Twin Peaks: 30 anos de um universo onde as corujas não são o que parecem

Letreiro da cidade em que se passa a história (Foto: Reprodução)

Gabriel Gatti

Em 1990, o mundo queria saber: quem matou Laura Palmer? Criada por Mark Frost e David Lynch, Twin Peaks foi um dos maiores marcos da televisão mundial. A série se passa em uma cidadezinha pacata que fica na fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá, onde ocorreu o terrível assassinato de uma estudante, Laura Palmer (Sheryl Lee). O episódio piloto começa com o morador local Pete Matell (Jack Nance) saindo para pescar e encontrando o corpo da jovem envolto em plástico às margens do lago. Em decorrência do assassinato, o agente nada convencional do FBI, Dale Cooper (Kyle MacLachlan), vai a Twin Peaks para investigar o caso.

A trama da série se desenvolve de maneira sensorial e única para os padrões televisivos da época. A partir do primeiro contato com Twin Peaks já é perceptível a complexidade dos personagens, como Nadine Hurley (Wendy Robie), que é obcecada pelas cortinas da sala, e Margaret Lanterman (Catherine E. Coulson), andando sempre com um tronco que possui respostas para diversos segredos. A narrativa se desenvolve de modo surrealista e, com isso, acabou pegando os telespectadores da época de calças curtas, já que estes não esperavam algo daquela magnitude.

A construção do clima delirante de Twin Peaks ocorre desde o início com a abertura. A trilha sonora da série, composta por Angelo Badalamenti, traz melodias lentas e sombrias que casam perfeitamente com a narrativa alucinante. A faixa Falling, por exemplo, interpretada pela cantora Julee Cruise, coloca ritmo à agonia de Laura que não suportava mais se atormentada pelo espírito Bob quando a música diz “Don’t let yourself be hurt this time” (“Não deixe que você se machuque dessa vez”).

Cooper sonha com o Black Lodge (Foto: Reprodução)

A história apresenta seu primeiro momento surreal quando Cooper sonha que está em um ambiente com chão de padrão branco e preto e com cortinas vermelhas, que mais tarde viria a ser chamado de Black Lodge. No local, ele encontra um anão de terno vermelho e uma moça que se parece com Laura Palmer. Nesse ambiente louco, em que as falas dos personagens são ao contrário e desconexas, a jovem sussurra no ouvido de Cooper a identidade do assassino de Laura Palmer. Ao acordar, o agente do FBI esquece quem cometeu o crime, mas compartilha com seus companheiros da polícia, que passam, desse modo, a investigar o caso de forma inusitada.

Em sua primeira temporada Twin Peaks apresenta seu lado sombrio e misterioso, intensificado pela fotografia e pela trilha sonora da série. O roteiro se balanceia com certos momentos de humor, ressaltando a complexidade da história. Além disso, um recurso muito utilizado por Lynch e Frost é o cliffhanger, e, desse modo, os criadores da narrativa conseguiram prender seus telespectadores para a segunda temporada.

O desenrolar da trama se desenvolve como uma narrativa nonsense em que a realidade e os sonhos se misturam. O auge da série ocorre quando finalmente o assassino de Laura Palmer é revelado, na metade da segunda temporada. No entanto, após a revelação surpreendente, a história toma um rumo monótono focado no cotidiano dos moradores de Twin Peaks. Esse fator causou uma queda abrupta na audiência, que não tinha mais um grande mistério nas mãos. Por outro lado, outras figuras como Denise Bryson (David Duchovny) e Windom Earle (Kenneth Welsh), que surgiram com o fim da trama principal, contribuíram para o decorrer da história.

Cena do diálogo de Laura Palmer com Cooper no fim da segunda temporada (Foto: Reprodução)

Embora Lynch e Frost tenham arrastado a história durante a segunda temporada após revelar quem matou Laura Palmer, a trama oferece ótimos momentos misteriosos e surrealistas. Um marco da série, por exemplo, foi quando Cooper entra no Black Lodge durante o último episódio. A cena rendeu grande espetáculo para a teledramaturgia, com jogos de luzes, suspense e várias falas marcantes. Uma delas foi a impactante “eu vejo você de novo em 25 anos”, dita por Laura para o agente do FBI.

