O espetáculo narrativo de Noite de Reis

A imagem retangular é uma cena do filme. Ao centro vemos um homem negro jovem de cabelos pretos raspado. Ele olha para frente e usa uma camisa aberta roxa e maior que seu corpo e uma calça jeans preta. Ao seu lado há outro homem negro jovem mais baixo e de cabelo preto raspado. Ele usa uma camiseta branca e shorts branco e segura um lampeão. Ao redor há uma multidão de homens negros ajoelhados, no formato de um círculo ao redor dos dois de pé.
Noite de Reis teve sua estreia no Festival de Veneza e fechou o Festival do Rio 2021 (Foto: Neon Films)

Caroline Campos

Há algo de especial na forma com que tradições orais são transmitidas. Através da força de contadores de histórias, impérios foram criados, sociedades foram destruídas e lendas foram moldadas. Na África Ocidental, esse papel fica a cargo dos griots, guardiões milenares do passado, sagrados para a preservação da tradição. Em Noite de Reis, o mensageiro é personificado na figura do Roman, escolhido durante a Lua de Sangue para cumprir o ritual em La Maca. E assim, chega ao fim o Festival do Rio 2021.

Escrito e dirigido por Philippe Lacôte, o último dos 15 filmes do Festival utiliza as experimentações do realismo fantástico para desconstruir as narrativas tradicionais e mesclar presente, passado e futuro no ambiente caótico da Maison d’Arrêt et de Correction d’Abidjan La Maca, para os íntimos. O presídio superlotado fica na maior cidade da Costa do Marfim, Abidjan, e é controlado pelo Dangôro, um líder de guerra entre os presos que, quando doente, precisa abdicar do cargo e cometer suícidio.

A imagem retangular é uma cena de backstage do filme. Centralizado à esquerda há um homem negro e mais baixo. Ele usa uma touca preta e não possui pêlos faciais. Há um fone de ouvido preto cobrindo seu pescoço, uma camiseta branca e um equipamento de som pendurado em seu ombro. Ele está dando instruções e apontando o braço para a direita. À direita há outro homem negro um pouco maior. Ele possui um cabelo curto e um bigode fino. Ele olha para baixo como se estivesse ouvindo o outro homem enquanto usa um colar preto e camiseta preta. Os dois são vistos da cintura para cima e ao fundo há paredes com tinta gasta e outras pessoas circulando.
Philippe Lacôte cresceu no bairro de Youpougon, nos arredores de La Maca; 25% dos figurantes do filme são ex-presidiários (Foto: Neon Films)

O comandante da vez é Barba Negra, interpretado com solidez por Steve Tientcheu. Sabendo que seu reinado se aproxima do fim, é ele quem decide por restaurar o ritual do Roman, entregando o papel ao pobre do recém-chegado vivido por Bakary Koné. Como se colocasse toda a prisão em um transe letárgico, o narrador é incumbido de entreter e mobilizar por uma noite aquele mecanismo complexo de desordem e brutalidade, mas assim que finalizar sua história, o destino que o aguarda é manchado de sangue.

Quando o Roman fala, não há apenas silêncio obediente e concentrado – os habitantes de La Maca reagem ativamente, transmitindo passagens através de seus corpos e suas vozes, dialogando com aquele conto fragmentado em uma beleza poética e artística. Assim que todos esses ouvidos se voltam para a ascensão do jovem criminoso Zama King e sua infame queda pelas mãos cheias de vingança da população, o garoto precisa contar com a sagacidade de Sherazade para garantir que a noite seja sua aliada.

Bebendo das fontes marginais do Cinema Brasileiro, Noite de Reis corre atrás das galinhas de Cidade de Deus e elabora King com a mesma destreza com que Fernando Meirelles e Kátia Lund entalharam seu Zé Pequeno 20 anos atrás. Tão convincente quanto Buscapé, o narrador da obra de Philippe Lacôte se encontra no centro de uma arena instável e desconfiada, em um constante estado de agressividade ansiosa que caminha junto a ele rumo ao ponto final.

A imagem retangular é uma cena do filme. Ao centro há um homem negro de cabelo preto e raspado, com um bigode e barbicha. Ele olha para cima e só pode ser visto da cintura para cima porque está sendo carregado por uma multidão. Ele usa uma camisa regata com detalhes pretos e brancos e também usa um relógio prateado. Ao redor há uma multidão de homens negros eletrizada com os braços para cima com os punhos fechados.
Noite de Reis foi o terceiro filme que a Costa do Marfim submeteu ao Oscar em toda sua história; o primeiro foi em 1976 e o segundo foi em 2015, também do diretor Philippe Lacôte (Foto: Neon Films)

Lacôte, no entanto, não se contenta com um simples ‘contar’; toda a capacidade criativa do diretor marfinense também mira alto no ‘mostrar’. A narrativa metalinguística do passado de Zama King constrói uma aura épica fora das grades prisionais, como uma controversa jornada do herói que conversa com cada preso que a escuta. Visualmente, somos arrebatados. A rainha de Laetitia Ky é um fenômeno da natureza, firme e potente, serena e severa. Com ela em cena, não há espaço para outros protagonistas. E, mesmo que seja apenas um recurso das palavras do desesperado narrador, sua trajetória é reverenciada pela ancestralidade da Costa do Marfim, jovem em sua independência.

O misticismo de La Nuit Des Rois é difícil de ser esquecido. Brincando com a realidade, o longa de Philippe Lacôte, escolhido para representar seu país na corrida do Oscar 2021, é um apelo pela sobrevivência e uma ode aos antepassados, tão belo em sua execução alegórica que nos perdemos na dança de seus elementos. Um povo sem memória é um povo sem passado e, em La Maca, é a história que decide se você vive ou morre. 

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