Há males que vêm para o bem: 5 anos da catarse de Katy Perry em Witness

Capa do álbum Witness de Katy Perry. Na imagem que captura do pescoço para cima, a cantora de pele branca e cabelos claros tampa os seus olhos com as mãos. A sua boca aberta revela um olho azul. Na esquerda, uma assinatura onde se lê “Katy”. Ao fundo, um plano branco com bordas roxas.
A arte de capa do Witness foi inspirada no surrealismo de Salvador Dalí (Foto: Capitol Records)

Nathalia Tetzner

O ano era 2017 e Katy Perry dava início ao seu tão ansiado quarto álbum de estúdio com o seguinte questionamento: “se eu perdesse tudo hoje, você ficaria?”. E, não é que ela perdeu tudo mesmo? Autêntico, inovador e coeso; todos esses adjetivos são o que Perry e a sua equipe esperavam que o seu mais novo projeto fosse. A realidade é que a artista e a sua obra passaram a coexistir em um só estado de espírito e, naturalmente, seus conflitos foram refletidos em suas composições. Vicioso, genérico e confuso: Witness é o registro da catarse pessoal e artística de uma das maiores hitmakers do século que, depois de tamanho sucesso, ainda não havia experimentado o gosto traumático e amargo da quebra de expectativa.

Katheryn Elizabeth Hudson nasceu em meio ao dogmático ambiente conservador estadunidense dos anos 80. Filha de pastores, a alma pura e inocente que não tinha permissão para escutar Madonna ou assistir Os Smurfs lançou o seu primeiro e último disco em 2001. Katy Hudson, o autointitulado álbum cristão vendeu menos de 200 cópias, o suficiente para Katheryn ser assassinada e substituída por uma diva pop sem escrúpulos. Livre de qualquer estereótipo, Katy Perry ganhou vida e as principais paradas de Música mundiais ao cantar sobre beijar garotas e acordar na Cidade do Pecado. Uma década depois de sua ascensão, a homogeneidade consolidada de Perry encontraria o seu fim.

Fotografia do pescoço para cima de Katy Perry durante a sua adolescência, ainda sob o nome de Katy Hudson. A cantora de pele branca e cabelos e olhos claros olha diretamente para a câmera. Ela está deitada em um gramado e veste uma camiseta xadrez e um gorro bege.
Perry voltou para o seu loiro natural em Witness (Foto: Red Hill Records)

Witness, ou testemunha em português, chegou ao ouvido dos fãs após uma espera de quatro anos desde o lançamento de PRISM, seu estrondoso antecessor. Mas até esse momento chegar, centenas de globos espelhados foram avistados ao redor de todo o planeta, inclusive um no Rio de Janeiro. Ao encontrá-los, o público escutava através de um fone de ouvido a faixa Chained To The Rhythm. Se dava início a nova Era musical da garota californiana mais querida pelo Brasil. A divulgação em grande estilo não foi novidade, já que o retorno comercial dos últimos três álbuns provava que não importava o tamanho da expectativa, pois ela definitivamente seria ultrapassada. Entretanto, não foi isso o que aconteceu.

Para os amantes da Arte, arrecadação de lucros não é tudo. Na época, nem Katy Perry, nem seus fãs sabiam disso. Afinal, a Física demonstra que quanto mais alto se sobe, maior é a queda e ninguém quer sentir a dor da gravidade ao cair das nuvens de um sonho e acordar no concreto. Cidadã ativa politicamente, o desencanto se originou durante o período eleitoral estadunidense em 2016. A rainha da selva vividamente apoiou a campanha de Hillary Clinton e, com a posse de Donald Trump, ela decidiu que não iria deixar o ativismo de lado. A artista lançou dois vídeos para o primeiro single do Witness: um roedor correndo em círculos e um passeio por um parque de diversões distópico, sátiras nítidas e perspicazes ao Sonho Americano.

