Falem bem ou falem mal, mas falem de Escândalo Íntimo

Capa do álbum Escândalo Íntimo. Na imagem a cantora Luisa Souza está com aparência robótica vestindo um macacão que imita a sua pele. Sonza é uma mulher branca, loira, com lábios grandes e vermelhos. A imagem possui um fundo de tinta borrada e blusa, a imagem dos olhos da cantora estão borrados, bem como suas mãos. Ao fundo vislumbra-se parte de um pôr do sol, mas a maior parte do fundo da imagem é escura.
O Escândalo Íntimo de Luísa Sonza é obra intimista e reveladora sobre o que se é, e o que não é (Foto: Olga Fedorova)

Costanza Guerriero

No dia 15 de Agosto, o Twitter ficou polvoroso com o lançamento de Campo de Morango, o lead single do terceiro álbum de Luísa Souza, Escândalo Íntimo. Tanto o videoclipe quanto a música em si pareciam ser uma confirmação de que a cantora só sabe compor letras vulgares e superficiais. Contudo, aqueles que estavam bem atentos sabiam que essa pequena prévia serviria para provar um ponto, que é uma das premissas do novo projeto: Luísa Sonza, como antes se conhecia, é uma fraude. Nesse lançamento, a artista potencializa sua voz e traz sua trajetória de amadurecimento como o centro da narrativa. Ela elabora conceitos visuais e sonoros acurados, apresentando referências explícitas e cristalinas, para que até mesmo aqueles que não querem possam enxergar. 

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RR é uma celebração do amor?

A capa do álbum une as iniciais dos cantores Rosalia e Rauw Alejandro (Foto: Sony Music)

Isabela Domingos 

Juras de um amor eterno e um pedido de casamento marcaram o lançamento de um dos casais mais queridos do mundo pop. Enquanto os fãs se decidiam entre Versace e Louis Vuitton para o matrimônio do ano, a notícia que ninguém esperava veio à tona: Rosalia e Rauw Alejandro se separaram. Para os filhos do divórcio, felizmente, restou um álbum impecável marcado pela mistura de estilos e vocais que definem o fim da era RR

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Sobre a Terra Somos Belos por Um Instante: Ocean Vuong e a escrita como coragem de quem não tem escolha

A estreia de Ocean Vuong na prosa, após a aclamada reunião de poemas Céu noturno crivado de balas, é um complexo testemunho autobiográfico escolhido pelo Clube do Livro do Persona (Foto: Rocco/Arte: Francisco Tigre)

Mariana Freire de Moraes

Estou escrevendo para você de dentro de um corpo que era teu. O que é o mesmo que dizer: estou escrevendo como um filho.

Nas primeiras páginas de Sobre a terra somos belos por um instante, o autor Ocean Vuong constrói sua posição durante toda a narrativa na tentativa de se refazer, se ver e perdoar por meio da alteridade de uma comunicação ao mesmo tempo concreta e hipotética. Através do resgate analítico da memória e da apresentação do ambiente, Vuong, chamado de Cachorrinho pela avó, escreve cartas para sua mãe, analfabeta funcional, revisitando episódios da infância no Vietnã e de sua adolescência nos Estados Unidos.

Colonialismo, maternidade, identidade, sexualidade, violência e luto são os pilares do livro, cujos episódios de trauma rememorados traçam um caminho linear para o entendimento da história de três gerações da família do escritor, e as complexidades recalcadas de pessoas estruturadas em meio à guerra, ao preconceito, ao refúgio e à vulnerabilidade. 

Começando pelas memórias quando criança em um Vietnã desestabilizado pela guerra, Cachorrinho – a maneira que Vuong também se retrata em sua escrita – inicia o romance relembrando das primeiras vezes em que sua mãe foi violenta com ele. No acesso à infância, o escritor lembra alguns momentos em que ensina a matriarca a escrever, reproduzindo o que aprendeu naquele dia no jardim de infância. Esse é o momento em que a vulnerabilidade de quem o cria é escancarada para ele e que percebe que possui o que ela precisa para resolver esse problema. De uma forma sutil e perturbadora, esse episódio demonstra a maneira que o autor consegue colocar os dois se olhando do mesmo lugar. 

Você é uma mãe, Mãe. Você também é um monstro. Mas eu também sou – e é por isso que eu não posso me afastar de você. E é por isso que eu peguei a mais solitária criação de deus e te coloquei dentro dela.

