Entre a panela de pressão psicológica e a sutileza humana, The Bear segue longe de queimar

Cena da série The Bear. No canto esquerdo, temos o ator Jeremy Allen White, um homem branco de cabelos loiros escuros. Ele está virado com a cabeça para baixo e os olhos fechados. Ao fundo, temos luzes azuis em neon e outras luzes amareladas, que indicam o cenário de uma conveniência. A cena acontece durante a noite.
O retorno de The Bear ocorreu antes da série ser reconhecida com 10 vitórias no Emmy 2023, por sua primeira temporada (Foto: Star+)

Nathan Nunes

AVISO: Este texto contém spoilers

Beef, episódio que marca o retorno de The Bear, abre com Marcus (Lionel Boyce, de Hap and Leonard) tomando conta da mãe acamada em um hospital. Seus gestos são pequenos, mas simbólicos. Uma toalha molhada na testa da senhora, para abafar o calor. O esforço em contar sua rotina para mantê-la informada. Tudo isso sem obter reações, pois, para o confeiteiro, pouco importa a recompensa. Ele se contenta fazendo o que pode e, dessa forma, encontra um propósito. A cena pode parecer simples, mas carrega as principais temáticas que permeiam toda a segunda temporada: o cuidado, a sutileza e a humanidade. 

Para a equipe do restaurante, antes chamado The Beef e agora rebatizado com o nome da série, a situação não está nem um pouco fácil. Com o local em reforma, vários problemas de infraestrutura vêm à tona e pequenas inspeções de rotina, como um simples teste do sistema de supressão de incêndio, ganham um forte peso dramático. Enquanto isso, algumas mudanças ocorrem na hierarquia dos cozinheiros. Carmy (Jeremy Allen-White, de Shameless) passa a Sydney (Ayo Edebiri, de Big Mouth) o posto de chef principal. A jovem, por sua vez, escolhe Tina (Liza Colón-Zayas, de In Treatment) para ser sua sous chef, em uma cena marcada por um abraço tocante das duas.

 Cena da série The Bear. No centro da imagem, temos o ator Lionel Boyce, um homem negro que olha para o canto esquerdo da imagem. Ele veste um boné marrom, um fone de ouvido branco, uma jaqueta vermelha, uma blusa laranja e uma calça preta. Ele está com as mãos apoiadas em sua perna e sentado em um banco preto. Ao fundo, temos um cenário de prédios na cor bege e postes de luzes amarelas. A cena acontece durante a noite.
Dirigido por Ramy Youssef, o episódio Honeydew é o único fora do comando da dupla Joanna Calo e Christopher Storer (Foto: Star+)

A reestruturação é sentida na série conforme os personagens são separados e desenvolvidos individualmente. Alguns continuam dividindo espaço com as demais tramas, como Ebraheim (Edwin Lee Gibson, de Lakers: Hora de Vencer) e Tina, que são enviados a uma escola de alta gastronomia e processam a experiência de forma diferente um do outro. Ele tem dificuldades de se adaptar, enquanto ela está vivendo um sonho – seu sorriso ao finalmente segurar a faca de Carmy é doce e apimentado, no melhor estilo da personagem. 

Outros membros já recebem um destaque particular, em episódios que parecem histórias paralelas à narrativa principal. É o caso de Richie (Ebon Moss-Bachrach, de The Dropout) e Marcus, mandados, respectivamente, ao restaurante de três estrelas Michelin, Ever, em Chicago, e a uma espécie de intercâmbio culinário em Copenhague. A partir dessa escolha, ambientes e estruturas completamente novas são exploradas, seja no funcionamento quase cirúrgico do restaurante, ou nas ruas iluminadas da capital dinamarquesa. 

