Neurosis no Brasil: tempos de (des)graça

Gente como a gente: Neurosis no Carioca Club (Foto: Fernando Yakota)

Nilo Vieira

Foi estranho descobrir que os membros do Neurosis têm empregos fora da música. Como é possível? Uma das bandas mais influentes do metal! O disco mais famoso do Sepultura foi influenciado por eles. Mastodon e Converge, dois nomes metálicos celebradíssimos da década passada, têm relações estreitas com o quinteto. Até na música do Slipknot é possível sentir traços do grupo californiano.

Por outro lado, isso explica porque só agora – com mais de 30 anos de carreira nas costas – Scott Kelly, Steve Von Till, Noah Landis, Jason Roeder e Dave Edwardson enfim vieram fazer shows na América do Sul. A data única no Brasil foi em São Paulo, no último dia 8, no Carioca Club. O céu cinza e a leve chuva que antecederam o evento até pareciam sinais.

Chora, cavaco: Felipe Dalam em ação com o Saturn Dust no Carioca Club (Foto: Fernando Yakota)

Mesmo com a casa pouco cheia, o trio Saturndust iniciou as atividades por volta de 18h20. O som dos brasileiros (integrantes do cast do selo Abraxas, também produtora do show) segue a tradição monolítica do doom metal, com linhas de sintetizador flertando com o tom lisérgico do stoner. O entusiasmo era palpável no palco. “Infelizmente essa é nossa última música”, anunciou o frontman Felipe Dalam. Após a reação da plateia, completou: “Ah, mas ela é mó longa, vocês sabem”. Com a equalização calibrada, só faltou mesmo maior produção visual (maior jogo de luzes bastaria) para combinar com a veia espacial da banda.

Em seguida, foi a vez do Deaf Kids entrar em ação. Também em trio, os rapazes de Volta Redonda (RJ) tocaram quase sem pausas por uma hora. A mistura sonora apresentada é difícil de definir: tem a sujeira urgente do crust, doses de reverb e delay transformando as vociferações do guitarrista Douglas Leal em outro instrumento, linhas de bateria herdadas da escola post-hardcore e paredes sonoras que botam qualquer cópia barata do My Bloody Valentine abaixo. Tudo isso em uma abordagem extremamente esquizofrênica (no bom sentido!), soando muito mais visceral e livre do que nos discos de estúdio.

A cabeleira mais barulhenta do recinto: Douglas Leal com o Deaf Kids (Foto: Fernando Yakota)

Nem todos os presentes pareceram digerir a proposta, mas uma pessoa em particular parecia mais que satisfeita: Steve Von Till, que inclusive filmou parte do show em seu celular. A gravadora do Neurosis, Neurot Recordings, lançou o último álbum do Deaf Kids nos Estados Unidos e Europa este ano. Pelo sorriso de Till na cabine acima do palco, a aposta em Configuração do Lamento (2016) foi um acerto.

Mais difícil ainda é rotular o Neurosis. As influências são várias: a fúria do Black Flag, o peso do Black Sabbath, o experimentalismo do Swans. Os barulhos industriais do Godflesh, a melancolia do Joy Division, a serenidade de Nick Drake, as estruturas longas do rock progressivo. Mas além desse namedroping, existe uma aura profundamente espiritual que faz com que o termo sludge metal (lodo, em tradução livre) soe muito limitador. Elementos da natureza são componentes centrais nas letras do grupo, e a música até foi trilha para uma recente sessão de meditação em São Paulo.

Scott Kelly: o papai noel do metal avançado (Foto: Fernando Yokota)

Quando as cortinas abriram para a atração principal da noite, o mais curioso foi perceber que as canções são tão cerebrais quanto musculares. Era possível se deixar levar pela dinâmica de luz e sombra, não fosse a urgência que o alto volume das caixas impunha. Interessante notar que, para quem sempre prezou pelo aspecto visual (com um sexto membro encarregado na função até 2012), o Neurosis prendeu o público brasileiro “apenas” com seu som. Por mais imagético que o repertório possa ser nos discos, ao vivo o negócio é pura massa sonora. O estrondo é tanto que a sinestesia parece se quebrada pela própria vibração natural das ondas: ao fechar os olhos, qualquer paisagem imaginária ruía. Só restava apreciar o corpo tremendo.

Noah Landis e sua aparelhagem (Foto: Fernando Yokota)

Quem esteve na grade ou perto pôde constatar que a lendária falta de interação da banda com a plateia não é completa. O fundador Scott Kelly permanece contido com sua guitarra, mas seus companheiros não só se movimentam bastante como olham diretamente nos olhos do público. Com insistência, era possível se comunicar via caretas com o tecladista Noah Landis e o baixista Dave Edwardson. Bater cabeça no ritmo de Steve Von Till, por mais trivial que soe em palavras, era quase uma conexão espiritual. Na parte de trás, o baterista Jason Roeder sustentou as canções e provou, mais uma vez, que peso vem de execução e não de kits astronômicos.

Steve Von Till: os mamutes não foram extintos (Foto: Fernando Yakota)

Von Till havia declarado antes que a preocupação do Neurosis em seus setlists era mais baseada na resposta emocional do que na inserção de clássicos per se. Mas novidades rolaram: “Stones from the Sky” voltou ao set, “Takeahnase” (do clássico Souls at Zero (1992)) e “At the End of the Road” surpreenderam os presentes. A euforia se destacou nos clássicos “Locust Star” e o encerramento com “The Doorway”, únicos representantes dos álbuns mais aclamados da banda. Com uma discografia tão consistente, nem mesmo um show de 3 horas cobriria tudo; mas a execução destruidora garantiu que nenhum momento foi menos digno de aplausos que o antecessor.

Após pouco mais de uma hora e meia, os integrantes saíram um por um, enquanto a rajada de microfonias se espalhava pelo ambiente. Roeder marcou o fim da jam com uma pisada firme no bumbo, saudou a plateia e saiu. Zero palavras ditas ao público – não era necessário.

Até o fotógrafo sentiu o impacto: Jason Roeder destruindo (Foto: Fernando Yokota)

Quem esperou do lado de fora do Carioca Club conseguiu trombar Scott Kelly, assim como quem chegou cedo esbarrou em Landis e Edwardson no bar vizinho. Independente das selfies pra coleção, é unânime que o saldo do show foi muito acima da média. No fim, o Neurosis pode ser composto por apenas cinco indivíduos que, por paixão, ainda fazem música. Assim como o Godspeed You! Black Emperor, são nomes seminais que acabam não sendo os mais populares em seu estilo até por escolha; quiçá o reconhecimento no underground baste. Para nós do público, foi muito mais que o suficiente. Transcendência pura e legítima, de humanos comuns para/com humanos comuns.

Dave Edwardson: baixista, urrador e tiozão maneiro nas horas vagas (Fotos: Fernando Yokota)

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