Nesse meio de tempo, foi lançado o filme Twin Peaks: Fire Walk With Me, em referência à frase encontrada no diário de Laura Palmer na série. O longa exibe o cotidiano da jovem durante seus últimos dias de vida. A trama abordada no filme traduziu bem a agonia da jovem que vivia seus últimos dias rodeadas de espíritos malevolentes. Além disso, a história contou com a participação do cantor David Bowie para interpretar Philip Jeffries, um agente do FBI que desaparece misteriosamente. No entanto, a crítica julgou o longa como uma narrativa confusa e com isso, em 2014, produziram Twin Peaks: The Missing Pieces, que divulga cenas cortadas do filme.

Ao longo de duas temporadas e um longa metragem, Lynch e Frost contam a história do assassinato de uma jovem que todos gostavam, mas que ninguém conhecia direito. A obscuridade da vida de Laura traz uma narrativa sensorial interessante sobre não conhecer direito as pessoas ao redor. No caso da série, a moradora de Twin Peaks frequentava lugares e conhecia pessoas que seus próprios pais desconheciam. A atuação de Sheryl Lee contribuiu muito para a intensificação das emoções da personagem. Inclusive, Lynch ficou tão satisfeito com o trabalho da atriz que mais tarde incluiu Maddy Ferguson na narrativa, uma prima de Laura que também fora interpretada por Lee.

Bob, o espírito que atormentou Laura Palmer durante seus últimos dias de vida (Foto: Reprodução)

Todos os traços complexos e surrealistas que Twin Peaks apresenta refletem muito o estilo cinematográfico característico de David Lynch, que estreou no cinema como diretor com Eraserhead em 1977. O longa metragem desenvolve uma narrativa nonsense que apresenta Henry Spencer (Jack Nance), um pai que tem criar seu filho sozinho após ser abandonado pela esposa. No entanto o comportamento da criança, representada por uma criatura semelhante à um feto mal formado, reforça a sensação de desconforto de Spencer com seu filho.

A estreia de Lynch trouxe uma história interessante que faz uma analogia ao sentimento de quando teve sua primeira filha. Depois de Eraserhead, o diretor foi responsável por outras grandes produções cinematográficas como O Homem Elefante (1980), Veludo Azul (1986) e Coração Selvagem (1990).

No entanto, muito antes desse estilo lynchiano surgir, a diretora surrealista, Maya Deren já produzia obras cinematográficas sensoriais. O curta metragem experimental Tramas do Entardecer (1943), por exemplo, desenvolve uma narrativa surreal acerca de como funciona a mente de um suicida. Nele, Deren utiliza de tomadas de câmera e luzes ousadas para a época que intensificam a agonia da protagonista que confunde o sonho com a realidade. Essa trajetória onírica desenvolvida pela diretora foi fonte de inspiração para Lynch ao produzir o segundo filme da sua trilogia de Hollywood, Mulholland Drive (2001), sendo os demais A Estrada Perdida (1997) e Império dos Sonhos (2006).

Protagonista do curta Tramas do Entardecer confunde sonho com realidade (Foto: Reprodução)

O impacto causado pela série foi tanto que diversas produções a adotaram como fonte de inspiração. Nomes como David Chase (Família Soprano, 1999- 2007), Damon Lindelof (Lost, 2004 – 2010) e Matthew Weiner (Mad Men, 2007 – 2015) foram diretamente influenciados por Twin Peaks.

Além desses, diversos programas de TV já fizeram referência à Twin Peaks. Durante o episódio Quem matou o Sr. Burns? parte 2 da série Os Simpson, por exemplo, o chefe de polícia Clancy Wiggum (Hank Azaria) sonha com um ambiente similar ao Black Lodge enquanto tenta desvendar a trama. Além desse, outros programas como Vila Sésamo, Scooby Doo e Gravity Falls também já apresentaram referências à Twin Peaks em algum episódio.