Cena da série The Bear. Do centro da imagem para o canto inferior direito, temos a atriz Ayo Edebiri, uma mulher negra de cabelos presos. Ela veste um turbante estampado nas cores vermelho, verde, preto e amarelo, uma camiseta branca com listras pretas e um avental azul, com uma toalha branca amarrada na cintura. Ela está inclinada sob uma mesa na cor prateada. Ao fundo, temos uma parede de tijolos brancos e uma série de utensílios de cozinha na cor prateada. A cena acontece durante a noite.
Presente em The Bear, As Tartarugas Ninjas: Caos Mutante, Theater Camp e Bottoms, Ayo Edebiri é mesmo a queridinha do momento (Foto: Star+)

Em sua primeira temporada, The Bear ficou marcada, imageticamente, por traduzir a ansiedade da cozinha com montagens intensas, design de som barulhento e uma movimentação sempre caótica dos atores pelos cenários. Todas essas técnicas continuam aqui, até mesmo com mais fôlego do que antes. O episódio Sundae, por exemplo, utiliza mais de um clipe agitado para mergulhar o público no psicológico de Sydney, conforme ela passeia por Chicago e coleta ideias para o novo menu do restaurante. O take final a captura deitada e cansada sob a mesa, uma imagem sublime. 

Entretanto, sob o comando de Joanna Calo (Hacks, Treta) e do também showrunner Christopher Storer (Bo Burnham: Make Happy), a direção busca menos estilo e mais sutileza, com uma câmera que valoriza os respiros entre as cenas. O segundo episódio, Pasta, ilustra bem essa linha, através do reencontro de Carmy e Claire (Molly Gordon, de Shiva Baby), uma antiga paixão do passado. Com a decupagem sintetizada no tradicional jogo de plano e contraplano, os closes repousando sobre seus rostos e a bela Strange Currencies da banda R.E.M ao fundo, o momento consegue reacender um interesse adormecido, utilizando apenas o básico da linguagem audiovisual.

Cena da série The Bear. No canto direito da imagem, temos o ator Ebon Moss-Bachrach, um homem branco de cabelo semi-raspado, barba e cavanhaque, todos pretos. Ele está olhando para a direita da imagem, com um sorriso no rosto. Ele veste uma jaqueta preta. O fundo está desfocado, com algumas luzes em azul, branco e roxo, uma janela que reflete as luzes do trânsito. A cena, portanto, se passa durante a noite em um carro em movimento.
Ao som genial de Love Story, de Taylor Swift, Richie tem sua redenção (Foto: Star+)

Essa sutileza ressalta também os gestos de cuidado entre os personagens. O cuidado de Carmy em utilizar o sinal de “me desculpe” em ASL (língua de sinais americana) para manter a comunicação com Sydney no caos da cozinha. O cuidado da própria jovem em fazer um omelete para uma faminta e estressada Natalie (Abby Elliott, de Star vs. As Forças do Mal). O cuidado no atendimento que transforma Richie, de um homem petulante e mesquinho para um soldado sempre a postos para o cliente, e também para quem precisar. 

A sutileza, porém, também revela medos e traumas, da mesma maneira que uma reforma de restaurante expõe rachaduras e imperfeições. O medo do fracasso que paira sob Sydney, quase desamparada em boa parte da narrativa. O medo da solidão que assola Marcus, cada vez mais descrente na recuperação da mãe. O medo de um cozinheiro veterano, como Ebraheim, em ficar para trás diante de tantos novos talentos. Por fim, os medos de Carmy, aprofundados durante o intenso e marcante sexto episódio, Fishes.

Cena da série The Bear. No canto esquerdo, temos a atriz Abby Elliot, uma mulher branca de cabelos castanhos escuros, que está virada de lado e veste uma blusa azul escura, com listras em bege. A direita dela, está o ator Jeremy Allen White, um homem branco de cabelos loiros despenteados. Ele está com a mão esquerda levada a boca, enquanto o braço está apoiado em uma mesa de jantar. Ele veste uma blusa preta, com gola branca. Ele tem tatuagens no braço. No canto direito da imagem, temos a atriz Jamie Lee Curtis, uma mulher branca de cabelos grisalhos, que veste uma blusa preta. Ela está com as unhas pintadas de vermelho, e com os braços e mãos apoiados em posição de reza. Na frente dos três, temos uma mesa de jantar com taças transparentes, pratos brancos e uma forma branca com bolos amarelos em cima. Ao fundo, temos o cenário de uma cortina cinzenta e paredes amarelo-marrom. A cena acontece durante a noite.
Com participações especiais de Jamie Lee Curtis, Bob Odenkirk, John Mulaney e Sarah Paulson, o episódio Fishes é um dos melhores da série (Foto: Star+)

