Quando o assunto é Festival, o Persona, em conjunto, clama por um único evento: o dia do Cineclube. E claro, se for em terras cariocas, a empolgação é maior ainda. Depois de 15 dias e 15 filmes, chega ao fim o Festival do Rio 2021, que com uma seleção variada de obras singulares, uniu todas as tribos e agradou até o mais cri-cri dos cinéfilos de plantão.
Da Dinamarca à Costa do Marfim, de indicados ao Oscar até esnobados injustos, um pouquinho do que há de melhor na produção cinematográfica mundial veio visitar remotamente a Cidade Maravilhosa e garantir, diariamente, um descanso fora das amarras das nossas próprias narrativas. Pela plataforma do Telecine, cada filme era disponibilizado por 24 horas e 24 horas apenas, ou seja, chegara o momento de planejar a maratona.
Figurinhas já batidas integraram o catálogo do Festival. Uma nova exibição de Druk – Mais uma Rodada é sempre bem-vinda e o atual vencedor da categoria de Melhor Filme Internacional no Oscar 2021 foi o felizardo responsável por iniciar a jornada com muito álcool e uma boa dose de Mads Mikkelsen (ou seria o contrário?). E os donos de estatuetas douradas não pararam por aí: o ácido Bela Vingança, que garantiu o prêmio em Roteiro Original para Emerald Fennell, arrancou exclamações e conquistou uma vaga entre as 15 obras. Excepcionais, sim. Mas, às vezes, poderia ter sido mais produtivo ceder espaço às produções não tão comentadas nos últimos meses.
Pincelando temas dolorosos e desconfortáveis da melhor forma que o Cinema consegue fazer, não faltou sensibilidade para discutir o que de mais horrendo a sociedade já produziu e encarar nossos demônios como espécie humana. Quo Vadis, Aida? e Caros Camaradas! miram no histórico, Slalom – Até o Limite e Ainda Há Tempo desenham o atual. Das mais variadas formas, esta edição do Festival do Rio coloca o espectador frente a frente com o espelho e exige reflexão; exige autoconsciência.
É óbvio que, no meio de tudo isso, sobra espaço para o cômico, o lúdico e até para o fantástico. No entanto, não se engane – como toda forma de expressão, o Cinema é um produto de seu tempo, dialogando com seu tempo e, muitas vezes, questionando na mesma medida. Por baixo do prédio ficcional de Edifício Gagarine ou das histórias arrebatadoras de Noite de Reis, há sempre uma lente que foca no que somos ou no que deveríamos ser.
Depois de uma cobertura completa da leva de filmes 2021, a Editoria do Persona embaralha os papéis e comenta obra por obra, loucura por loucura, apresentada na fresquíssima edição do Festival do Rio. Para quem já está com saudades das narrativas diárias, os textos abaixo revivem parte do caos latente proporcionado durante esses últimos 15 dias pelo maior festival de Cinema da América Latina.
Druk – Mais uma Rodada (Druk, Thomas Vinterberg)
O atual vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional não poderia ser uma escolha melhor para inaugurar o Festival do Rio 2021. O longa de Thomas Vinterberg, que representou a Dinamarca na premiação e ainda marcou presença na categoria de Melhor Direção, traz uma mensagem arrebatadora – e regada a muito álcool – sobre celebrar e aproveitar a vida. E faz isso se centrando em um grupo de amigos que vivem uma espécie de crise da meia-idade, desmotivados em relação ao seu trabalho e suas vidas pessoais igualmente. Assim, o quarteto formado pelos professores Martin (Mads Mikkelsen), Tommy (Thomas Bo Larsen), Nikolaj (Magnus Millang) e Peter (Lars Ranthe) encontra no álcool uma espécie de refúgio para essa monotonia, a partir da teoria do psiquiatra norueguês Finn Skårderud, de que o ser humano nasce com um déficit de 0,05% do composto no sangue.
