Os 20 anos de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain: uma dedicatória aos excêntricos incompreendidos

Cena do filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulain. A imagem mostra Amélie, personagem de Audrey Tautou, sentada numa cama, de frente. A atriz é uma mulher branca, de cabelos lisos curtos, na altura das orelhas, e pretos, e usa uma franja curta no meio da testa. Está de noite e Amélie está dentro de um quarto que é iluminado por dois abajures que estão nas laterais da cama. A parede atrás dela é vermelha, decorada com arabescos finos amarelos e quadros de animais, sendo dois ao centro da parede e dois nas laterais. A cama tem uma cabeceira de madeira escura e Amélie apoia as costas nela, e no meio existe um travesseiro verde. Amélie veste pijama de bolinha e está folheando um livro.
Inicialmente, Audrey Tautou não foi idealizada para o papel; na época, a produção indicava que Amélie teria o pai britânico e, por isso, seria interpretada por Emily Watson (Foto: UGC Fox Distribution)

Bianca Penteado

Se você encontrasse uma coisa de sua infância que guardava como um tesouro, como se sentiria? Feliz? Triste? Nostálgico?

Estamos no dia 31 de agosto de 1997, em Paris. Em um antigo apartamento do bairro Montmartre, Amélie Poulain (Audrey Tautou) não sabe que sua vida está prestes a mudar. Retirada de um esconderijo na parede, em suas mãos há uma antiga caixa de perfume, que armazena todos os restos de uma vivência. Admirada com aqueles tesouros – inestimáveis apenas a quem pertence – Amélie faz uma promessa: devolverá a recordação ao dono e, caso ele se emocione, começará a resolver a vida dos outros.

Singular em sua estreia na cinematografia romântica, Jean-Pierre Jeunet constrói O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001) em uma premissa sensível que enxerga valor na banalidade. Indicado a cinco categorias no Oscar 2002, entre eles o de Melhor Filme Estrangeiro, o longa brilha ao expor o telespectador ao olhar do outro sobre a vida, a partir do momento em que compreendemos sua razão para amar o que ama.

Cena do filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulain. A imagem mostra, em close, uma caixinha de quinquilharias. A mão esquerda que segura a caixa é branca, com unhas curtas, e a direita mexe nos pertences da caixa, entre eles um aviãozinho, uma caixa de cigarros e um enfeite pequeno de bicileta.
A caixa de recordações pertence à Dominique Bre-to-deau, não Bre-do-teau! (Foto: UGC Fox Distribution)

Superando as expectativas, a simplicidade do roteiro não incomoda. A facilidade com que as coisas acontecem é atraente, e encanta os exaustos da complexidade – que persiste na ficção e no real. Não há drama, nem traições, muito menos reviravoltas saturadas. O diretor aposta em um enredo que evidencia o carisma de seus componentes.

Não à toa, o filme é considerado um marco que impulsionou a presença francesa no Cinema mundial. Ao som de La valse d’Amélie, Jeunet reinventa o romance clássico das telonas, e surpreende ao introduzir um narrador que completa as lacunas de silêncio deixadas pela protagonista que evita as palavras, mas fala muito em suas expressões.

E, de fato, a heroína só tomou o protagonismo merecido com a interpretação enérgica e vivaz de Audrey Tautou. Sem sucesso nas relações concretas, Amélie procura refúgio no conforto dos cenários surreais que imagina. Diálogos curtos e sussurrados são tudo o que desconhecidos conseguirão da garota. Mesmo assim, a personagem não expressa a timidez como o único ou o mais predominante traço de sua personalidade. Ela também é delicadamente ousada, e não tem medo de encarar a vida de frente quando preciso.

Cena do filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulain. A imagem mostra a personagem de Amélie caminhando por uma estação de metrô, vista de longe e de perfil. A câmera está nos trilhos, capturando as paredes da área de embarque, que é preenchida por anúncios coloridos do lado esquerdo e direito, e no centro existe uma placa escrito "ABESSES". Amélie está do lado esquerdo, usando um vestido vermelho e botas pretas.
No metrô, a música da vitrola do idoso permeia a estação quase vazia (Foto: UGC Fox Distribution)

Destino ou acaso, as ruas de Paris nunca pareceram tão pequenas. São nas eventuais idas e vindas ao metrô que Amélie Poulain encontra seu par – no sentido romântico e literal da palavra. Nino Quincampoix (Mathieu Kassovitz) é um observador da individualidade humana e um colecionador nato. Ela sente que são parecidos e isso é o que prende sua atenção. 

Ainda assim, há um critério conflituoso. O roteiro de Guillaume Laurant restringe o espaço de Nino na trama e limita, tanto em tempo quanto em ação, seus encontros com a protagonista. Ao mesmo tempo, querer conhecê-lo melhor não transparece como uma prioridade para o espectador. Passado o desencanto dos melosos de plantão, O Fabuloso Destino de Amélie Poulain segue progressivamente evoluindo, trabalhando o romance na inquietação da espera pelo fatídico dia em que ambos se descobrirão.

Cena do filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulain. A imagem mostra um senhor de idade contemplando uma pintura, de perfil, e Amélie desfocada no meio, ao fundo. Do lado esquerdo da imagem, o senhor observa a pintura do lado direito. Ele é um homem branco, de cabelos pretos ondulados, e usa um casaco marrom. A pintura, que também aparece de perfil, mostra um grupo de pessoas no campo, com destaque para uma mulher ao centro, que usa um chapéu amarelo e olha para fora da imagem. No meio, em desfoque, Amélie segura uma xícara com as duas mãos e observa o senhor.
Por vezes, Amélie é assemelhada a garota no centro da pintura de Renoir (Foto: UGC Fox Distribution)

Mérito novamente de Jean-Pierre, a experiência fotográfica que acompanha a obra é sensorial. As ambientações e os figurinos predominantemente verdes e vermelhos criam uma atmosfera imersiva visualmente semelhante a de uma pintura.  Curiosamente, a paleta de cores selecionada para o filme foi inspirada no trabalho do artista brasileiro Juarez Machado, que vive em Paris há 30 anos e é um grande amigo do diretor.

Passou rápido, mas os 20 anos de Le fabuleux destin d’Amélie Poulain chegaram. Um marco no Cinema francês, a obra cinematográfica representa a memória afetiva de uma geração que encontrou seu reflexo na excentricidade do outro. Com um quê de comédia, o filme merece e precisa ser visto, revisto e relembrado em seu propósito: cada oportunidade deve ser agarrada e vivida, antes que tudo o que reste sejam recordações em uma caixa de perfume.

“Sem você, as emoções de hoje serão somente a pele morta das emoções do passado” (Foto: UGC Fox Distribution)

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