Situado cinco anos antes dos eventos da série, durante uma ceia de natal da família Berzatto, o episódio mistura sentimentos com um toque agridoce. Mike (Jon Bernthal, de King Richard) está vivo ainda, mas os impactos da depressão já são sentidos por algumas pessoas ao seu redor, vide os atritos com o “tio” Lee (Bob Odenkirk, de Better Call Saul). Richie e Tiffany (Gillian Jacobs, da trilogia Rua do Medo) estão juntos, mas sabemos que não por muito tempo. Além disso, por mais que Carmy esteja presente, ele não está necessariamente em casa, pois sente o peso de relacionamentos tão complicados, em especial o de Natalie com a mãe Donna (Jamie Lee Curtis, de Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo).  

A série nunca esteve tão precisa em seu alinhamento da forma com o conteúdo. Os closes aprisionam o rosto dos personagens em sofrimento velado, o design de produção transforma quase todos os cômodos da casa em ambientes opressores e a fotografia de Andrew Wehde (Oitava Série) possui uma textura suja e desbotada, trabalhando as cores quentes de um modo desconfortável. O som, por sua vez, se calca no modus operandi da cozinha: gritos, ofensas e panelas ao chão, intercalados com os silêncios das conversas casuais.

Cena da série The Bear. Na parte esquerda da imagem, temos o ator Jeremy Allen White, um homem branco de cabelos loiros. Ele está virado de lado para a câmera e olhando para a atriz Molly Gordon. Molly está posicionada na parte direita da imagem. Ela é uma mulher branca de cabelos castanhos. O fundo está desfocado, mas é possível visualizar uma luz branca na parte superior, ao centro. A cena acontece durante a noite.
Estaria Carmy finalmente pronto para dividir sua vida com alguém? (Foto: Star+)

É notável a maneira como os problemas da família – falta de comunicação, sentimentos reprimidos, alcoolismo, depressão – transformaram Carmy em um homem quebrado por dentro. A volta de Claire é posicionada pelo roteiro como um meio de evolução para o personagem, que, mesmo relutante de início – chegando ao ponto de entregar um número de telefone falso para ela –, finalmente se vê diante de uma pessoa com quem pode se abrir. Tudo dá certo, até chegarmos à season finale

Sob o mesmo nome titular, o décimo episódio, The Bear, retoma a tradicional pressão da cozinha, com o restaurante em sua noite de reinauguração. Durante boa parte da rodagem, a câmera assume a qualidade de plano-sequência ininterrupto, tão elogiada na temporada anterior. Tudo aparenta estar de volta aos eixos, mesmo que de forma caótica. Ainda assim, não demora muito para as coisas saírem de controle, pois os talheres começam a faltar, os pedidos se acumulam e, no auge do estresse, Carmy fica preso no refrigerador.

Cena da série The Bear. Na parte direita da imagem, temos o ator Jeremy Allen-White, um homem branco de cabelos loiros. Ele está sentado e com os braços apoiados nas pernas. Ele está vestindo um avental branco e olhando para a parte esquerda da imagem. Nessa parte, temos um feixe de luz azul. Ao fundo, temos uma parede cinzenta. A cena acontece durante a noite.
Liberdade ou solidão? (Foto: Star+)

Ao final, Carmy se mostra o único personagem que não evoluiu. O restaurante, Sydney, Marcus, Tina e até Richie, o mais improvável, se transformaram em algo completamente diferente daquilo que conhecemos. Existe demérito nessa involução do protagonista? Por incrível que pareça, não. Em ambas as temporadas, The Bear busca compreender cada um dos cozinheiros com empatia, reconhecendo seus erros e acertos, mazelas e habilidades, entre outros. Para Carmy, falta a sutileza de olhar para si mesmo, e o cuidado de pensar em como suas inseguranças afetam aqueles que ama. Ainda assim, não há nada de errado nisso, pois o chef não é um urso, mas, sim, aquilo que a série mais valoriza: humano.

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