Reviver Elis é melhor que sonhar

Na imagem Andréia Horta está caracterizada como Elis Regina. Ela está de lado, com a mão esquerda sobre um microfone, o qual encosta na lateral do seu rosto. Sua face está virada para a câmera e ela tem um largo sorriso estampado, olhos fechados e os cabelos castanhos escuros cortados bem curtos.
“Porque liberdade e ar são duas coisas que a gente sente que são essenciais para a vida. Sobretudo quando fazem falta” (Foto: TV Globo)

Ana Laura Ferreira e Raquel Dutra

A trajetória da música brasileira transpassa a história do país. Os fatos, a política e o social moldaram a forma e o conteúdo dos nossos produtos culturais, que muitas vezes combateram na linha de frente os regimes abusivos, denunciaram e registraram as experiências de cada período. No nascimento de um dos gêneros musicais mais brasileiros dentre os nascidos em terras tupiniquins não seria diferente, como ilustra a minissérie Elis – Viver é Melhor que Sonhar e seu retrato da origem da Música Popular Brasileira protagonizada pela Pimentinha Elis Regina. A produção indicada a Melhor Minissérie/Telefilme no Emmy Internacional 2020 mergulha no cenário efervescente da música nacional entre os anos de 1960 e 1980 ao mesmo tempo em que fragmenta a gaúcha, mãe da MPB, em muitas mulheres para além da artista.

Dona de um poder vocal inigualável e de canções atemporais, Elis Regina Carvalho Costa iniciou sua carreira ainda criança em Porto Alegre, mas foi em 1964, aos 19 anos, que atraiu a atenção de importantes empresários do meio artístico da época. É nesse momento da vida da cantora que a minissérie se inicia, contextualizando brevemente o cenário em que o país se encontrava naquele momento: o início do regime militar. Através de depoimentos de jornalistas, recortes de jornais, falas de outros artistas e da própria Elis, a minissérie baseada na vida da artista assume também um caráter documental, que falha em alguns momentos ao ilustrar levianamente a realidade difícil que o país passava na época, mas triunfa em criar um resumo do que foi a música brasileira daquele período. 

Imagem em branco e preto de Elis Regina sorrindo de perfil. Ela tem a mão direita apoiando o rosto e ao fundo a imagem desfocada de uma pessoa.
No dia 22 de Outubro de 2020, o Ballet Stagium apresentou, no projeto Em Casa Com Sesc, o espetáculo “Sonhos Vividos” inspirado na música de Elis Regina, ex-aluna da companhia (Foto: Reprodução)

Destacando a identidade ousada de Elis que conflitava com os gêneros musicais bem-sucedidos na época, a trama pinta a artista com a importância devida: a mãe da Música Popular Brasileira, que na contramão do jazz suave da bossa nova dominante naquele tempo, cantava com “o coração sangrando”. Essa divergência de estilos foi inclusive motivo de desentendimento entre a cantora e Tom Jobim e Vinícius de Moraes, ‘os donos’ do movimento que é considerado um dos mais influentes da música brasileira, produzindo uma arte que ia de encontro aos ideais desenvolvimentistas e modernos da presidência de Juscelino Kubitschek.

Todos os conflitos que a artista encontrava na época com o cenário musical e do próprio país e a química da cantora com a sua arte são impressos na personagem de Andréia Horta e destacados pela direção de Hugo Prata. Elis não economizava sentimentos e encontrou um povo que clamava por uma cantora de peito aberto. Junto a outros movimentos que já iam numa direção mais denunciante, como o Tropicalismo, é que Elis dá vida a MPB, quando protagonizou o extremamente bem-sucedido programa Fino da Bossa ao lado de Jair Rodrigues (Ícaro Silva). Mesmo com uma passagem rápida pela série, a dupla revive a química espirituosa que os artistas transbordavam na televisão. 

