mal, cada qual focando em uma parte diferente da jornada. A Sociedade do Anel se preocupa particularmente com a questão de sobre quem deve recair a responsabilidade do poder terrível e tentador que o Um Anel traz consigo. Como em todo bom início da jornada do herói, Frodo tenta recusar o chamado diversas vezes, implorando para que pessoas mais capazes do que ele arquem com a o peso do Anel, como Gandalf (Sir Ian McKellen), o mago que primeiro revela a natureza maléfica do objeto e encarga Frodo de carregá-lo até os elfos de Valfenda, e logo o adverte:

“Não me tente, Frodo! Não ouso pegá-lo. Nem mesmo para guardá-lo. Entenda, Frodo: eu usaria esse Anel com o desejo de fazer o bem. Mas, através de mim, ele exerceria um poder mais intenso e terrível do que se pode imaginar.”

Não é possível desassociar o poder do Um Anel de sua origem, por melhores que sejam as intenções do portador, o que fica claro mais a frente quando Boromir (Sean Bean) é corrompido pela mera ambição de ter o Anel em sua posse para ajudar seu reino. O primeiro passo da jornada de Frodo é justamente perceber que ninguém poderá carregar essa responsabilidade além dele, o menor e menos importante dos seres da Terra-Média, conforme Galadriel nos avisa durante o prólogo inicial: “chegará a hora em que os hobbits moldarão o destino de todos.

Tolkien sempre manteve que O Senhor dos Anéis nunca foi uma alegoria para as suas experiências na Primeira Guerra Mundial, onde vários de seus amigos e escritores contemporâneos pereceram. No entanto, é impossível dizer que tais experiências não se façam presentes na jornada antes mesmo que qualquer grande conflito se inicie. Se mais para frente nos emocionamos ao ver as grandes sequências de batalha em que o destino do mundo é segurado por um fio, é porque em A Sociedade do Anel os elos entre seus personagens são estabelecidos com equivalente grandeza e cuidado, sem nunca medir palavras na adaptação de seu rico texto. Católico devoto, a crença de Tolkien na Queda do Homem e na progressão decadente da humanidade se faz presente também nesse texto, mas também está a fé na esperança que o permitiu passar pelos tempos mais difíceis.

Cena do filme O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel. Frodo (Elijah Wood) abraça Sam (Sean Astin) dentro do barco que os carrega. Sam está encharcado, e seus cabelos loiros estão pendem para frente. Frodo se joga para frente e o abraça, se agarrando em sua capa cinzenta. Atrás de Sam, uma praia de pedras brancas com algumas pedras e uma floresta ao fundo. Tanto Sam quanto Frodo são hobbits caucasianos e magros, mas Frodo tem cabelos pretos.
“Eu fiz uma promessa, Sr. Frodo.” (GIF: New Line Cinema)

E essa esperança implacável não se evidencia em nenhum par de personagens mais do que em Frodo e Sam, os hobbits mais famosos da Terra-Média e talvez o ship mais popular de toda a franquia. É fácil entender o porquê: a devoção e o carinho que existe entre ambos seria lida como romântica em qualquer contexto heteronormativo (com direito à toques tenros e os olhares mais doces da fantasia) e, tecnicamente, não há nada nos livros que exclua a validade dessa abordagem, nem mesmo o futuro casamento de Sam, que ainda passa a viver com Frodo e cria sua família com ele. Como Molly Ostertag (A Casa Coruja) escreveu para o site Polygon, em comemoração aos 20 anos dos filmes:

Investigar a história do queer pode ser frustrante, já que muitas vezes nos damos conta de que nunca saberemos com certeza. É complicado aplicar rótulos modernos a pessoas que não os usavam em vida – mas rótulos modernos também incluem ‘heterossexual’ e ‘cisgênero’ tanto quanto ‘gay’ ou ‘transgênero’. Tudo que podemos fazer é olhar para as suas vidas e estar abertos às possibilidades.

E nada te deixa mais aberto às possibilidades do que o momento em que Sam, sem saber nadar, quase se afoga tentando alcançar Frodo, que agora está mais decidido do que nunca a não arriscar a vida de mais ninguém em sua missão e seguir sozinho em direção à Montanha da Perdição. Sam, içado por Frodo para dentro do barco após um momento de desespero, lhe assegura que não tem intenção de quebrar sua promessa de nunca abandoná-lo, e os dois terminam num momento caloroso, antes de dar o próximo e mais sombrio passo na jornada. No momento mais crítico da Sociedade que, após a morte de dois de seus membros, começa a ruir, Sam se recusa a deixar seu mais querido amigo ir sem ele. Seja esse sentimento platônico ou romântico, é um amor profundo que se encontra no cerne da narrativa e que permite, de novo e de novo, que seus heróis triunfem contra todas as probabilidades.

Cena do filme O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel. Frodo (Elijah Wood) contempla o barco ancorado na praia e segura o Anel em sua mão direita. Frodo é um hobbit caucasiano e magro, de cabelos pretos e encaracolados, usando uma capa cinza por meio de uma roupa marrom escura. O vemos de perfil, olhando da direita para a esquerda. De seu lado direito, um barco branco está ancorado na margem da praia. À sua frente, outro barco toca a água. Acima dele, o dossel de folhas das árvores à margem da água cobre boa parte da tela. A água está tranquila e verde clara, com outra floresta se assomando na margem oposta.
Nem todas as jornadas importantes podemos trilhar sozinhos (Foto: New Line Cinema)

Quando estreou, em janeiro de 2002 no Brasil, O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel encantou audiências não apenas por nos apresentar um mundo novo, povoado por seres místicos e males ancestrais, mas por ancorar sua fantasia em vários dos temas mais universais da ficção e apresentá-los sem cinismo, mas com verdadeira e profunda reverência. Mesmo que seu próprio elenco não reflita essa universalidade, a convicção de seu storytelling é tão pura e comprometida que é praticamente impossível não ser instantaneamente transposto para seu universo mágico. No início dessa jornada inesquecível, fica claro que as grande estrelas desse show não serão os embates épicos ou as grandes batalhas, mas os sacrifícios pessoais e os vínculos emocionais que unem a Sociedade, e a ideia de que o menor dos seres irá carregar o destino do mundo.

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