O que poderia seguir para uma comédia escrachada à la Se Beber, Não Case sobre homens quarentões que decidem viver a vida inconsequentemente, é magistralmente conduzida para um drama bem-humorado e reflexivo. Sem se apoiar em discursos moralistas, Druk – Mais uma Rodada é capaz de mostrar as devidas consequências do excesso de álcool, mas não abandona o fato de que ele é um refúgio revitalizador para a cansativa rotina da vida adulta. O papel de Mikkelsen é o grande fio condutor da narrativa, em que apesar da vida boêmia trazer um pouco de brilho para sua personalidade até no meio profissional, ela não apaga as fragilidades de seu casamento.
A obra de Vinterberg se encerra com a mesma força de seu início, mostrando a beleza de curtir momentos cercado de boas amizades, segurando um devido drink na mão. O triunfo dessa deliciosa experiência foi tanto que já está confirmado para ganhar um remake em terras estadunidenses, que não conseguem ver um filme bem sucedido que não possam chamar de seu. Além de sua narrativa, Druk carrega uma homenagem à filha do cineasta, que iria estrelar a produção, mas faleceu em um acidente de carro em 2019. O triste estado de luto do diretor não sobrepôs o teor do filme com um pessimismo amargurado, fazendo jus à bela memória de Ida Vinterberg. – Vitória Silva
Caros Camaradas! – Trabalhadores em Luta (Dorogie Tovarishchi, Andrey Konchalovskiy)
Se o Festival do Rio escolheu a alegria bêbada e pungente de Druk para iniciar os 15 dias de exibição, Caros Camaradas! foi uma decisão e tanto para suceder o dinamarquês. O longa de Andrei Konchalovsky, antigo co-roteirista de Andrei Tarkovsky, sabe a história que quer contar e, por mais dolorosa que seja, não se desvia dela em momento algum.
Seja pela proporção 1:33 ou pela fotografia em preto-e-branco, a obra russa explora a jornada desesperada da personagem de Yuliya Vysotskaya para tentar encontrar sua filha, uma das possíveis vítimas da força policial que reprimiu violentamente os protestos dos trabalhadores de Novocherkassk, em 1962. A escolha do diretor em centralizar a devota mãe stalinista em seu processo de redescoberta dos próprios ideais dá o gás que a narrativa precisa para não se tornar vazia e, com jogos emocionais perfeitamente construídos, Konchalovsky é irrefutavelmente bem-sucedido. – Caroline Campos
Slalom – Até o Limite (Slalom, Charlène Favier)
Uma das cenas mais típicas do terror é quando o monstro se aproxima por trás, e a vítima o vê pelo reflexo do espelho a sua frente. A construção desse cenário é usada em Slalom – Até o Limite, o terceiro filme do Festival do Rio, em um momento de grande tensão. O monstro, dessa vez, não tem nada de sobrenatural. O medo da protagonista, de apenas 15 anos, vem do seu abusador e violento treinador.
É nas montanhas de Bourg Saint Maurice que se passa a história de Lyz (Noée Abita), tão gelada quanto a neve que a cerca. Pelos olhos da diretora francesa Charlène Favier, Slalom narra a sombria jornada da jovem atleta que foi abandonada pela mãe e assombrada pelos abusos psicológicos e físicos do seu técnico, Fred (Jérémie Renier).
Sem diminuir a força dos acontecimentos, o filme é verdadeiro e agressivo em todos os seus 92 minutos. Com iluminação fria e uma trilha sonora muitas vezes silenciosa, Slalom escancara a realidade de tantas meninas que convivem nos meios esportivos. O longa é um tapa na cara para acordar quem ainda não entende a gravidade do estupro e da violência contra a mulher – que, nesse caso, é apenas uma criança. – Mariana Chagas
O Mauritano (The Mauritanian, Kevin Macdonald)
A obra que marcou presença no Globo de Ouro 2021, e foi tristemente esnobada no Oscar, teve seu devido lugar ocupado no Festival do Rio 2021. O Mauritano ilustra a história real de Mohamedou Ould Slahi, interpretado por Tahar Rahim, acusado de recrutar terroristas para o atentado do 11 de setembro. Sob o contexto da chamada guerra ao terror do governo do presidente George W. Bush, o engenheiro mauritano é levado à base de Guantánamo, onde permaneceu por mais de 14 anos.