Fotografia promocional de Katy Perry para a faixa Chained To The Rhythm. Na imagem que captura da cintura para cima, a cantora de pele branca e cabelos e olhos claros olha para a direita enquanto segura uma espécie de cachecol com uma das mãos. Ela está sentada em uma escada rosa e veste uma camiseta de botões e uma saia do mesmo tom de azul da peça nos ombros. Pendurada em seu pescoço está uma gravata rosa com desenho de abacaxis em amarelo e verde. Ao fundo, um plano amarelado
Chained To The Rhythm gerou performances com cunho político (Foto: Capitol Records)

“Este é o meu desejo/Derrubar os muros para conectar, inspirar/Ei, aí em cima, no seu lugar alto, mentirosos/O tempo está contado para o império/A verdade que eles alimentam é fraca/Como muitas outras vezes antes/Eles são gananciosos sobre o povo/Eles estão tropeçando e sendo descuidados/E nós estamos prestes a nos revoltar/Eles acordaram, eles acordaram os leões”

Os versos de Skip Marley, neto de Bob Marley, arrepiam e provocam um sentimento de pertencimento. É como se o ouvinte estivesse ali, ao lado de Marley, lutando a mesma luta dele e de Perry, em luto pelos mesmos ideais suprimidos. Se Chained To The Rhythm acorrenta quem escuta ao seu ritmo e pode ser considerada um primor, por que o público não comprou? Logo ele, que sempre reclamava da subjetividade e do duplo-sentido nas letras da lenda do Egito, agora estava rejeitando o amadurecimento e suplicando pelo retorno daquela que sempre escondeu tópicos sérios através de analogias bobas. Em uma mistura conturbada, a sua mais nova persona se juntou ao seu passado para compor outras 16 faixas.

Flutuando na inconsistência do seu ser, Witness cumpre em parte o que prometeu. Apelidado pela sua criadora de purposeful pop (pop com propósito), o disco varia entre o público e o privado. Enquanto em alguns minutos ele narra o poder da mulher de forma polida, em outros, ele desiste do tom amargo e trata o feminino com três sílabas simples, Hey Hey Hey, feitas para grudar na mente como um chiclete. Em meio ao amadurecimento, a Katy Perry do passado que sempre precisou de um pouquinho de Peter Pan ainda estava lá. Faltava a sua larga audiência que, assustada, correu para longe quando a cantora abraçou o seu pixie cut depois de um corte químico, drasticamente alterando a sua identidade visual.

Fotografia de Katy Perry se preparando para o tapete vermelho do Met Gala 2017. Na imagem que captura do pescoço para cima, a cantora de pele branca e cabelos e olhos claros olha em direção ao chão. Ela veste um vestido vermelho e um véu da mesma cor. No véu, Witness está bordado em preto com um detalhe em branco onde se forma o desenho de um olho.
O título de Witness foi anunciado com um véu da grife Maison Margiela no tapete vermelho do Met Gala 2017 (Foto: Maison Margiela)

É impossível escrever sobre o quarto álbum de estúdio de Perry sem abranger a queda do número de admiradores e o aumento do ódio gratuito que ela sofreu. O senso comum gerado em torno do disco é a causa e efeito dele mesmo. Não há como mudar a percepção tão estritamente estabelecida: todos os adjetivos negativos remetem ao projeto. Contudo, 5 anos depois, nunca foi tão perceptível o fato de que escutá-lo também pode ser benéfico. Como um remédio ruim de engolir, ele é amargo no gosto e anestesiante nas consequências. Para a extraterrestre e os seus fãs que continuaram segurando a sua mão, o fruto seria colhido apenas no término do tratamento.

Catarse é um substantivo feminino. Para a religião, medicina e filosofia da Antiguidade grega, ela significa a libertação do que é estranho à essência e que, por isso, corrompe. Já para a estética e o teatro, ela simboliza a purificação do espectador por meio da purgação dos seus sentimentos. Se Witness age como um medicamento, o diagnóstico de catarse é o que permite o seu uso. Tal porque, Katy Perry, acostumada a agir como um antídoto para a tristeza, embarcou pela primeira e única vez em uma jornada profunda pelo autoconhecimento. Expurgando tudo o que ela conhecia de si mesma, todos que entram em contato com a sua catarse são afetados, não há como continuar o mesmo.

Fotografia promocional de Katy Perry para o encarte do seu CD Witness. Na imagem que captura do pescoço para cima, a cantora de pele branca, cabelos escuros e olhos claros está virada para a direita. Ela olha para cima e a sua maquiagem mistura cores quentes e frias. Ao fundo, um tecido vermelho quase transparente se confunde em meio ao plano branco.
A visual conceitual do encarte do CD seguiu as cores e formas de Peter Sato (Foto: Capitol Records)

Em busca de uma testemunha e vulnerável como nunca, Perry tornou o mundo o seu maior observador. Witness World Wide entrou ao ar na madrugada do lançamento do álbum e permaneceu ao vivo na plataforma do YouTube durante 4 dias. Com milhares de câmeras supervisionando cada passo, a cantora nunca antes esteve tão exposta. E ela não se escondeu, pelo contrário, florescendo como nunca. Entrevistas engraçadas, sessões de terapia emocionantes e cochilos ao lado de sua cachorra Nugget, a livestream significou tudo que ela havia colocado em versos na última balada do disco: a jogada com a pronúncia parecida de Into Me You See (Em mim você vê), título da faixa, e intimacy (intimidade) resume com maestria a vontade de quebrar todas as paredes altas que ela construiu para se proteger.

