Os batimentos da mudança movem Corações Gentis

Vencedor na seção Generation 14plus do Festival Internacional de Cinema de Berlim, Corações Gentis encanta as telas brasileiras na Perspectiva Internacional da 46ª Mostra (Foto: Accattone Films)

Enzo Caramori

É possível que um sentimento de surpresa arrebate um espectador desavisado ao descobrir que Corações Gentis (2022), representante belga na Perspectiva Internacional da 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, é um documentário. Essa surpresa, no entanto, está longe de afastar o gênero do longa-metragem dirigido pela dupla de cineastas Olivia Rochette e Gerard-Jan Claes. Nesse híbrido de sensibilidades ficcionais e documentais, o casal de jovens adultos Billie Meeussen e Lucas Roefmans são retratados à beira de transformações em suas aspirações pessoais, com uma emoção vertiginosa e delicada — um típico frio na barriga adolescente — acerca das expectativas sobre o futuro e suas incertezas.

Filmado na cidade de Bruxelas, Kind Hearts título original da produção europeia —  se inicia com uma câmera que passeia pelas pessoas em uma montanha russa de um parque de diversões. Em um olhar inicial, é como se todos ali tivessem a possibilidade de serem retratados, e que a própria prática cinematográfica participasse do jogo da sorte que é a vida. Até que o aparelho, imperceptível e engrandecedor da máscara ficcional do documentário,  se fixa no casal que, logo em outra cena, se depara com questões típicas de romances em formação. A iminência do amadurecimento é uma faca de dois gumes para os dois: ao mesmo tempo que são receosos acerca do que pode mudar, levam em conta abrir mão do que possa se tornar corriqueiro — como seu namoro —, em prol de novas emoções capazes de florescer.

A produção representa uma transição do tema do primeiro amor, tão representado em séries de TV e nos filmes, para o terreno documental (Foto: Accattone Films)

Para além da representação documental, Billie e Lucas são também intérpretes de si mesmos, uma vez que reencenam momentos próprios de sua intimidade. Nisso, o ‘docudrama’ desvia de uma tendência de voyeurismo da relação para uma perspectiva honesta que se volta à concretude desse namoro; tanto que o que movimenta o encadeamento das cenas são os sinceros encontros desses pré-adultos com seus amigos e familiares. O que acaba por se montar, nesse terreno ambíguo entre ser e encenar, é a noção do afeto e da narrativa enquanto uma construção mútua; em que, no momento em que não há cuidado e vontade, não há amor. Assim como não há filme.  

Essa postura contemplativa compõe um virtuoso desenvolvimento em que as reflexões de cada personagem dão lugar a um retrato fiel dos fatos oriundos e sublimes do primeiro amor.  É como se Lucas, compondo suas batidas descritas como emotional summer tunes, e Billie, com suas pretensões dentro da universidade, se revelassem muito mais pelos laços que nutrem uns com os outros do que por reflexões de si mesmos perante as lentes de Rochette e Claes. De certa maneira, esse tom quase que pessoal demais de Kind Hearts retira dos acontecimentos cotidianos uma beleza singela que remonta à destreza dos diálogos dos verões de Eric Rohmer e dos encontros em cafés do Cinema de Hong Sang-Soo. Contudo, a ternura aqui está na realidade dessa paixão, em não conseguir colocar em palavras exatas o que se sente e o que se quer. Assim, quem assiste se insere nessa postura de mera testemunha do sentimento.

Disponibilizado na plataforma online do Sesc, Corações Gentis retrata até mesmo o isolamento pela pandemia da Covid-19 na Bélgica (Foto: Accattone Films)

Em um dos momentos de mais drástico contato entre realidade e ficção, o casal e alguns amigos assistem a um filme em que namorados tiram suas roupas para dar um mergulho. São emblemáticos seus olhares: conseguem propor uma intimidade e uma sensualidade tão sutil que nem faz necessidade de ser abarcada novamente na narrativa. No entanto, acima de tudo, a cena é premonitória do que essencialmente enfrentam nessa trajetória que, por  puro acaso, é filmada e colocada dentro do Cinema. Em uma conversa sensível com seu próprio tempo — com direito a mensagens de texto, videochamadas e redes sociais — Corações Gentis sabe trazer os gestos luminosos da afetividade em um documentário que desloca a temática da evolução, do amor e da efervescência da paixão para o mergulho nas águas frias, porém cheias de descobertas, da vida adulta. 

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