Sucesso esse que cobrou dela muito trabalho, e ainda reconstituindo as movimentações da música brasileira na época, o roteiro que o diretor escreveu junto de Vera Egito e Luiz Bolognesi relembra todas as vezes que a artista teve de se renovar. Assim, Elis – Viver É Melhor que Sonhar pontua a novidade da década de 60: a Jovem Guarda. O gênero nasceu do encontro da música brasileira com o rock’n’roll provocado por figuras como Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa e roubou a atenção das gravadoras e do povo brasileiro, forçando Elis a se reinventar e repensar sua arte e sua carreira.

Imagem da série Elis: Viver é melhor que sonhar na qual Andréia Horta, caracterizada como Elis regina aparece de braços abertos cantando em frente a um microfone antigo. Ela usa um vestido que tem a parte de cima em branco e a saia em preto, seus cabelos pretos chegam aos ombros. Ao lado dela, Ícaro Silva está caracterizado como Jair Rodrigues e usa um terno preto. Ele está de perfil com os braços abertos em direção a ela e ao fundo a imagem desfocada do baterista.
Cinco décadas depois de sua última transmissão, O Fino da Bossa voltou a ser exibido em 2018 na edição especial em comemoração aos 65 anos da Record TV (Foto: Reprodução)

Usando os cenários externos para mergulhar na intimidade da artista, a minissérie nos dá acesso à “Elis mãe” e à “Elis esposa”. Embarcando nos altos e baixos de seu primeiro casamento com o produtor e compositor Ronaldo Bôscoli, entre os anos de 1967 e 1972, conhecemos seu emocional e suas inseguranças ao assumir aquele novo papel. Até ingênua, de certa forma, a Elis de Andréia Horta se mostra muito menos voraz e explosiva do que ela era nos palcos. Se entregando aos vários lados da multifacetada artista é que a atriz nos leva de encontro com as inseguranças e fragilidades de Regina.

É em meio ao turbilhão de emoções que Elis – Viver é Melhor que Sonhar inicia um aprofundamento na realidade externa da bolha que contempla a cantora. Assim como Chico Buarque, Milton Nascimento e Gilberto Gil, Elis também foi alvo de censura por parte do regime militar. Pressionados pela ditadura, muitos artistas e intelectuais brasileiros foram obrigados a se exilar fora do país, como única alternativa para evitar a tortura. No caso de Regina, somos puxados para o drama ao qual sua vida é submetida quando ela se vê obrigada a cantar nas Olimpíadas do Exército de 1973, sob ameaça. Os atos de repúdio dirigidos a cantora a condenaram por se submeter ao ‘diálogo’ com os militares, mas a série deixa claro como o medo falou mais alto naquela situação e em como ela se sentiu ao perceber que ele havia atropelado seus ideais.

Mesmo após seu enterro simbólico, desenhado pelo cartunista Henfil para o semanário alternativo O Pasquim, ela se manteve em meio aos holofotes. Temos então, pela primeira vez em Elis – Viver é Melhor que Sonhar, o ponto de vista e a opinião do público quanto a cantora. As vaias que invadem o teatro e a abalam completamente se opõem a melodia entoada, e então a perspectiva da trama se altera completamente e migra de vez para o íntimo de Elis. Marcada pelo fim do primeiro casamento e o início da relação da artista com o pianista César Camargo Mariano, a calmaria toma conta da minissérie, que segue sem se preocupar em mostrar devidamente o frenesi que invadia o país. 

Imagem de Elis regina com seus filhos. Ela está sentada em uma cadeira e segura Maria Rita, ainda pequena, em seu colo. Ao lado dela estão seus dois filhos mais velhos.
Em entrevista a GZH, Andréia Horta afirmou sobre Elis: “Uma das coisas que mais mexeram com a minha cabeça é essa noção tão clara diante da história dela, de que o corpo, o coração e a vida podem parar a qualquer momento” (Foto: Reprodução)

A madura e sossegada relação de cumplicidade entre Regina e César ganha ainda mais veracidade graças à sintonia trazida por Andréia e Caco Ciocler. Muito mais do que apenas um casal, podemos sentir e quase tocar aquela amizade pura que é acalentada por melodias como Fascinação. De tão profunda, eles não tem escolha se não se entregarem de vez àquele amor construindo uma nova vida juntos. É a partir de então que a “Elis mãe” volta a aparecer, mas de uma forma bem diferente, mais serena e madura. Somos levados junto a ela em devaneios sobre seu papel como mulher e suas preocupações em fazer uma diferença real no mundo, agora que ela é mãe de Maria Rita e sabe dos percalços que sua filha vai enfrentar por conta do gênero. Essa perspectiva passa a dominar outros aspectos de sua vida, como sua carreira e até mesmo sua consciência política. 