Na foto, duas mulheres e uma criança estão sentadas em um banco de madeira. As mulheres ficam nos cantos, enquanto o bebê no meio. Estão dentro de uma casa, ao fundo, aparece o vulto de outra mulher, do lado de fora do cômodo. Atrás, percebe-se uma janela, uma porta e roupas penduradas. No primeiro plano, uma mulher, ao canto esquerdo, está sentada ao lado de uma criança pequena. Sua pele é amarela, seus cabelos pretos estão presos. Ela veste um macacão branco, com estampa de flores azuis. Está descalça e sorri fixadamente à câmera. Assim como a criança ao seu lado, que também tem cabelos e olhos pretos. Veste uma camiseta branca com uma gola laranja e estampada com desenhos, que está enfiada dentro de um shorts roxo claro. Ao lado da criança, à direita, uma outra mulher, de cabelo curto e preto, na altura do pescoço e com uma franja cortada, também sorri à foto. Ela usa uma blusa rosa clara e uma calça branca. Está de pernas cruzadas.
A foto que ilustra a edição estadunidense de Céu noturno crivado de balas retrata o autor com dois anos, ao lado de sua mãe e sua tia no campo de refugiados nas Filipinas (Foto: Ocean Vuong)

Passando pela situação de refugiado quando criança, em um paralelo sensível com o nascimento e morte de sua avó – entre o Vietnã e Estado Unidos –, a narrativa se torna mais política e identitária. A partir do momento que Cachorrinho conta a história das mulheres que o criaram, frutos de um estupro de guerra, nada segue sem que pautas sociais sejam colocadas de forma explícita, no entanto, nunca deixando com que a poética fique em segundo plano. Assim, Vuong cria uma atmosfera sólida de questionamento, ao mesmo tempo que deixa claro as complexidades subjetivas geradas a partir desses contextos, e quão decisivas são essas condições para que ele seja ele mesmo, a mãe seja a mãe e o país seja o país. 

Chegando aos Estados Unidos, na casa de seu pai com quem nunca conviveu, o escritor tem um espaço para descobrir e explorar sua sexualidade (atualmente se identifica como uma pessoa queer). No livro, Vuong relata suas primeiras experiências com um homem pobre como ele, porém branco: Trevor, a única pessoa com quem ele realmente desenvolve uma relação além de sua mãe e avó. De uma forma totalmente analítica, o escritor apresenta todas as fases dessa relação, passando pelo estranhamento, o escatológico, as drogas, o entendimento, a identidade, o amor e a morte. Cachorrinho pôde conhecer a vulnerabilidade e a violência do amor e de uma relação que requer um entendimento político, social, subjetivo e identitário que não foi apresentado a nenhum dos dois, tornando tudo mais difícil e mais intenso na mesma medida.

 Sob o fundo de um arbusto flores vermelhas, o autor, criança, é segurado no colo por sua mãe, que tem seu cabelo cacheado cortado curto e usa uma camisa manga longa vermelha, com uma estampa preta na frente. A criança usa uma camiseta polo branca com listras azuis claras e escuras, e uma parte de baixo azulada. Segura um coelho de pelúcia branco, com detalhes lilases.
Quando sua mãe faleceu de complicações de um câncer de mama, Vuong demonstrou seu luto nas redes sociais: ‘‘(…) você me ensinou que nossa dor não é nosso destino – mas nossa razão.’’ (Foto: Ocean Vuong)

O resgate da memória nas passagens da infância no meio da narrativa linear da história do Cachorrinho é o traço mais analítico de Sobre a Terra Somos Belos por um Instante. Ocean Vuong usa a escrita como ferramenta de articulação e busca, narrando sempre em primeira pessoa e, diretamente com a sua mãe, faz com que o objetivo de suas cartas nunca seja esquecido: dizer que se é. As coisas mais duras são lembradas de um jeito poético e grotesco, e quase sempre seguidas de uma imagem que bate de frente com a beleza apresentada de forma visual pela escrita. 

“Uma vez você me perguntou o que é ser um escritor. Então vamos lá. Sete dos meus amigos estão mortos. Quatro de overdose.”

Cachorrinho tem acesso ao significado social de sua existência a partir do momento em que começa a reunir os episódios traumáticos de sua vida e colocá-los em uma posição de questionamento: ser um homem vietnamita refugiado, queer, adicto e pobre nos Estados Unidos significa algo. Além disso,as pessoas em volta dele fazem parte desse significado e a escrita tem o papel de síntese de sua própria vida. É como se, caso não fosse um escritor, Vuong jamais poderia contar quem é a ninguém, nem mesmo a sua mãe.

