Alan Moore e seu “suspense sofisticado” de Monstro do Pântano

O britânico Alan Moore entrou no mercado norte-americano em 1983, em um título deixado de escanteio pela DC Comics, para desestabilizar de vez a indústria dos quadrinhos.

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Além do escritor Alan Moore, muito da concepção da personagem se deve aos artistas Stephen Bissette e John Totleben/ DC Comics

Lucas Marques

A chamada “Sophisticated Suspense” (Suspense Sofisticado) presente na maioria das capas de A Saga do Monstro do Pântano não traduz nas histórias o que os editores da DC Comics queriam indicar por ela: algo nos moldes da literatura de H. P. Lovecraft ou mesmo de Stephen King, que nesses meados dos anos 80 vinha de sucesso após sucesso. Mas essa sofisticação é verdadeira, não se engane, concretizada em uma miscelânea inédita nos quadrinhos. Ao longo de mais de 40 edições, Alan Moore reuniu em um mesmo espaço religião e filmes trash, Freud e Aleister Crowley, biologia e erotismo, movimentos sociais e cinema pastelão, o racional e o irracional.

O Monstro do Pântano foi criado pelo escritor Len Wein e o desenhista Bernie Wrighton para uma edição da antologia de quadrinhos de terror House of Secrets, em 1971. A história, um surpreendente sucesso, tomava como inspiração as obras da era vitoriana – até mesmo na ambientação do século XX -, em especial O Médico e O Monstro, no que toca a desconfiança na ciência e a impossibilidade do amor. Em 1972, a dupla foi encarregada de atualizar o Monstro do Pântano e produzir um título próprio: a criatura se torna Alec Holland, um cientista trabalhando nos pântanos de Louisiana, junto a sua amante Abigail Arcane, em sua fórmula que permitiria florescer ambientes desérticos. A pacífica missão do casal é abortada por um misterioso bombardeiro e Holland, misturado ao fogo, a lama e a fórmula, transforma-se no monstro.

O mote – bem convencional, mas movido pela arte premiada de Bernie Wrighton – foi o bastante para 20 edições, entre trancos e barrancos, até a série ser interrompida. Os editores da DC Comics só encontraram motivos para reviver a série pela proximidade da adaptação cinematográfica, dirigida pelo ainda desconhecido Wes Craven, em 1982. Recém-chegado no mercado norte-americano, o britânico Alan Moore recebeu um dos títulos mais desconhecidos da editora, porém a ele a liberdade criativa era o bastante.

Além de dois filmes “B maiúsculo” , a personagem recebeu uma série televisiva e um cartoon nos anos 90.

A reimaginação de velhas histórias sempre foi uma constante na carreira de Moore, e talvez seu maior trunfo, desde a publicação de Marvelman pela editora britânica Warrior, em 1982 – ano, aliás, também marcado pelo clássico V de Vingança. O grande choque estético de Marvelman não se deu, como muitos erroneamente propagam, pela fixação dos arquétipos dos quadrinhos de super-heróis em um mundo realista, mas ao colocar ativamente Friedrich Nietzsche em um meio majoritariamente juvenil. A proposta do super homem nietzschiano deixou de ser uma leve menção – apesar de servir de inspiração na criação dos primeiros super-heróis dos gibis – para tomar o primeiro plano da narrativa.

Não tão radical foi Moore ao conceber o seu Monstro do Pântano um ano depois, uma vez que ele é moldado aos poucos. Todavia, já na segunda história, Lição de Anatomia, temos uma grata novidade: descobre-se que o Monstro não é Alec Holland em forma de planta, mas uma planta “que pensa ser Alec Holland”. Uma premissa com alto grau de cafonice, sim, mas que permite tirar o monstro do território do romantismo e adentrar de cara no pós-modernismo: a história de um vegetal com questões existenciais em um mundo em que a civilização e o sobrenatural provinciano estão em constante embate.

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Excêntrico, Moore sempre se destacou ao mesclar o que é tido como alta e baixa cultura. O autor hoje é brigado com as grandes editoras norte-americanas e evita falar nas obras do período.

A Saga do Monstro do Pântano então, com o auxílio da narrativa gráfica inteligente e detalhada de Stephen Bissette e John Tottleben, torna-se lugar de experimentação em terror, em grande parte pela apropriação tanto da literatura – de Caim e Abel à Pata de Macaco, de W. W. Jacobs – quanto da ciência biológica. Em certo momento, o próprio terror deixa o primeiro plano para dar lugar a temáticas como drogas, movimentos sociais, erotismo, psicanálise, algumas flertando com o humor, outras mais dramáticas. Como o fio condutor e agente de mudança desse caos está o monstro que, mesmo resolvendo muitos problemas, sempre é frustrado em sua busca por respostas.

Um dos pontos mais marcantes não só da saga, mas dos quadrinhos populares como um todo, é o conto Rito da Primavera, ainda no segundo volume. Nele Abigail e o Monstro compartilham do desejo sexual. A criatura então retira um tubérculo de seu corpo e entrega à Abigail, que o morde fazendo escorrer seiva. A visão da mulher se turva, toma novos formatos e cores, ao mesmo tempo que o próprio quadrinho assume uma nova perspectiva, em formato paisagem. Moore não apenas tocou em dois tabus nos quadrinhos, o sexo e as drogas lisérgicas, como também executou um de seus primeiros experimentos formais.

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O momento da mudança de perspectiva em Rito de Primavera

Entretanto o ponto mais alto da série é o arco narrativo Gótico Americano, entre os volumes 3 e 4. Moore insere a personagem John Constantine, que viria a se tornar uma das mais conhecidas da editora, como guia do monstro. Ambos viajam os EUA deparando-se com diversos fenômenos sobrenaturais, todos inspirados por lendas ou acontecimentos reais. A sacana do autor foi atribuir sutis comentários sociais a cada uma delas. Moore, em histórias de lobisomem, vampiro, casas mal-assombradas, escreve sobre a repressão à mulher, o racismo, a marginalização, a cultura bélica e o genocídio indígena.

A Saga do Monstro do Pântano passa longe de ser perfeita, em algumas edições tem-se a clara sensação de estar lendo uma encheção de linguiça. Também pudera: Moore alternava os estritos prazos mensais com a criação de outras histórias curtas para DC e a concepção de sua obra mais celebrada, Watchmen. Mas o autor não poderia ter uma estreia melhor nos quadrinhos de massa; O Monstro do Pântano é uma obra guiada pelas leituras extremamente variadas de Moore, utilizadas para extrapolar o terror e permitir pequenas inovações nos quadrinhos.

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