Watchmen é um testemunho atemporal

O tempo passa e, cada vez mais, Watchmen se mostra uma obra do agora, independente de quando e quem assistir (Foto: Reprodução)

Henrique Gomes

Watchmen é a série de quadrinhos definitiva. Criada por Alan Moore e Dave Gibbons, a HQ se baseia na problematização da realidade, em que cidadãos vestem máscaras e combatem o crime por conta própria. Temas como a salvação da humanidade, as fraquezas dos homens e a existência de um deus entre nós são abordados. Cada detalhe e cada referência na construção desse mundo é um reflexo da nossa sociedade como um todo. Os quadrinhos já faziam com maestria essa discussão política e social, e a minissérie de 2019 resgata e revigora isso.

Publicada entre 1986 e 1987, a história se passa numa realidade paralela de um século XX distópico, em um mundo onde os vigilantes mascarados foram popularizados, tendo em foco o grupo dos Crimebusters. Ele é constituído por Rorschach, Coruja, Silk Spectre, Comediante, Ozymandias e Dr. Manhattan, sendo esse último o único a ter poderes de fato – dentre eles, a onipotência, onisciência e onipresença – devido a um acidente nuclear. Estes seriam os representantes da segunda leva de vigilantes, em que a primeira foi nos anos 50, com os Minutemen.

São inúmeras as referências aos personagens originais da HQ durante a série, seja em quadros, balões, propagandas, símbolos e detalhes, tudo mostra como se tornaram um marco cultural naquele universo (Foto: Reprodução)

Considerando a ausência de poderes sobre-humanos de todos os outros, os questionamentos em voga são sobre a índole de tais heróis, sobre o quão egoístas são seus atos, e o quão genuíno é o sacrifício para a salvação. A humanidade deles é o fardo que leva à proibição da presença de mascarados. Isso não impede que eles ajam pelas sombras, mas não por bondade, afinal, são humanos. E sim, por desgosto, como Rorschach, ou pela cegueira do ego, como Ozymandias.

Com tudo isso em vista, o bilionário e herói aposentado Adrian Veidt, vulgo Ozymandias, passa anos conspirando contra heróis e planejando um falso ataque alienígena, para que o mundo se unifique para combatê-lo em solidariedade e evitar o holocausto nuclear. Tal evento resulta em uma sociedade, de fato unificada, porém com milhões de inocentes mortos. Essa atitude insana gera a repulsa de seus antigos companheiros vigilantes, principalmente de Rorschach, que passa anos destrinchando tal conspiração e planejando  contá-la para o mundo, colocando secretamente seu diário para ser publicado num jornal, pouco antes de ser vaporizado por Dr. Manhattan. Este, que abandona a Terra avisando Veidt de que o seu plano não deu certo no futuro, pois “nada nunca acaba”. É assim que a trama de Watchmen se encerra, até então.

Cena do diálogo final entre Ozymandias e Dr. Manhattan na HQ (Foto: Reprodução)

A ideia de levar esse universo para as telas – depois do péssimo filme de 2009, dirigido por Zack Snyder – soou perigosa para os fãs, principalmente com o anúncio de que seria uma continuação. Considerando a grandeza dos quadrinhos e a profundidade que permeia toda a história, a continuidade dessa mitologia visa seguir a lógica das consequências, assim como na realidade de fato. E é aí que o roteiro acerta.

Produzida pela HBO, a minissérie traduz completamente a linguagem da graphic novel para o audiovisual, pegando cada ponta do que torna aquele universo tão real. Ao invés de retratar uma caricatura dos anos 80, com os traumas e conflitos daquela época, ela retrata uma caricatura do mundo em 2019 e as consequências da HQ dentro disso. Se antes o tema fazia referência à Guerra Fria, hoje, ele faz à discussão racial dos dias atuais. O roteiro ainda é assinado por Damon Lindelof, mente por trás de Lost e The Leftovers. Com o discurso de ódio, o racismo e o fascismo se tornando tendências políticas, nunca uma história se fez tão urgente para ser recapitulada. Watchmen fala do agora, tanto da ficção, quanto da realidade.

O roteirista recusou duas vezes o convite para escrever a série pois o medo de estragar a obra de Alan Moore e Dave Gibbons era imenso, afinal, é um grande fã (Foto: Reprodução)

34 anos após os eventos da HQ, a trama se discorre em Tulsa, Oklahoma. Um grupo de supremacistas brancos ascende e trava uma guerra contra as minorias e a política dos EUA de reparação histórica dos danos causados pela discriminação racial. Ele ficou conhecido como A Sétima Cavalaria, e baseia seus discursos nos escritos deixados por Rorschach antes de morrer, usando da imagem do vigilante para a identidade das máscaras que vestem. Do outro lado do fronte, estão os policiais, que usam máscaras e agem anonimamente – feito vigilantes –  em nome das forças do governo. Dentre os agentes, temos o chefe de polícia misterioso, Judd Crawford (Don Johnson), e a detetive Angela Abar, que age sob o codinome de Sister Night, sendo ela o foco da trama como um todo.

