A valorização da cultura de origem na construção da própria identidade em A Felicidade das Pequenas Coisas

Cena do filme A Felicidade das Pequenas Coisas. Na imagem, vemos uma garotinha de aproximadamente doze anos. Ela tem cabelos castanhos, lisos e curtos, e usa uma franja, e veste uma blusa azul, de mangas longas, com detalhes em cor de rosa nos punhos e na gola. Ela está sorrindo, e está sentada, com as mãos em cima de uma mesa de madeira, segurando nelas um papel. À direita dela, também sentada de frente para a mesa, há outra garotinha de aproximadamente doze anos. Ela está olhando para frente, e tem cabelos castanhos, lisos, com franja, e está com os cabelos amarrados. No lado esquerdo da imagem, há outra pessoa sentada, no entanto, só é possível ver as suas mãos. Ao fundo há uma parede clara, com uma janela pequena no lado direito, e bem atrás das garotas, há uma espécie de boi deitado no chão. Elas estão em ambiente interno e está de dia.
Indicado ao Oscar de Filme Internacional, A Felicidade das Pequenas Coisas evidencia a simplicidade em uma aldeia do Himalaia e o processo de transformação desse meio no protagonista Ugyen (Foto: Films Boutique)

Sabrina G. Ferreira

No mundo globalizado em que vivemos, cercados por diversas possibilidades de comunicação com os demais, fica difícil entender que existem outras realidades bem diversas às nossas. Essa disparidade é mostrada brilhantemente em A Felicidade das Pequenas Coisas (no inglês, Lunana: A Yak in the Classroom). Com direção e roteiro de Pawo Choyning Dorji (Hema Hema: Sing Me a Song While I Wait), o filme conta a história de Ugyen (Sherab Dorji), um jovem professor que sonha em se tornar cantor na Austrália. Todavia, Ugyen trabalha para o governo, que lhe atribui a missão de lecionar por alguns meses em Lunana, uma aldeia no Butão, país da Ásia Meridional, conhecido como um dos locais mais remotos do mundo. 

Após uma longa caminhada de oito dias para chegar ao destino, ele se surpreende ao finalmente se deparar com uma escola sem os mínimos recursos necessários para conseguir ensinar: não existe quadro negro, o material didático é escasso e a estrutura do local é precária. Neste momento Ugyen pensa em desistir. A única coisa capaz de promover uma mudança de rumo no desmotivado protagonista é a comovente motivação das crianças, especialmente da líder da turma, Pem Zam, que com seu olhar vivaz, consegue transmitir o desejo sincero em aprender. Aliás, é visível a evolução de valores do personagem quando ele doa o papel que reveste suas janelas para protegê-lo do frio, para que seus alunos tenham onde estudar.

“A subida vai ser difícil?” – Ugyen

“Vai ser fácil. É um passeio ao lado do rio por seis dias. Depois tem uma subidinha. Quando chegarmos lá em cima, a caminhada é ótima. Você vai querer que nunca acabe.” – Aldeão

Cena do filme A Felicidade das Pequenas Coisas. Na imagem, vemos um jovem de cabelos castanhos, pele morena, vestindo uma roupa marrom, de mangas longas, parado em frente a oito crianças. Ele está tocando violão. Ao lado dele, à esquerda, há uma espécie de boi (iaque) preto. As crianças estão paradas na frente dele em forma de círculo. Elas têm aproximadamente dez anos de idade, e estão vestindo blusas de mangas compridas. As meninas vestem saias compridas, e os meninos estão de calças. Atrás deles há uma pequena escola feita de paredes de pedra, com portas e janelas de madeira. Há uma cerca pequena de madeira em volta deles, separando-os do campo aberto. Ao fundo, há algumas colinas. Eles estão no campo e é de dia.
Em Lunana, assim como Ugyen, o espectador se depara com um local isolado e muito carente (Foto: Films Boutique)

A Felicidade das Pequenas Coisas estreou em outubro de 2019 no BFI Festival de Cinema de Londres, e até o momento, ganhou 18 prêmios, incluindo o de Melhor Filme pela audiência do Festival de Cinema CinemAsia, e de Melhor Ator para Sherab Dorji no Festival Internacional de Cinema Saint-Jean-de-Luz. Neste ano, é indicado ao Oscar 2022 na categoria Melhor Filme Internacional, junto com outros longas asiáticos, como o japonês Drive My Car, que também concorre em Melhor Filme, Direção e Roteiro Adaptado. Além disso, o indiano Writing With Fire está indicado ao prêmio de Documentário. A Felicidade das Pequenas Coisas é o segundo filme que o Butão submeteu ao Oscar, mais de 20 depois de The Cup (Phörpa), que acabou não nomeado.