Sem nenhuma acusação formal do governo estadunidense contra ele, a advogada Nancy Hollander (Jodie Foster) e sua assistente Teri Duncan (Shailene Woodley) assumem seu caso, tendo no lado oposto o advogado militar Stuart Couch (Benedict Cumberbatch). A produção dirigida por Kevin Macdonald se baseia no livro autobiográfico do Mauritano de fora das telas, O Diário de Guantánamo, e evidencia as deficiências do sistema prisional estadunidense e de sua política anti-terrorismo, que acaba por evidenciar preconceitos e ferir a liberdade daqueles que não identificam como seus.
O Mauritano navega por flashbacks um tanto confusos da vida de Mohamedou e das agonizantes torturas que ele passou para confessar o que o governo estadunidense queria ouvir. O peso da história é brilhantemente sustentado pela atuação de Rahim, trazendo a luz da resiliência para o personagem que interpreta, que é apenas um dos diversos rostos injustamente aprisionados por um sistema que corre atrás de presas fáceis. – Vitória Silva
Edifício Gagarine (Gagarine, Fanny Liatard e Jérémy Trouilh)
A imaginação é capaz de qualquer coisa, e é nela que Youri (Alséni Bathily) se agarra. Em Edifício Gagarine, 5º filme do Festival do Rio 2021, Fanny Liatard e Jérémy Trouilh contam uma história em camadas: uma homenagem semi-documental, um longa-de-amadurecimento, um drama de denúncia social, e uma ficção científica fantasiosa situada nos subúrbios de Paris. Youri, um menino de 16 anos residente do conjunto habitacional Gagarine, decide iniciar um movimento para impedir a demolição do prédio.
No processo, ele e seu amigo Houssam (Jamil McCraven) conhecem Diana (Lyna Khoudri), e os três se unem para lutar contra o tempo para salvar o edifício de virar escombros. Liatard e Trouilh parecem contar diferentes histórias em uma mesma narrativa, quase como um sonho que conecta suas cenas, ainda que elas pareçam emanar energias completamente diferentes. Sempre que o longa parece estar indo para algum lugar, ele muda de direção com a força de um foguete, e nos sentimentos ligeiramente perdidos por alguns momentos, como se flutuássemos no espaço.
Festivais são o lugar perfeito para experimentações, e aqui, elas funcionam. Gagarine parece refletir exatamente o que se passa na mente de Youri, muitas ideias e uma grande motivação, mas propósitos tão singulares que se apresentam de forma confusa. Quanto mais adentramos na narrativa, mais a imaginação e a realidade se misturam, e a deslumbrante sequência final faz compensar os caminhos que o filme utiliza para chegar até lá. – Jho Brunhara
Quo Vadis, Aida? (Idem, Jasmila Zbanic)
Exibido no sexto dia do Festival do Rio 2021, o bósnio Quo Vadis, Aida? revisita os acontecimentos que culminaram no Massacre de Srebrenica. A cada nova omissão da Organização das Nações Unidas, que mediou conflitos durante a Guerra da Bósnia, a esperança se esvaindo é quase tangível.
É com a protagonista Aida – mãe, cidadã de Srebenica e tradutora da ONU – que acompanhamos a escalada do conflito e das negligências que levaram ao genocídio de mais de oito mil bósnio-muçulmanos. Em uma performance agonizante, que potencializa o desespero perante o desastre iminente, a veterana Jasna Duricic exala a angústia de cumprir suas funções como mediadora enquanto tenta a todo custo proteger sua família e comunidade.
A cada minuto das quase duas horas e meia de duração, que não ficam arrastadas graças à condução da diretora Jasmila Zbanic, a agonia e a impotência aumentam. Quo Vadis, Aida? é potente, forte e pesado ao reconstruir o acontecimento histórico, ainda mais quando o maior massacre na Europa desde a Segunda Guerra Mundial ainda é negado por governantes e parte da população. – Vitória Lopes Gomez
De Volta à Itália (Made in Italy, James D’Arcy)
Em De Volta à Itália, um dos filmes mais fracos exibidos no Festival do Rio 2021, temos aquele velho clichê retratado exaustivamente no Cinema. Robert (Liam Neeson) e Jack (Micheál Richardson) são pai e filho que mantêm uma relação conturbada após a morte da matriarca. Robert tornou-se ausente, e Jack nutre um desprezo pelo pai, focando em seu sucesso pessoal.
