Loveless e Mulholland Drive: a estética moderna do onírico

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Nilo Vieira

A relação de produções artísticas com o onírico é intrínseca desde as primeiras tentativas humanas em se expressar. De lá pra cá, artistas nos mais diversos segmentos marcaram época utilizando a estética dos sonhos em seus trabalhos: o pintor Salvador Dalí, o cineasta Luis Buñuel e o músico Jimi Hendrix são alguns exemplos mais básicos e conhecidos de arte surrealista, mas seria possível ficar meses comentando obras menos conhecidas que também merecem atenção. Por hora, vamos nos ater a duas, aniversariantes recentes: o disco Loveless, da banda My Bloody Valentine, e o filme Mulholland Drive (no Brasil, virou Cidade dos Sonhos), do cineasta David Lynch.

De cara, tais trabalhos já fisgam a atenção pelos títulos, aspecto muitas vezes pouco explorado. Ao passo em que Cidade dos Sonhos – uma tradução péssima: além de obviamente não ser literal, pode servir de spoiler para os mais atentos – faz jus à obra profundamente psicanalítica elaborada por Lynch, Loveless segue a deixa de seu elogiado antecessor, Isn’t Anything (“não é nada”, em tradução livre), e se mostra bastante contraditório; como um álbum que custou uma fortuna, quase faliu uma gravadora e demorou mais de dois anos para ficar pronto poderia ser chamado de “sem amor”?

Essa impressão só se confirma ao dar o play. Mesmo com vários pedais de efeito e distorções de guitarra encobrindo os outros instrumentos numa primeira ouvida, é palpável o intimismo profundo de Loveless. Ao mesmo tempo em que as camadas etéreas permitem uma apreciação mais lisérgica, a produção rigorosa esconde detalhes que só uma audição atenta pode captar. No entanto, alguns aspectos ainda permanecem um mistério (as letras, por exemplo, nunca foram transcritas oficialmente) mesmo para os mais familiarizados. Quem se deixar levar perceberá que a magia do disco é justamente essa contradição. Os aspectos enigmáticos não demandam uma explicação lógica universal, e sim interpretações pessoais sujeitas à mudanças. A icônica capa é bastante sugestiva, e cabe o paralelo: o desafio aqui não é como enxergar através da névoa, e sim o que se visualiza dentro dela.

Cidade dos Sonhos trabalha de maneira semelhante. A “solução” mais comum – pesquisa imediata no Google após a primeira assistida – para o final do filme pode satisfazer a mente contorcida por um instante, mas nem de longe consegue abranger o longa em sua integridade. Quando cobrado por uma explicação formal sobre a obra, David Lynch recusou e afirmou o que já devia ser óbvio: cada um deveria formar sua própria interpretação. Todavia, ao contrário do aconchego proporcionado por Loveless, Mulholland Drive mostra a faceta sombria do onírico. Assim como em Persona (1966), o escapismo é retratado de maneira perturbadora e detalhista, extraindo o sobrenatural do cotidiano.

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Elementos tidos como fundamentais são subvertidos em ambas as obras. Em Loveless, a percussão é majoritariamente composta por samples e soa um tanto tímida de modo geral. Na contramão dos parâmetros de bateria pro rock, essa opção dá total liberdade para as guitarras ditarem o ritmo e estas, ao encobrirem as batidas, descartam a necessidade de uma sustentação terrena: o intuito aqui é flutuar, sem se preocupar com as direções. O volume estrondoso dos amplificadores é convertido em um instrumento de alto caráter melódico e torna-se um elo de comunicação para com o ouvinte, contrastando com a postura tímida das linhas vocais – herança da seminal banda escocesa The Jesus and Mary Chain, cuja presença de palco renderia o rótulo para o som executado por eles: shoegaze (olhar os sapatos).

Já algumas atuações em Cidade dos Sonhos parecem ser caricaturais de propósito, tanto para mostrar que a realidade pode ser bem bizarra como para demonstrar o quão pérfidos somos em nossas projeções inconscientes. Como o filme também é metalinguístico, Mulholland Drive ganha alto nível de complexidade e abrange diversos gêneros cinematográficos – há um quê de comédia absurdista, elementos de máfia, um trecho trash violento que poderia ser assinado por Quentin Tarantino, homenagens à era de ouro de Hollywood, clima neo-noir e, claro, o drama psicológico herdado de Ingmar Bergman – a ponto de ser difícil falar de seu enredo sem dar grandes spoilers. Mesmo assim, a película escolhe por não ser totalmente impenetrável, o que exerce uma atração singular no espectador: a escuridão está ali, mas ela se apresenta de maneira muito convidativa. Nesse quesito, merece menção a bela trilha sonora composta por Angelo Badalamenti, que já havia colaborado com Lynch no famoso seriado Twin Peaks.

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Reação de pessoas normais ao filme

Ainda que não tenham conseguido grande sucesso comercial, o impacto dessas obras foi grande e é sentido até hoje. Loveless elevou os padrões de produção musical a outro patamar, e sua sonoridade distinta inspirou desde o Smashing Pumpkins (Billy Corgan ficou tão impressionado que contratou um dos engenheiros de som para a elaboração de Siamese Dream) até bandas de metal extremo, especialmente no black metal, além de “Sometimes” ter entrado no filme Lost in Translation (2003). Ainda no cinema, pode-se citar o mais recente filme do diretor Nicolas Winding Refn, The Neon Demon (2016), como prova da longevidade dos mistérios de Mulholland Drive, além das constantes citações em listas de publicações respeitadas – em agosto deste ano, foi eleito pela BBC como melhor filme do século 21.

O baque também atingiu os próprios criadores: Lynch demorou cinco anos para lançar seu próximo (e, até o momento, último) longa-metragem, o colossal Inland Empire, enquanto a trupe de Kevin Shields só entregaria um sucessor para Loveless em 2013, com m b v. Duas sequências que trilham muito os caminhos de seus antecessores, ainda que possuam suas peculiaridades e tenham sido elogiadas.

Os conceitos dos dois trabalhos são copiados a rodo até hoje, mas jamais foram igualados. Aliás, curioso notar que, mesmo tendo conquistado uma sólida base de fãs no underground independente ao longo dos tempos, nunca chegaram às grandes massas. Nem mesmo no gosto do universitário indie médio, tido como super antenado com alternativismos, parecem ter caído; pelo contrário, a preferência ainda recai em obras bem mais simplificadas, tal qual a psicodelia requentada do Tame Impala ou o surrealismo teen de Donnie Darko (2001). Ainda que dignos, os supracitados passam longe de apresentar qualquer inovação que justifique tamanha fama.

Se isso se deve puramente por fator de gosto ou não, pouco vem ao caso. Fato é que, respectivamente após 25 e 15 anos depois, Loveless e Mulholland Drive sobreviveram ilesos ao teste do tempo e permanecem como clássicos irretocáveis – daqueles delírios que, conscientemente ou não, adoramos revisitar.

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