É importante destacar que, apesar da temática frequentemente utilizada no Cinema – ao retratar a história de algum professor ou educador especialA Felicidade das Pequenas Coisas é cativante, e construído com tamanha sensibilidade que realmente proporciona momentos de inspiração, para o deleite dos amantes da Sétima Arte, ao evitar cair no melodrama barato e é extremamente bem trabalhado no quesito construção sentimental, respeitando o contexto cultural em que a história se insere.

Cena do filme A Felicidade das Pequenas Coisas. Na imagem, vemos um jovem de cabelos castanhos, pele morena, vestindo uma roupa azul marinho, de mangas longas, parado de frente para uma moça. Ele tem pendurado um cesto de vime em um dos ombros. Na frente dele, à direita, há uma moça. Ela tem cabelos castanhos, lisos e longos, e estão amarrados em um rabo de cavalo. Ela veste um xale comprido listrado sobre o corpo. Ao fundo, há algumas montanhas com nuvens de fumaça e vegetação natural. Eles estão no campo e é de dia.
O protagonista Ugyen aprende sobre a diferença que ele pode fazer para o mundo se assim ele desejar (Foto: Films Boutique)

Outro quesito importante é o desinteresse de Ugyen nos valores da sua cultura de origem, se alinhando ao ponto de vista do espectador estrangeiro: tanto aqueles  que possuem opiniões ignorantes acerca de culturas similares a apresentada na obra, quanto aqueles vindos de locais pouco desenvolvidos (como Ugyen) e se sentem presos ali. Esse sentimento de aprisionamento do protagonista é evidenciado na cena em que ele é questionado por um aldeão sobre o motivo de querer buscar a felicidade longe do Butão, conhecido como o país mais feliz do mundo; esse debate serve como um contribuinte para refletirmos sobre os motivos do personagem querer fugir do país com urgência e viver a globalização desejada.

A figura do professor é extremamente valorizada em A Felicidade das Pequenas Coisas. Ugyen é alvo de reverência pelos moradores da aldeia, pois como um aluno repete as palavras dos camponeses, o professor é capaz de tocar o nosso futuro. Há o reconhecimento de que o conhecimento vem de fora, ligando esse conceito à imagem dos professores. E eis uma das profissões mais importantes e honradas que existem, afinal o professor pode ser decisivo na evolução de pessoas que já nascem destinadas a serem pastores de iaques ou coletores de fungos, alcancem o sonho de serem educadas para que construam um futuro melhor naquela realidade. E isso fica ainda mais evidente em um lugar como Lunana. 

Cena do filme A Felicidade das Pequenas Coisas. Na imagem, vemos um jovem de cabelos castanhos, pele morena, vestindo uma roupa laranja, de mangas longas, sentado em um banco de madeira, enquanto toca um violão. Atrás dele, ao fundo, há uma espécie de boi, que está amarrado no chão com algumas corrente, enquanto pasta. Eles estão em um cômodo, com paredes brancas, algumas janelas entrando luz solar, e um piso de madeira. É de dia.
A Felicidade das Pequenas Coisas foi inspirado em histórias que o diretor Pawo Choyning Dorji coletou enquanto era fotógrafo no Butão (Foto: Films Boutique)

Nesse contexto, a música cantada por Saldon, personagem de Kelden Lhamo Gurungm, também se encaixa perfeitamente, já que cria uma dualidade conflituosa nas decisões que serão tomadas por Ugyen, reforçando a necessidade de fuga do protagonista como certa, e ao mesmo tempo, serve como reconexão a espiritual da qual ele tanto necessita. Para nós, fica a dúvida deixada pelo filme, se é mais gratificante ir em busca de um sonho vago e incerto, ou talvez, vivenciar algo concreto, arquitetado com pequenas ambições, mas que resultam em grandes ganhos culturais para a própria identidade.

O filme A Felicidade das Pequenas Coisas é sobre a necessidade de encontrar um momento de paz na vida para reavaliar as prioridades e refletir sobre o real significado da consciência plena de satisfação e sua importância para nós. Trata-se de uma mensagem sobre felicidade, vinda de um lugar remoto, onde esse sentimento é aclamado e intenta divulgar sua cultura e modo de vida para o homem moderno dos quatro cantos do mundo.

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