Lady Gaga exorciza Casa Gucci

Em nome do Pai, do Filho e da Casa Gucci (Foto: Metro-Goldwyn-Mayer Pictures)

Ana Júlia Trevisan

Uma história de glamour, cobiça, loucura e morte. Esse foi o subtítulo dado ao livro que inspirou Ridley Scott a dirigir uma das adaptações mais aguardadas do ano: Casa Gucci. A grife italiana, fundada em 1921, é um majestoso império da Moda e uma das marcas mais valiosas do mundo, cujo nome carrega um grande escândalo. Em 27 de março de 1995, Maurizio Gucci, herdeiro da empresa, foi assassinado a mando de sua ex-esposa Patrizia Reggiani. 

Legado e família são os fragmentos mais necessários para entender a estrutura maquiavélica do império Gucci, mas o que chegou aos cinemas em 25 de novembro não se ajusta aos dois poderes. Os direitos para a produção do filme foram comprados em 2006, e de lá pra cá, nomes como Angelina Jolie e Leo DiCaprio foram cotados para os papéis principais. O ano de 2021 finalmente trouxe o filme para as telonas, protagonizado por Lady Gaga e Adam Driver. Mas, para lidar com o longa, é necessário fazer o mesmo processo de periciamento de um delito.

No Oscar, espere nomeações para o figurino e os penteados de Casa Gucci (Foto: Metro-Goldwyn-Mayer Pictures)

No início da perícia, uma equipe de profissionais entra em cena para desvendar o crime enquanto a polícia assiste do lado de fora. Falar de House of Gucci exige o desmembramento cômodo por cômodo da planta prestes a ser periciada. Para iniciar o trabalho neste ambiente interno, o bom senso é que primeiro seja examinado o local que outros integrantes da equipe precisam usar para atividades pessoais, ou seja, o banheiro.

Banheiro, local em que jogamos o que não presta ralo a baixo. Aqui, infelizmente, se encontra a direção e montagem de Casa Gucci, apenas esperando a descarga ser puxada. O filme apresenta um apelo cômico que não se encaixa com a premissa de glamour, cobiça, loucura e morte. O humor impresso na adaptação do roteiro, escrito por Becky Johnston e Roberto Bentivegna, tira toda carga dramática que Casa Gucci demandava por se tratar de um crime real envolvendo um império multimilionário e que até hoje gera controvérsias. Essa atitude da direção prejudica pelo inesperado e quase desrespeitoso com a temática. As cenas em família italiana são como dar play em Succession e assistir a um stand up dos Roy.

Lady Gaga conta que escreveu oitenta páginas biográficas sobre Patrizia Reggiani, a fim de se preparar para a imersão no papel (Foto: Metro-Goldwyn-Mayer Pictures)

A montagem, responsabilidade de Claire Simpson, é declarada culpada pela perda de ritmo da produção. Desde os primeiros minutos de Casa Gucci é notável a falta de um continuísta que auxilie nos processos de filmagem e edição. Por se tratar de um escândalo não ficcional, os espectadores que fizeram uma pesquisa prévia do caso estão cientes que o longa cobre duas décadas de história. Aos que foram ao cinema às cegas, o filme não deixa pistas da passagem temporal dos anos 70 aos anos 90, muito menos pela armação de óculos de Adam Driver, que se mantém intacta durante toda ascensão e queda da marca.

O texto base para Casa Gucci, que parte do livro de Sara Gay Forden publicado em 2001, é um trabalho jornalístico bem elaborado que introduz todos os pontos da marca. Isso corrobora para o entendimento de ascensão do império Gucci e sua queda ou a tentativa de transformação no Vaticano da Moda. O longa não dispensa essa contextualização, e nem poderia, mas seu desassossego em roteirizar o crime faz com que o legado e família que são essenciais à história não tenham equilíbrio.

No evento de lançamento de Casa Gucci, Lady Gaga declarou não acreditar na glorificação de um assassinato, mas sim no empoderamento feminino (Foto: Metro-Goldwyn-Mayer Pictures)

Indo para a cozinha da casa, ambiente convidativo e familiar, é possível encontrar duas figuras chaves para o filme: Paolo Gucci e seu pai, Aldo. O primeiro, interpretado por Jared Leto, é o cúmulo do absurdo, e o personagem está em uma órbita que não pertence a House of Gucci. Sua atuação é uma tentativa caricata de extravasar uma energia que não existe no filme. O ator se mostra preso a seu papel de Coringa, ao mesmo tempo que, se Leto tivesse interpretado o excêntrico italiano antes de Esquadrão Suicida, talvez o desastre não tivesse sido tão tenebroso.

Já Al Pacino na pele de Aldo Gucci consegue ser uma das poucas coisas que fazem o ingresso valer a pena. Apesar de suas roupas serem totalmente fora do alto padrão italiano, o personagem cumpre sua sina gananciosa. É em sua figura que o legado e a família, questões primordiais ao roteiro do filme, tomam forma. Do mercenarismo de Patrizia Reggiani à sonegação de impostos da Casa Gucci, tudo que vai além do romântico reflete na atuação natural do eterno Michael Corleone.

