Hacks é bi

Após competir o Emmy 2021 apenas com Ted Lasso, a segunda temporada de Hacks têm a antiga rival, Abbott Elementary, Only Murders in the Building e Barry para disputar os prêmios da noite (Foto: HBO Max)

Ana Júlia Trevisan

Desde sua estreia, Hacks é consciente da potência de seu material e da estrela que tem em mãos, usando dos artifícios em favor da própria produção para alavancar a comédia dentro da comédia. Em sua primeira temporada, a série pautou a figura feminina na indústria cômica de Hollywood. Seu humor ferrenho nos trouxe Deborah Vance (Jean Smart), uma veterana dos stand-ups e cara dos programas de vendas de leggings, e Ava Daniels (Hannah Einbinder) uma jovem roteirista cômica, cancelada no Twitter. E foi entre esse morde e assopra de personalidades que Hacks se concretizou uma das melhores comédias da década, falando sobre mulheres, trabalho, dinheiro, sacrifício e amizade. Se o primeiro ano tem intenção de escancarar a indústria, sua sucessora faz um trabalho mais introspectivo, mostrando as percepções de Deborah sobre o mundo.

As perspectivas da segunda temporada são consequência da primeira. Isso porque os acontecimentos de sua estreia fazem com que ele seja finalizado com Ava expondo os segredos de Deborah para produtores de um programa televisivo. Quando a bomba da traição estoura, os sentimentos de ambas protagonistas passam a caminhar em uma corda bamba, que envolve o espectador em teorias para a sequência.

Toda a atmosfera de tensão criada é dominada pelo trio de criadores e roteiristas, Lucia Aniello, Paul W. Downs e Jen Statsky, que no lugar de minar o próprio enredo, utilizam do plot para maximizar a narrativa de Hacks, proporcionando que novas camadas fossem criadas e exploradas ao longo da temporada. E é a exata energia da parceria entre Ava e Deborah que eleva a potência dos episódios. O relacionamento das duas é incrivelmente bem construído em um jogo passivo-agressivo em que Deborah faz com que Ava coma o pão que o diabo amassou, mas ao mesmo tempo a loira é capaz de entrar numa caçamba de lixo para ajudar sua parceira de roteiros. 

A divisão de votos entre as atrizes coadjuvantes de Abbott Elementary e Ted Lasso podem beneficiar que o Emmy vá para as mãos de Hannah Einbinder (Foto: HBO Max)

Fora dos cassinos de Vegas, a produção coloca a dupla na melhor road trip do ano. Começando em um carro e depois partindo em um ônibus, indo a um cruzeiro de lésbicas e também passando em uma feira estadual. Para além das piadas sobre o marido ter fugido com a irmã, é possível acompanhar Deborah mergulhando na importância e significado da própria carreira. É assim que a consciência da produção vem à tona. Hacks é inteligente a seu próprio respeito, mergulhando nas entranhas de Vance e transformando no novo material mais confessional a ser apresentado pela comediante na estrada. 

Essa mistura de ambientes revela um ganho de autoconfiança na produção da obra. Havia as vitórias de Melhor Roteiro e Melhor Direção em Comédia massageado o ego? Bom, se isso influencia ou não, não há como dizer ao certo, mas a edição sem as amarras da estrutura organizada dentro de Las Vegas fez com que a série saltasse de 15 para 17 nomeações nesta edição do Emmy Awards.

O hype de Hacks deve beneficiar a campanha de Jean Smart na nomeação de Melhor Atriz Coadjuvante no Oscar por seu personagem em Babylon, novo filme de Damien Chazelle (Foto: HBO Max)

Para uma série de Comédia ser completa, ela precisa que seus protagonistas cativem o público e seus secundários se destaquem e tragam mais substrato para a história, o que acontece em sincronia com todo o crew de Hacks. Enquanto o eixo central do programa está viajando com o novo show, o elenco de apoio consegue trazer destaque para cada subtrama, mesmo com histórias que a primeiro momento podem soar tangenciais aos acontecimentos base.

O sentimento de introspecção que paira nessa temporada se estende ao resto do elenco, que têm sua dinâmica melhor trabalhada. É o caso de Jimmy (Paul W. Downs) e Kayla (Meg Stalter). A evolução da dupla funciona como um enredo a parte da trama, mas seu seguimento respinga na principal. No entanto, quem ganha credibilidade é o executivo de negócios, Marcus (Carl Clemons-Hopkins), que também está passando pela consequência da temporada anterior, quebrando a rotina e sendo cobrado por suas escolhas. Ele desmorona após uma separação ruim e percebe o quanto prioriza as necessidades de Deborah e administrar seus negócios sobre qualquer um de seus próprios desejos. A fundo, o plot de Marcus é sobre o equilíbrio ser um ato, não um estado de ser. Quando o executivo finalmente se junta a Deborah na estrada, seu material quase imediatamente volta a caminhar, ilustrando a importância que a evolução pessoal de cada coadjuvante traz ao enredo final.