Produzido por Max Martin, Oscar Holter e Ali Payami, Witness embarca no labirinto mental de Katy Perry sem deixar o pop para trás do experimental. O projeto soa distinto ao ser comparado com a discografia de sua dona, ainda que tenha sido assinado pelos mesmos parceiros musicais. O time acerta ao retomar a euforia e a excitação em Roulette, favorita unânime dos fãs, enquanto comete um deslize com Bigger Than Me, uma letra notável que se torna vazia e superficial com o arranjo nada inspirado. Oscilando de um lado para o outro como um pêndulo, o álbum se movimenta constantemente, gerando para os aventureiros, a adrenalina e para os conservadores, o enjoo. 

Fotografia promocional de Katy Perry para a faixa Bon Appétit. Na imagem que captura do busto para cima, a cantora de pele branca e cabelos e olhos claros segura uma fatia de cenoura na altura da boca. Ela veste uma roupa íntima bege enquanto é coberta por pedaços de legumes e temperos. Ao fundo, uma mesa de madeira onde ela está deitada
O videoclipe para Bon Appétit acumula mais de 1 bilhão de visualizações no YouTube (Foto: Capitol Records)

Indo na contramão da proposta do disco, Bon Appétit é a apologia a culinária mais controversa dentre todas as infinitas músicas já lançadas com o mesmo tema por Perry. Sensual, vibrante e provocadora, a torta de cereja surpreendeu e incomodou com o seu refrão açucarado. Porém, nada chocou tanto quanto a experiência visual do videoclipe dirigido por Dent De Cuir e regado de uma visão pitoresca do canibalismo. Especialista no uso do duplo sentido, ela infelizmente se juntou ao grupo de rap Migos para uma colaboração no segundo single. 5 anos atrás, o trio já colecionava acusações de homofobia e a parceria gerou uma revolta racional entre os fãs.

Toda a problemática do momento alcançou o seu ápice durante uma performance promocional no Saturday Night Live, tradicional programa humorístico dos Estados Unidos. Desconfortável e nitidamente sendo a única com vontade de trabalhar no palco, a oficial da marinha foi ridicularizada por meses. A verdade é que Quavo, Offset e Takeoff se recusaram a cantar ao lado de drag queens e, de última hora, a diva pop teve que improvisar uma encenação que, no mínimo, prendesse a atenção. Recheado de polêmicas, a parceria era completamente desnecessária. O desejo de bom apetite não adiantou, a má digestão tomou conta. Mais uma vez na Era Witness, Katy Perry dançou com o diabo.

Fotografia de Katy Perry durante a sua turnê Witness: The Tour. Na imagem que captura todo o corpo, a cantora de pele branca e cabelos e olhos claros está com as mãos na cintura. Ela veste uma peça vermelha que cobre da cabeça aos pés. Nos seus olhos, ela usa um óculos de lentes refletidas. Ao fundo, papéis picados caem em um cenário apagado que ilumina apenas Perry.
Katy Perry fez 115 shows ao redor do mundo pela Witness: The Tour (Foto: Soul Purpose 77)

“Eu escrevo, apago, repito/Mas que bem fará reabrir a ferida?”, Save As Draft é a maior contribuição de Perry para o seu quarto álbum de estúdio. Brutalmente sentimental, os vocais e os acordes transportam qualquer um para a Sunset Boulevard, rua de Los Angeles onde um SUV atrai os olhares da compositora e dos ouvintes. Ela pode até ter salvo como rascunho as indiretas para um ex-namorado, contudo, não teve medo ou recuou ao deixar todos os seus sentimentos explícitos e se entregar para a sua catarse na faixa. Nos segundos finais, ela não está sozinha quando olha para uma bifurcação no meio da estrada, pelo contrário, todos estão prontos para escolher a melhor direção ao seu lado.

Outro destaque é Déjà Vu, a sensação menos condizente com o que Witness transmite é a representação do desejo inicial de não repetir as mesmas fórmulas dos seus projetos anteriores. Cansada de correr em loop e definindo a insanidade como o ato de viver todos os dias da mesma maneira, a artista faz uma hipnose por meio das ondas sonoras. Igualmente espetacular, a turnê de divulgação, Witness: The Tour, carregou visuais deslumbrantes que contavam com um olho gigantesco como telão e uma passarela em formato de lágrima. Com uma estrutura de outro mundo e figurinos esplêndidos, a nerd ainda está devendo o documentário para os fãs que querem reviver o show.