Na trama — que gira em torno de memória e reconciliação —, há uma velha casa italiana, onde uma longínqua e harmoniosa família vivia, mas que após a perda familiar foi desabitada e entregue aos insetos. Jack trabalha em uma galeria de artes em Londres, e pretende comprá-la com a venda da antiga casa na Itália. Robert é um pintor que passa por uma espécie de bloqueio criativo, e volta à Itália com o filho para fazer os devidos reparos e colocar a casa à venda. O roteiro do longa parece deixar implícito que, mesmo não se entendendo, ambos partilham gostos semelhantes. A casa abandonada é uma possível metáfora à relação dos dois, mas o filme não convence.
Mesmo ecoando em um pano de fundo verdadeiro — Liam Neeson e Micheál Richardson são pai e filho na vida real —, James D’Arcy, diretor e roteirista, não explora e nem parece se preocupar com boas atuações. O longa tem um enredo previsível, e como ponto positivo tem as belas imagens da Toscana — e é isso. – Bruno Andrade
Dias Melhores (Shaonian De Ni, Derek Tsang)
Um dos grandes destaques do Festival do Rio, Dias Melhores marcou o oitavo dia de exibição do festival, inaugurando discussões importantes sobre bullying e as consequências advindas dele. Não à toa, o longa também foi indicado à categoria de Melhor Filme Internacional no Oscar 2021, ano no qual a cerimônia foi censurada pelo governo chinês – descontente com as críticas feitas por outros indicados quanto ao clima de tensão entre China e Hong Kong.
O drama policial dirigido por Derek Tsang é uma adaptação do romance In His Youth, In Her Beauty, de Jiu Yuexi, e conta a história de Chen Nian (Dongyu Zhou), uma estudante exemplar que após o suicídio de sua melhor amiga, vítima de bullying, torna-se novo alvo dos colegas de classe. Entre uma série de abusos sofridos por Niam, a protagonista conhece por puro acaso Xiao Bei (Jackson Yee), dando início a uma relação nada provável de amor, cumplicidade e proteção em meio à hostilidade da cidade de Hong Kong. E apesar de, a princípio, o romance aparentar ser o foco narrativo, ele na realidade toma plano secundário.
O longa vai muito além da relação entre Niam e Bei, explorando as pressões do método avaliativo escolar chinês, o Gaokao, que determina a ascensão social de um grupo que vive à margem da sociedade, junto a pressões diárias como o bullying, a solidão, a desigualdade social e a violência urbana. Dias Melhores é um filme indigesto, porém real, com temas sérios que ainda devem ser discutidos. – Ayra Mori
Bela Vingança (Promising Young Woman, Emerald Fennell)
Pela primeira vez em 13 anos, o Oscar de Melhor Roteiro Original foi para uma mulher. Sendo a única da categoria, concorrendo com outros 4 homens, a atriz, diretora e roteirista Emerald Fennell fez história. Contrastando com o avanço que sua vitória representa para a comunidade feminina, seu filme conta a bruta e violenta verdade do que é ser mulher em uma sociedade que normaliza a nossa violência com tanta banalidade que assusta.
Bela Vingança é viciante do início ao fim. Com a trágica morte de sua melhor amiga, vitima de estupro na faculdade, Cassandra passa o resto de sua vida procurando por justiça. O que parece impossível, em um mundo onde um garoto pode agir como um garoto já que, claro, ela estava bêbada. A ira que consome a protagonista é o combustível que a leva a sair todas as noites, se fingir de embriagada e ser levada para casa com um “cara legal” que tenta abusar da sua falsa fragilidade.