A tendência do Emmy em premiar produções novas pode fazer com que Melhor Atriz e Melhor Roteiro vão para Abbott Elementary (Foto: HBO Max)

Em Trust the Process, Laurie Metcalf dá as caras já pronta para levar a estatueta de Melhor Atriz Convidada. Sua participação como Weed, uma gerente de turnê, é esplêndida ao ponto de ser o destaque da já citada categoria do Emmy. Categoria essa dominada por Hacks com nomeação para outras três atrizes: Kaitlin Olson, Harriet Sansom Harris e Jane Adams.

O apogeu da série fica a cargo de The Captain’s Wife. É aqui que a série prova ser gay culture não apenas por ter personagens gays em seu elenco, mas também pela pertinência em trazer o assunto. Desde seu piloto, a produção já deixava claro seu desejo de abraçar a população LGBTQIA+, porém no quarto episódio, o assunto é trazido para o primeiro plano. A conversa sobre sexualidade – bissexualidade, principalmente – é conduzida numa performance intimista que traz humor em seus elementos sem desviar da seriedade do assunto. É a partir daqui que a relação entre espectador e Vance se torna confidencial, e no ponto que o stand-up dela desanda em caretice, você se contorce de vergonha alheia, mas está pronto para defendê-la.

Esse ano a série apostou em submeter episódios diferentes nas categorias de Direção e Roteiro (Foto: HBO Max)

Após a segunda temporada verdadeiramente engrenar em seu quarto episódio, é Retired que prova a magnanimidade da produção. Entre seus malabares de acontecimentos, Ava e Deborah são colocadas em um capítulo dedicado à diversão e ao tempo livre. Ao mesmo tempo que mostraram uma faceta mais descontraída das personagens, também se aprofundaram mais no passado de Deborah e o que ela teve que ceder para se aproximar de ser uma lenda viva da comédia. Se ainda restava alguma dúvida sobre a série, aqui é dada a sua cartada final. Nada demais acontece para o avanço da história e mesmo assim o episódio é memorável, se sustentando nos diálogos e nas atuações.

Cada nova cena da segunda temporada leva da obra descasca Deborah mostrando a complexidade que envolve a criação da personagem. Ela lida com situações que a fazem questionar se tudo valeu a pena mesmo, se o sucesso tem data de validade e se fez escolhas certas na vida. Hacks passeia entre o engraçado e o deprimente, explorando Deborah reinterpretar o mundo ao seu redor. Vemos protagonista e roteiro entrelaçados em suas partes em uma dinâmica matrioska – é a comédia dentro da comédia, dentro da tragédia, dentro da alegria, dentro da Arte.

Apesar do episódio oito ter terminado com cara de final de série, Hacks foi renovada para sua terceira temporada (Foto: HBO Max)

As figuras de Deborah Vance e Jean Smart são quase indisociavéis e te convencem que a atriz é o maior ser humano vivo interpretando uma velha – provavelmente de direita. O espectador não é deixado de fora do intimismo da personagem. A temporada acompanha uma Deborah melancólica que progressivamente vai se encontrando completa dentro do humor. Somos acompanhados por flashes que carimbam as vivências dessa mulher que não se amedronta em deixar claro que seu arrependimento é não viver uma vida em que sua única preocupação seja a comédia, sem a distração da família, amigos e casamentos. Não é à toa que a atriz é favorita para o prêmio de Melhor Atriz em Comédia, a mesma que levou no ano anterior, mas o azarão da categoria pode ser a dinâmica da própria disputa, que não repete uma vencedora desde 2017.

Hacks é genial e engenhosa do começo ao fim. A obra te deixa entre a gargalhada e o coração apertado pelo clima agridoce que envolve seus oito episódios. Enquanto Deborah e Ava trabalham para aprimorar seu novo material, o próprio roteiro da série começa a ficar mais nítido. Tanto o ato quanto os insultos improvisados ​​são feitos de maneira mais natural, levando até mesmo o esquecimento de que você está assistindo uma série e não um documentário de estrada sobre a Jean Smart. Hacks não se preocupa em vender o stand-up de Deborah, ou até mesmo convencer que ela é a mais engraçada da geração. O show é sobre uma mulher percebendo quem ela é e sendo honesta com essa pessoa, quem quer que seja.

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