O próximo membro da família e chave mestra para o roteiro está em outro cômodo da casa. Ao abrirmos a porta do quarto, encontramos o pacato Maurizio Gucci, filho único de Rodolfo Gucci (esse muito bem dominado por Jeremy Irons) e herdeiro direto do império. Para encontrar Adam Driver nessa narrativa é necessário fazer o uso de luminol no ambiente. Um dos maiores atores de sua geração, Driver parece não caber dentro de Casa Gucci. Seu personagem simpático e bonzinho não tem uma trajetória evolutiva convincente para seus atos dramáticos mais ao fim da produção. A narrativa da vítima tem espaço, pois Driver tem uma atenção magnética oriunda, do contrário, o protagonista se transformaria em coadjuvante.

Apesar de vitais para a consolidação da Gucci, figuras como Tom Ford e Anna Wintour aparecem apenas como easter eggs (Foto: Metro-Goldwyn-Mayer Pictures)

No segundo quarto é o momento de fazer uma vistoria no assassinato de Maurizio Gucci. Segunda-feira, 27 de março de 1995. É com duas horas e meia de filme que o espaço temporal é delimitado. A partir daqui tudo é tosco, principalmente a câmera lenta de Dariusz Wolski usada no ápice da cena, tirando qualquer adrenalina que o momento poderia causar. A análise nesse cômodo nos leva a fazer mais alguns reparos no laudo de outro crime: de produção. O horário desse delito acontece na passagem do segundo para o terceiro ato, que ao entrar em sua progressão final, decai sem sua peça principal e mais chamativa. O filme não tem a menor salvação depois de uma hora e meia, tendo direito até a sequência de fuga com trilha sonora imitando os Trapalhões.

E, finalmente, chegamos no momento de periciar a sala da casa, lugar social de recepção. É aqui que se encontra a figura central do filme e que dá a ele todos os holofotes. A Patrizia Reggiani de Lady Gaga começa como uma jovem encantada e vai se revelando uma verdadeira manipuladora explosiva. Em 2019, quando Gaga foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz por Nasce Uma Estrela, ela estava interpretando um arquétipo conveniente perante sua carreira consolidada como um dos maiores ícones pop. Agora, ela enfrenta um papel fora de sua zona de conforto e faz isso com muita propriedade. Mesmo gastando todo o fôlego para tentar fingir o choro, Patrizia é o pilar que sustenta as quase três horas de Casa Gucci.

A duração do filme não o torna cansativo, entretanto também não faz de House of Gucci uma produção memorável por sua qualidade. A pressa da direção de Ridley Scott em aproveitar o máximo de elementos da obra-mãe deixou pontas soltas por todos os atos e o apego criado na figura de Lady Gaga prejudica o momento em que a escolha é focar em Adam Driver. O ritmo cai sem Patrizia e seu autocentrismo. Sua participação ativa em todos os negócios da Gucci, e seu pensamento à frente para dominar a marca, tiram o forçado protagonismo nos outros membros da família. A partir disso, cada atitude tomada por eles se torna incompleta sem sua figura.

A cena de sexo entre Gaga e Driver foi improvisada (Foto: Metro-Goldwyn-Mayer Pictures)

O laudo da perícia aponta os seguintes resultados. Primeiro: a Casa Gucci é mal-assombrada. Segundo: o filme sofreu uma overdose de elementos. O diretor tinha em suas mãos uma história gigante e um elenco maior ainda. Na ânsia de conciliar as duas grandezas, Ridley Scott tira mal proveito de ambos. Os fantasmas da Casa Gucci que vão desde a primeira geração do império, sejam eles pelo sobrenome amaldiçoado que a família carrega ou os mortos que o nome deixou, assombram a produção que soa como uma grande história inacabada.

O plano malévolo de Patrizia, que foi premeditado por anos ao lado de Pina (Salma Hayek), se faz do dia pra noite, e o círculo de legado e família mais uma vez não se fecha. Pouco, ou praticamente nada, é explorado da protagonista depois do crime, mesmo ela sendo conhecida pela alcunha de viúva negra por conta do episódio. Antes mesmo disso, o filme não mostra a ruptura do casal, e segue por difíceis minutos apenas com indícios do divórcio.

A entrega à personagem de Patrizia foi tamanha que ao passar pelo local do assassinato, Lady Gaga chegou a pensar: “O que foi que eu fiz?” (Foto: Metro-Goldwyn-Mayer Pictures)

Por fim, o maior inimigo de Casa Gucci é seu próprio ego. O filme sofre de uma produção que tem muito a oferecer e acaba se perdendo. Potencial, elenco e direção não são problemas à primeira vista. Mas todos saem culpados desse crime. Não é à toa que até o encosto de Patrizia Reggiani – que está viva, por sinal – decidiu aparecer no set para assombrar Lady Gaga.

Ridley Scott, que também lançou O Último Duelo este ano, faz de Casa Gucci seu cavalo branco para a temporada de premiações. Se o legado de Gucci chegará ao tapete vermelho, apenas os indicados aos prêmios que antecedem o Oscar poderão trazer uma noção. Por livre especulação, acredita-se que Lady Gaga e suas oitenta páginas biográficas levam ao menos a nomeação. A extrapolação do queridinho Jared Leto também deve encontrar espaço nas listas. O maior mérito fica nas categorias técnicas. Já Adam Driver tem sérios riscos de morrer na escadaria tal qual Maurizio Gucci. Será que é isso que a artista chama de empoderamento feminino? Penso que seja apenas a reação ao criminoso Casa Gucci.

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