Nessa direção é que a minissérie volta a pincelar a potência política de Elis, quando chegamos na década de 70 e a ousadia de Falso Brillhante começa a se acender em seu coração. O projeto veio num outro momento de renovação da carreira da artista, que depois de encarar duras críticas e consequências pelo episódio das Olimpíadas Militares, juntou toda sua coragem para denunciar a situação que o artista brasileiro enfrentava naquele momento. Misturando críticas sociais com a sua própria história, Regina apostou todas as suas fichas ao colocar na estrada um espetáculo circense montado a partir do disco, e Andréa Horta, mais uma vez, imprime a alegria de Elis ao ver o projeto mirabolante se transformando em um sucesso, trazendo de volta sua aura característica enquanto o hino Como Nossos Pais toca ao fundo.

Imagem da série na qual vemos Andréia Horta caracterizada de Elis. Ela está de perfil e veste um blazer preto e uma calça jeans estilo pantalona. Seus cabelos encaracolados estão soltos na altura do ombro e ela dá as mão a atriz Mel Lisboa, caracterizada como Rita Lee. A personagem de Mel está de perfil, tem os cabelos ruivos compridos e veste uma blusa vermelha e branca e uma calça marrom.
Fica claro na cena em que ela e Rita Lee se encontram que a arte de Elis excede as qualidades musicais para fazer parte de toda uma geração de artistas e mulheres que lutam por seus direitos (Foto: TV Globo)

Mas apesar das diversas facetas as quais temos acesso, Elis – Viver é Melhor que Sonhar peca em sua constante necessidade de se apresentar da forma mais polida possível. Sem adentrar a fundo nos vícios em álcool e drogas da cantora e no contexto político em que ela e o país viviam, a série busca ao máximo trazer ao espectador uma Elis idealizada, e portanto, irreal. Os esforços da produção para entregar uma narrativa suavizada e um ambiente estéril alongam o caminho entre o público e a protagonista, que só se conectam graças à interpretação surreal de Andréa.

Os lapsos de tempo que constroem a minissérie são ao mesmo tempo fluidos e abruptos, edificando uma estrutura episódica que nos leva até o trágico desfecho da vida da cantora. Infelizmente, até mesmo neste momento de caos e emoções exacerbadas, o roteiro se prende a sua polidez. O que por um lado retira a visceralidade da situação – que poderia ser muito bem empregada ao se ater ao realismo dos fatos – , por outro acrescenta uma poesia e um romantismo dignos de Shakespeare a conclusão da história.

A imagem em branco e preto mostra Elis Regina cantando com um largo sorriso nos lábios e os olhos fechados. Seu cabelo preto está cortado bem curto e ela segura um microfone com a mão direita, na altura da boca.
A versão longa metragem da minissérie ganhou 8 categorias do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro em 2017, entre eles Melhor Direção de Arte e Melhor Atriz para Andréia Horta (Foto: Reprodução)

Elis – Viver é Melhor que Sonhar funciona quase como um epílogo para a conturbada vida e carreira de Elis Regina. O recorte cintilante e envernizado entregue pela minissérie não cumpre com o acordo de veracidade firmado entre obra e espectador em seu início. A pitada de documentalismo, que é logo substituída pela licença poética, abre margem para que vejamos uma versão utópica, mas igualmente encantadora, da Pimentinha do Brasil, que completaria 75 anos neste ano de 2020. Mas ainda bem que nossa memória de Elis transcende qualquer retrato, se abrigando em cada verso e melodia que são até hoje criados e entoados a partir da influência de sua personalidade artística inesquecível, acendendo nossa lembrança fidedigna da artista que mudou a música brasileira para sempre. 

 

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