A busca pela identidade nunca acaba, mas toma um outro caráter. Depois que Cachorrinho entende sua existência, quem sua mãe e sua avó foram, e quem seu novo país abriga, o fluxo se torna outro e assume uma calma assustada de quem sabe que seu lugar está predefinido. Então, a subjetividade assume, mais que nunca, o papel de resgate do que nunca foi dado e uma possibilidade de se reconhecer no mundo. A escrita é o que salva: é o que salvou Cachorrinho de sua relação com sua mãe, que termina o livro rindo enquanto se lembra. 

“Porque o pôr do sol, assim como a sobrevivência, existe apenas à beira de seu desaparecimento. Para ser belo, você primeiro precisa ser visto, mas ser visto sempre permite que você seja caçado.”

Heartstopper, meu coração é que para por você!

Cena da série Heartstopper. Na imagem estão Nick Nelson e Charlie Spring. Nick é um homem branco de cabelos lisos e loiros, ele veste uma calça de moletom cinza, uma camiseta azul e um casaco marrom. Charlie é um homem birracial de cabelos ondulados e pretos, ele veste uma calça preta, camiseta azul, casaco preto e uma touca marrom. Os dois estão deitados na neve. A cachorra Nelie está entre os dois, ela tem pelagem marrom e branca. Bolas de neve ilustradas aparecem nas bordas da imagem.
Com um quê de conto de fadas, Heartstopper foi lançada pela Netflix em Agosto de 2022 (Foto: Netflix)

Jamily Rigonatto

Uma caneta estoura manchando as mãos de um garoto, o tom de azul cintila e deixa no ar aquela típica reação envergonhada acompanhada de um sorrisinho de canto. É essa a cena que dá o tom de toda a narrativa carregada por Heartstopper: coisas sobre as quais não se tem controle e deixam marcas difíceis de tirar. O garoto é Nick Nelson, interesse romântico de Charlie Spring, e os dois formam o tipo de casal que nunca daria certo. Um jogador de rugby popular e um jovem doce e sensível? Impossível. Mas na 1ª temporada da série lançada em 2022 pela Netflix, o inesperado é dono de um protagonismo apaixonante. 

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Em As Primas, amor, Arte e violência se misturam na Argentina dos anos 1940

Aurora Venturini e seu livro As Primas venceram o prêmio Nueva Novela, do jornal Página/12, pelo qual a autora, enfim, foi premiada por “um júri honesto” (Foto: Fósforo/Arte: Vitória Vulcano)

Henrique Marinhos

As Primas é um romance de formação, que narra a irmandade das primas Yuna, Petra e Carina, que crescem em uma família disfuncional e marginalizada na cidade argentina de La Plata, nos anos 1940. Publicada originalmente em 2007, quando Aurora Venturini tinha 85 anos, a obra recebeu vários prêmios literários na Argentina e no exterior. Destacando-se pela linguagem radical e excêntrica, que mistura diferentes registros, gírias, estrangeirismos, neologismos, erros gramaticais e ortográficos, criando um estilo único, original e cativante, o trabalho foi a leitura do Clube do Livro do Persona em Março de 2023.

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Até os Ossos é a comprovação de que existe amor a primeira vítima

Cena do filme Até os Ossos. Na imagem temos o personagem Lee, interpretado por Timothée Chalamet, um jovem branco, magro e de cabelos castanhos encaracolados com mechas na cor rosa. Vestindo uma camiseta rosa com detalhes brancos e uma bermuda jeans. Ao lado dele temos Maren Yearly, interpretada por Taylor Russell, uma jovem negra de cabelos ondulados na cor preta, vestindo uma blusa branca e uma saia jeans. Ambos estão em pé nas montanhas, enquanto observam o pôr do sol.
Ovacionado pelo público no Festival de Veneza, Até os Ossos rendeu ao cineasta italiano Luca Guadagnino o prêmio Leão de Prata de Melhor Diretor e a estatueta de Melhor Atriz Revelação para Taylor Russell (Foto: Warner Bros.)

Ludmila Henrique 

Existem infinitas histórias no interior da cinematografia, das mais doces e inocentes como o primeiro amor até os temores e a repulsa dos filmes de terror. Luca Guadagnino, cineasta renomado em contabilizar narrativas sobre o amadurecimento e suas vertentes – como abordado no filme Me Chame Pelo Seu Nome (2017)  e na série We Are Who We Are (2020) – , retorna às telas com Até os Ossos, longa-metragem que une gêneros clássicos do Cinema, para conduzir o romance entre dois canibais marginalizados pela sociedade em busca de pertencimento. 