Não apenas a série e o filme, foram publicados alguns livros sobre Twin Peaks. The Secret Diary of Laura Palmer, por exemplo, que foi escrito por Jennifer Lynch, faz alusão ao diário da personagem que é encontrado durante a série. Nele são feitas revelações sombrias e perturbadoras sobre a jovem, que escreveu nele desde seus 12 anos de idade até os 17, quando foi morta. Já The Autobiography of F.B.I. Special Agent Dale Cooper: My Life, My Tapes, transcreve mensagens de áudio gravadas por Cooper, como “me ocorreu noite passada…eu não sei o sobrenome de Diane (secretária de Cooper)”, que apresenta peculiaridades sobre o agente do FBI. Outro livro publicado é Welcome to Twin Peaks: An Access Guide to the Town, que destaca certos pontos sobre a cidade, porém dá mais ênfase ao seu lado excêntrico, do que ao lado sombrio.

Livros publicados sobre o universo de Twin Peaks (Foto: Crystal Ro / BuzzFeed)

Por fim, houve o tão esperado retorno. 25 anos após a exibição da série original, Twin Peaks retornou para a sua terceira temporada. O comeback realizado por Lynch e Frost foi algo único para a história da TV, já que a narrativa seguiria como uma continuação e não como um remake. Para isso, os criadores da série modernizaram o show e passaram a exibir a história de lugares fora da cidadezinha de Twin Peaks. O próprio Dale Cooper, que passou a maior parte da série como Dougie Jones, só retornou para a pacata cidade nos últimos episódios. Outro fator que contribuiu para a modernização de Twin Peaks foram as filmagens aéreas que introduziram o local onde seria exibido a cena seguinte e o filtro utilizado de tom meio acinzentado.

Além disso, a nova temporada apresentou um lado ainda mais complexo do Black Lodge. Nela, Lynch deu ênfase à história de diversos espíritos bizarros que habitavam a sala, como o Bombeiro (Carel Struycken),  Mike (Al Strobel) e o Braço, interpretado originalmente por Michael J. Anderson e no retorno por uma criatura computadorizada amorfa. Outro ponto alto da série foi a explosão da primeira bomba atômica no Novo México em 1945. Como resultado, o espírito chamado Senhora Dido (Joy Nish) envia Laura Palmer para a Terra.

No entanto, Twin Peaks: O Retorno também teve seus pontos fracos. Diversos personagens novos surgem nesse universo, muitos como filhos de outros da série original, como no caso de Becky Burnett (Amanda Seyfried), filha de Shelly Briggs (Mädchen Amick) e Bobby Briggs (Dana Ashbrook). Porém a narrativa se constrói principalmente em cima dos antigos personagens, deixando a geração mais nova de lado, que, desse modo, não acrescentou muito na narrativa. Outro ponto negativo foi a forma que a história de Audrey Horne (Sherilyn Fenn) foi tratada. A personagem aparece pela primeira vez mais para o final da série e, além disso, envolvida numa trama que pouco se relaciona com o ponto que sua narrativa parou em 1991.

Elenco original de Twin Peaks, 25 anos após a exibição da série (Foto: Reprodução)

O retorno de Twin Peaks foi a cartada final para a consagração dessa série cult como uma das melhores produções já exibidas na TV. O piloto parte de uma história cativante, narrada de forma única acerca de um assassinato numa cidadezinha pacata, que se desenvolve orquestradamente, revelando um lado muito mais profundo no surrealismo lynchiano. E, por fim, 30 anos depois, o que a faz tão especial é que nem tudo precisa necessariamente fazer sentido para contar uma grande história.

Um comentário em “Twin Peaks: 30 anos de um universo onde as corujas não são o que parecem”

Deixe uma resposta