A fotografia colorida se destoa da narrativa obscura do longa de forma quase irônica. O filme não perturba pela trilha sonora ou pelos cenários, mas pela sua forma pura de retratar a realidade. Viver na pele de uma mulher é assustador, e Bela Vingança apresenta isso com a maior autenticidade possível. – Mariana Chagas
A Boa Esposa (La Bonne Épouse, Martin Provost)
O machismo é infelizmente muito comum nos dias de hoje, mas esse cenário era ainda mais radical nos anos 1960. Nesse ambiente sexista é que se passa A Boa Esposa, de Martin Provost. O longa conta a história de Paulette Van der Beck (Juliette Binoche), que, junto com o marido (François Berléand), dirige uma escola para formar donas de casa submissas. Todos os preconceitos e estereótipos parecem corretos em sua cabeça, até o esposo falecer e Paulette se deparar com a situação econômica crítica do colégio.
Essa trama se desenvolve de modo previsível, mas com boas interpretações. As atuações de Juliette Binoche e de Yolande Moreau em suas personagens caricatas, servem o máximo de humor que o longa conseguiu oferecer. Em segundo plano, estão as alunas da escola, que foram pouco exploradas na narrativa, mas ainda assim apresentam a realidade de jovens oprimidas descobrindo sua sexualidade. Desse modo, A Boa Esposa se desenvolve entre altos e baixos como um filme pouco audacioso e original. Mas apesar disso, Provost produziu um longa que entretém se visto de forma despretensiosa. – Gabriel Gatti
DNA (ADN, Maïwenn)
Maïwenn é uma cineasta francesa que adora falar de memória e herança em sua carreira. Vencedora do Prêmio do Júri em Cannes 2011 por Polisse, a diretora estava com passagem comprada para a cidade no ano passado, mas a pandemia acabou cancelando o Festival e relegando seu belíssimo DNA apenas à Seleção Oficial do evento.
Como o próprio título entrega, DNA discute a herança e a família de Neige, interpretada pela própria diretora, que também assina o roteiro. Após a morte do avô, o clã se quebra e a jovem mulher busca nas raízes argelinas um propósito para seguir em frente. Cheio de insinuações poéticas, o longa-metragem carimba o Festival do Rio com poesia, dor, e muita cautela. – Vitor Evangelista
Ainda Há Tempo (Falling, Viggo Mortensen)
Chegando ao Brasil no Festival do Rio 2021, Ainda Há Tempo é a estreia de Viggo Mortensen na cadeira de diretor, em uma história inspirada na vida real do cineasta. Produzido, roteirizado, estrelado e dirigido pelo Aragorn de Senhor dos Anéis, o longa coloca John (Mortensen), um homem gay, aos cuidados de seu pai Willis (Lance Henriksen), conservador, machista e homofóbico, que passa a apresentar sinais de demência e precisa de assistência.
Diferente de outros longas que trabalham a sensibilidade da condição, como Meu Pai e Para Sempre Alice, o tratamento da doença e de suas implicações no cotidiano, como a falta de filtro do pai, é ofuscado pelas arrogâncias e preconceitos de Willis, que tenta a todo custo ofender o filho, prestativo e paciente. Seja pela falta da vivência e das dores da comunidade LGBTQIA+, seja pelo complexo de salvador do filho, a narrativa é sufocante e dolorida ao colocar o peso da bondade ilimitada em John e no espectador, que o acompanha tentar manter a calma e engolir as ofensas inaceitáveis do pai, odioso e desagradável antes mesmo de qualquer diagnóstico.
Ainda assim, o drama e as relações no presente e no passado, com flashbacks da infância do protagonista, são bem trabalhados e densos. Com participação da tocante Laura Linney como irmã de John, as reuniões familiares são difíceis de digerir pela carga emocional. Ao final, apesar de mirar no complexo e esperançoso (como o título indica), Ainda Há Tempo é mais dolorido e desconfortável do que reflexivo, ainda mais para quem entende na vida real o peso de ofensas como a de Willis. – Vitória Lopes Gomez
A Candidata Perfeita (The Perfect Candidate, Haifaa Al-Mansour)
A Arábia Saudita é um dos países com a maior desigualdade entre gêneros do mundo. Lá, as mulheres são proibidas de sair do território nacional sem a permissão de seu guardião masculino, e até 2018 eram proibidas até mesmo de dirigir. As práticas culturais são representadas em A Candidata Perfeita, filme que consegue equilibrar as questões do país na figura de sua protagonista.