Fotografia de Katy Perry e Gretchen no palco da Witness: The Tour em São Paulo. Perry, uma mulher de pele branca e cabelos e olhos claros, veste uma peça azul que cobre o seu corpo através de listras. Gretchen, uma mulher de pele bronzeada e cabelos e olhos escuros, veste um vestido de manga curta vermelho com detalhes em branco. Katy Perry aponta para Gretchen enquanto apresenta a cantora nacional para o público. Ao fundo, dançarinas vestem laranja em um cenário apagado que ilumina apenas as atrações.
Perry entrou na brincadeira dos fãs e também se apaixonou pelos memes da Gretchen (Foto: Celso Tavares)

Um dos cenários mais aleatórios que Katy Perry já criou foi a participação da cantora brasileira e meme internacional Gretchen, no Lyric Video de Swish Swish, o terceiro single do disco, com a rapper Nicki Minaj. A atração nacional trouxe exatamente o que faltava para a música, o carisma, tanto é que o videoclipe oficial falha em ser tão dinâmico e marcante. Durante a passagem da Witness: The Tour pelo Brasil, Perry fez questão de enaltecer a rainha do rebolado em São Paulo. Já no Rio, ela homenageou Marielle Franco, vereadora carioca assassinada no mesmo mês. Com o fim da turnê, a cantora humildemente encerrou a Era que se tornou um divisor de águas na sua história.

Vicioso, genérico e confuso, há quem diga que Witness foi um completo fracasso. Primeiro lugar da Billboard 200, principal parada musical estadunidense, em sua semana de estreia, videoclipes com bilhões de visualizações e plateias lotadas por onde passou, o projeto foi uma decepção apenas para os parâmetros altíssimos conquistados pela estrela do pop. Para ela, a catarse experimentada foi necessária e concluir o trabalho significou uma vitória pessoal: “Sou grata pela dor porque me empurrou para o crescimento. E agora, sinto que não sou como uma estrela pop sedenta e desesperada que está apenas tentando acertar um número”, afirmou ao ser entrevistada por Zane Lowe para a Apple Music em 2020.

Fotografia promocional de Katy Perry para a faixa Never Really Over. Na imagem que captura do busto para cima, a cantora de pele branca e cabelos e olhos claros direciona o seu olhar para a câmera. Ela veste um vestido longo nas cores laranja, amarelo e roxo. Ela o movimenta com os braços para o ar. Ao fundo, árvores transformam o cenário em verde.
Never Really Over foi o primeiro single de Smile, álbum posterior ao Witness (Foto: Capitol Records)

“Eles disseram que eu não ia a lugar nenhum, tentaram me deixar de fora/Peguei aqueles paus e pedras, mostrei que eu poderia construir uma casa/Eles me dizem que sou louca, mas nunca vou deixar que eles me mudem/Até que eles me cubram em margaridas, margaridas, margaridas”

5 anos desde o seu lançamento, nunca houve tantos motivos para celebrar Witness. Depois de se libertar do que a corrompia e purificar os seus espectadores, Katy Perry voltou para a cena pop com o seu quinto álbum de estúdio, Smile. O título do projeto diz muito sobre o que o final de sua catarse a aguardava: o sorriso. Após todos os encontros e desencontros, Perry conhece e ama ela mesma. Mas, não somente, Daisy Dove Bloom veio ao mundo no mesmo dia que o projeto chegou às plataformas de streaming, a filha é tudo o que ela mais desejou e a prova maior de sua resiliência. Agora, com o sorriso recuperado, todos enxergam o brilho dela a uma milha de distância.

Há males que vêm para o bem e Witness é um deles. Dentro de sua intimidade, todo o mundo pôde testemunhar a sua artisticidade e vulnerabilidade. O álbum pode até ser lembrado pela sua quebra de expectativa e lacunas técnicas, porém, o que o torna memorável é a coexistência entre artista e obra que permitiu uma catarse inesquecível. Se, há 5 anos, Katy Perry incansávelmente andava à procura de alguém que a testemunhasse, hoje ela somente se preocupa em amar a vida. A dona de tantos hinos de superação e motivação enfim encontrou a sua felicidade. Witness completa mais uma volta ao redor do Sol sem deixar de ter uma testemunha para comemorá-lo.

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