Angela é interpretada magistralmente por Regina King, principalmente por sintetizar tudo que Watchmen representa. Uma mulher negra, desconcertada com sua história, tão ciente quanto manipulada, tão frágil quanto forte. A todo momento ela desconstrói o arquétipo de herói, que, desde a origem, nos quadrinhos, é problematizado. Nos diversos clímax que permeiam a série, Regina te pega desprevenido, agindo de forma egoísta quando pensa que deve ser heroica, conformada quando pensa estar chocada, ela é o principal pilar da narrativa por definição. O exemplo mais claro está nas cenas que retratam sua relação com o marido Cal (Yahya Abdul-Mateen II), e seu relacionamento com Dr. Manhattan.

Regina King disse que só participaria de uma eventual segunda temporada se ela fosse escrita por Damon Lindelof novamente (Foto: Reprodução)

Além da grande protagonista, a trama tem múltiplos núcleos de personagens, e em momento algum o roteiro falha ao apresentá-los. Como com Looking Glass (Tim Blake Nelson), um dos vigilantes que possui sua motivação em decorrência do ataque da lula gigante em 85, uma representação viva do trauma que o “heroísmo” de Ozymandias gerou. E também com Laurie Blake (Jean Smart), que retorna à narrativa de Watchmen sem o nome de Silk Spectre, e sim como uma agente do FBI e, ironicamente, membro da força-tarefa anti-vigilantes.

Dos arcos paralelos de personagens que mais intrigam e acrescentam na série, o maior deles é o de Adrian Veidt, interpretado perfeitamente por Jeremy Irons. Após os eventos da HQ, o herói aposentado enlouquece com o fato de que ele salvou o mundo do holocausto nuclear, e ninguém sabe. Enquanto o homem existir, por mais que seja um herói, o seu ego vai torná-lo contra qualquer princípio ético e moral. À vista disso, ele se isola no que parece ser um castelo na Europa, porém enlouquece mais ainda com tamanha monotonia da paz eterna. E seu arco se desenrola na sua fuga do que seria o “Jardim do Éden”, e na grande falha daquele que é conhecido como o homem mais inteligente do mundo: a humanidade.

Jeremy Irons escolheu fazer o personagem instintivamente; sem pensar muito, fez Ozymandias renascer em sua interpretação (Foto: Reprodução)

A presença do Dr. Manhattan traz pontos culminantes e complexos, mas bem executados, não só pela edição, como também pelo roteiro e atuação de Yahya Abdul-Mateen II. Alguns questionamentos filosóficos se encontram na busca dos personagens pelo controle dos poderes quase que divinos dele, no fato de ser um grande prisioneiro do destino que ele prevê, mas agir de forma um tanto questionável para um semi-deus. Ele acaba como mais uma das personalidades com a moral envenenada pelo mesmo mal que cerca todos os outros componentes: um pingo de humanidade.

Além das interpretações impecáveis do elenco, a série acerta em manter e ressignificar o conceito do que é Watchmen. Cria-se uma imersão em cada detalhe da atmosfera tão realista e absurda desse universo, como nas cenas em que os poderes do Dr. Manhattan são retratados como ponto-chave da trama. E também no episódio This Extraordinary Being, que conta a origem do Hooded Justice, um personagem quase que irrelevante na história original, mas que casa perfeitamente com a proposta ousada de relacionar as discussões raciais do mundo atual com a narrativa criada há 34 anos. Os roteiristas foram tão ousados quanto Alan Moore e Dave Gibbons em 1986, sem medo de destrinchar completamente a história e, por isso, manter a obra com sua originalidade.

O resultado disso tudo se mostra no fato de que a produção é uma das grandes apostas ao Emmy 2020, liderando a lista de indicados. Das 26 indicações que recebeu, se encontra nas principais categorias, como a de Melhor Minissérie, Ator e Atriz para Jeremy Irons e Regina King, Atriz Coadjuvante para Jean Smart, e três nomeações por Melhor Ator Coadjuvante para Yahya Abdul-Mateen II, Jovan Adepo e Louis Gossett Jr. O já citado episódio This Extraordinary Being concorre como Melhor Roteiro e Direção, sendo o mais marcante de toda a trama, tanto pela proeza técnica, quanto pelo simbolismo que carrega. Nada além do merecido.

Lindelof afirmou que faria uma segunda temporada contando uma outra história do universo de Watchmen, por o arco de Angela Abar já ter sido encerrado (Foto: Reprodução)

Em cenas como a que a frase “é difícil ser um homem branco nos Estados Unidos” é ressoada, a caricatura escancarada de uma realidade tão absurda em que vivemos faz dessa série um marco da televisão americana. Trazendo absolutamente tudo que há de mais urgente na nossa sociedade como um debate global, em rede aberta. Mais uma vez, Watchmen não é sobre heróis, é sobre o agora. É sobre os meros mortais do agora.

O final apressado visou uma conclusão generalizada para a história como um todo, sem se aprofundar muito no destino dos personagens que foram tão desenvolvidos e marcantes desde o início. Mas, ainda assim, a série fecha seu arco com a mesma qualidade de como começou. Uma continuação direta não seria a melhor opção, considerando que existem muitas outras tramas dentro desse universo, talvez um novo caminho seja mais empolgante. Afinal, os ovos precisam ser quebrados.

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