Adaptando o romance de Camille DeAngelis, Bones And All segue a trajetória de Maren Yearly (Taylor Russell), jovem recém abandonada pelo pai após um incidente em uma festa do pijama. Frank (André Holland), desolado pelo resultado desse acontecimento e perdido sobre o que fazer, decide fugir, deixando a filha apenas com uma fita cassete, compondo gravações pertinentes sobre uma particularidade natural da garota. A jovem, diferente de outros indivíduos, dispõe da incessante necessidade de provar carne humana.

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Park Chan-wook deixa a porta aberta em Decisão de Partir

Cena do filme Decisão de Partir. Na imagem, Song Seo-rae contempla algo à sua direita. Ela é uma mulher chinesa de cabelos e olhos escuros. A câmera a captura a partir da cintura. Song veste uma camiseta de botões e mangas longas na cor pêssego e uma saia longa estampada em tons frios como o azul. Ao fundo, o cenário é a sala de estar de uma casa repleta de objetos decorativos. O papel de parede é o que se destaca, sendo composto por ilustrações que simultaneamente se assemelham a montanhas e ondas, pintadas entre cores quentes e frias como o vermelho e o azul.
Decision to Leave disputou a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2022, que coroou Park Chan-wook como Melhor Diretor (Foto: CJ Entertainment)

Nathalia Tetzner

Quando as luzes se apagam, um detetive ocupa a mente com crimes não solucionados. A insônia somente levanta para longe da cama quando uma presença feminina desconcertante o coloca para dormir ao ritmo de uma respiração acolhedora, justo dela, a suspeita de um dos incontáveis casos que afastam o sono. Entre gotas de colírio para elucidar a visão e potes de sorvete que tentam substituir o jantar, Park Chan-wook desconstrói o romance como um gênero constantemente flertado pelo Cinema, une os protagonistas através dos simbolismos da partição e deixa a porta aberta para a interpretação em Decisão de Partir.

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Fire of love: um legado de amor e Ciência

Exibido no Festival de Sundance, Fire of Love foi adquirido pela National Geographic e concorre ao Oscar de Melhor Documentário (Foto: Disney+)

Vitória Gomez

Longe dos grandes números de bilheteria e do glamour do tapete vermelho, os documentários compartilham o modo divino do Cinema de contar a vida. Aqui, o retrato é através da própria realidade. Neles, sem os artifícios da ficção, o desafio se torna envolver com a apresentação de uma verdade nua e crua – ou pelo menos, da verdade de quem a conta, já que a imparcialidade de um interlocutor é apenas sua, e não absoluta. Em Vulcões: A Tragédia de Katia e Maurice Krafft, porém, a História é tecida de acordo com as fotografias e filmagens da câmera e dos arquivos de Katia e Maurice Krafft, vulcanólogos franceses pioneiros no trabalho com vulcões.

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David Grossman gargalha até doer a barriga em A Vida Brinca Muito Comigo

O Persona também pode esboçar um riso frente ao pranto da vida graças a parceria com a editora Companhia das Letras (Foto: Companhia das Letras/Arte: Ana Cegatti)

Nathalia Tetzner

Sabe aquela pessoa que, quando está calma, os trovões de tempestade podem ser ouvidos ao longe? Que tem o prazer de encher os teus pulmões, mas também sufocá-los? Ela é a perfeita personificação da vida em seu estado mais bruto. Alguns a conhecem precocemente, outros, no tempo certo, e há ainda aqueles que preferem ignorar a sua face áspera e se resumem a dizer “ah, ela é brincalhona assim mesmo”. Na trama de A Vida Brinca Muito Comigo, de David Grossman, três gerações de mulheres procuram digerir as consequências do encontro fúnebre com a origem de tudo.

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A estratégia do charme merece tanto amor quanto seus protagonistas

A estratégia do charme foi publicado em 2022 no Brasil e é um dos livros recebidos pelo Persona na parceria com a Companhia das Letras (Foto: Paralela/Companhia das Letras/Arte: Ana Clara Abbate)

Jamily Rigonatto 

Eu não acho que felizes para sempre é uma coisa que acontece com a gente, Dev, acho que é uma coisa que a gente escolhe fazer acontecer.

Príncipes e princesas são protagonistas quando o assunto são amores perfeitos. Por baixo das coroas, os relacionamentos são fixados em sorrisos brilhantes e atitudes cavalheirescas. Isso é tudo o que Dev Deshpande vê aos 10 anos de idade ao assistir Para Todo o Sempre na televisão da sala e se imaginar fazendo parte daquele universo mágico. O reality show tem uma proposta simples: colocar várias mulheres para conquistar um príncipe e a mais sortuda ganha o casamento dos sonhos. Em A estratégia do charme – livro publicado sob o selo Paralela pela Companhia das Letras – os encantados perdem a pose e a verdadeira trama prova que imperial é ser de verdade. 

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