Todo o sexismo é refletido no longa que foi exibido no décimo terceiro dia do Festival do Rio. Maryam é uma médica que se candidata à eleição na Secretaria Municipal e tem suas ambições voltadas para melhorias do hospital em que trabalha. É reflexivo assistir a construção de sua luta por um bem-estar coletivo sendo desgastada por seu gênero. Mesmo sem lutas feministas, vemos a importância da pauta que deixa marcas indiretas durante todo o roteiro.
A diretora Haifaa Al-Mansour consegue delimitar sua narrativa, deixando aberto a seu espectador os questionamentos sobre o funcionamento de todo um país. É na sutileza específica de um acontecimento que brota as percepções sobre um sistema maior. A Candidata Perfeita trabalha com expectativas que caso fossem concretizadas seriam irreais, sendo assim, seu maior acerto está na simplicidade por trás das personagens. – Ana Júlia Trevisan
Verão de 85 (Été 85, François Ozon)
Quem estava esperando um romance ensolarado foi surpreendido com um crime sendo confessado no início. Verão de 85 é um longa sobre Alexis, um adolescente de 16 anos que vive em Normandia e é aficionado em literatura com temas mórbidos. É após seu barco virar no mar que o garoto conhece David, um charmoso rapaz de 18 anos, que o resgata. Os flertes rapidamente se transformam numa paixão, mas já sabemos que o final não é feliz.
O calor da primeira paixão adolescente aquece até evaporar. Dá sensação de liberdade, passando pelas descobertas da juventude e chegando nas desilusões que explodem em confusão e revolta. Verão de 85 oferece um romance completo, com a jornada tendo seu começo, meio e trágico fim. David morre num acidente de moto sob o qual terceiros derramam uma parcela de culpa em Alexis.
Após seu clímax, um clima bucólico se instala no filme. O verão é substituído por um tempo frio que paira à sombra do luto. A dor e angústia consome cada veia de Alexis que protagoniza cenas fortes e intensas. O suspense do longa se sustenta pela escrita do garoto que é incentivado a transformar seus sentimentos em história. Verão de 85 caminha por sentimentos extremos, ficando em sua mente durante as quatro estações. – Ana Júlia Trevisan
Noite de Reis (La Nuit Des Rois, Philippe Lacôte)
Não existiria maneira melhor de encerrar o Festival do Rio 2021 do que através da majestosidade de Noite de Reis. A obra-prima de Philippe Lacôte se esbalda no realismo fantástico para ornamentar seu filme, que se solta das progressões narrativas tradicionais para emergir uma outra dimensão da habilidade de se contar histórias — dentro de si mesma e também fora, reais e imaginadas, belas e violentas, numa capacidade metalinguística e paradoxal raríssima de se ver.
O epicentro de todas as esferas de Noite de Reis é Roman (Bakary Koné, numa estreia fascinante), um jovem recém-chegado a uma prisão totalmente regida pelos próprios prisioneiros, liderados pela figura do dangôro representada por Barba Negra (Steve Tientcheu). O líder vê no novato a chance de retomar uma tradição do lugar como seu último feito em vida, que deve se findar em breve por determinação de outra regra local que diz que o dangôro deve cumprir um rito de suicídio quando doente. Sob o fenômeno da Lua de Sangue, então, Roman deve entreter os detentos durante toda a noite contando histórias e também se preocupar com as decorrências da sua participação no ritual. Ao mesmo tempo, o mandato de Barba Negra é encerrado e o conflito para decidir o próximo dangôro é intensificado.
O nó narrativo de Noite de Reis é tudo, menos um problema nas mãos do diretor e roteirista que mergulha profundamente na(s) história(s) que quer contar. Valendo-se de uma fundação mítica para construir uma mensagem política, o filme é como um balé bruto que dança com precisão pela beleza e poder da tradição oral e pela dureza da história recente da Costa do Marfim. Assim, o transe da Noite de Reis ultrapassa a tela e atinge o que está além de si mesmo, nos lembrando o porquê nos reunimos para celebrar o Cinema. – Raquel Dutra