star-crossed: a feliz tragédia de Kacey Musgraves

As míseras duas indicações ao Grammy 2022 colocam o novo disco de Kacey Musgraves num lugar não tão reluzente quanto o de seu antecessor, mas para a história da artista, é uma obra perfeitamente acertada (Foto: Jasmine Safaeian)

Raquel Dutra

O brilho dourado da juventude, do amor e do sucesso era o que reluzia em Kacey Musgraves desde 2018. Em seu quarto disco, a artista country se aproximou do pop para louvar o auge de sua vida e oportunamente nomeou o momento de Golden Hour. Superando seu nicho e os tabus de seu gênero, a glória da paixão plena e da ascensão da carreira a levou aos lugares de mais prestígio da Música, onde ela superou todas as adversidades e se consagrou como a detentora do Álbum do Ano no Grammy 2019. Mas nos anos seguintes, acabou-se o que era doce. O seu relacionamento com o também cantor country Ruston Kelly chegou ao fim em 2020 e a opulência de seu auge tão aclamado havia se desfeito na volatilidade da Indústria da Música. E agora, Kacey? Perguntaram-se as palavras da própria compositora, que ao fim de sua festa em 2021, assumiu para o mundo, ansioso pelo sucessor de seu melhor disco, tudo o que poderia entregar naquele momento: a sua era desafortunada. 

A decisão não é uma surpresa para a artista que desde seus primeiros discos prefere perder pelo que é do que ganhar pelo que não é. Então, na mesma intensidade com que Kacey Musgraves se entregou à profundidade do amor, ela verdadeiramente encara o seu fim. Através de “uma tragédia moderna em três atos, a artista apresenta uma crônica linear para o seu casamento e divórcio, que toma sua forma teatral através das 15 músicas do disco lançado no dia 10 de setembro de 2021. A partir daquele dia, o azul celeste que propagava os raios de ouro na Música de Kacey foi sucedido pelo vermelho inflamado e um tanto intimidador de seu coração pulsante. O momento é de juntar os pedaços e processar o ponto baixo da vida que veio logo depois de seu pico mais alto. Agora, o momento se chama star-crossed.

A produção do álbum é assinada pela própria Kacey junto de Ian Fitchuk e Daniel Tashian, na mesma colaboração bem-sucedida de Golden Hour (Foto: UMG Recordings)

Deixe-me montar a cena”, Kacey inicia seu trabalho de direção emocional quando as cortinas de veludo vermelho de star-crossed são abertas através da primeira faixa do disco. Entre os arpejos dramáticos que nascem de uma harpa angelical e um violão de 12 cordas, ela suspira em cima de um grave harmonicamente áspero para apresentar o prólogo de sua narrativa: “Dois amantes rasgados no âmago/Eles acordaram do sonho perfeito/E então veio a escuridão”. Personagens em cena, ela corre com o roteiro, assina os papéis que precisam ser assinados e devolve os sobrenomes que precisam ser devolvidos, antes de completar seu primeiro ato que já entrega uma das melhores canções do disco.

Quando seus vocais se abrem com uma sustentação açucarada, Musgraves solta do fundo de seus pulmões a pergunta amarga de quem procura razão nas escolhas feitas pelo coração. “Voamos alto demais só para sermos queimados pelo Sol?”, indaga a protagonista de star-crossed à medida que a música se agrava com sua programação de percussão suavemente contundente. Ela continua a pedir clemência aos anjos através de seu coro e suplicar a isenção de culpa de seu antagonista. A conclusão? Cresce junto das guitarras que transformam o rumo da faixa, aparentemente – e apenas aparentemente – sobre uma tragédia amorosa. Tão paradoxalmente simples como o fim da canção, ela entende que a história chegou onde chegou porque seus personagens eram desafortunados”.

A canção-título que inaugura o disco, além de definir magistralmente o tom do trabalho, é só o primeiro exemplo da produção musical perfeita que pode ser encontrada em star-crossed. Mas o seu principal triunfo, na verdade, está em sua capacidade de atender plenamente às expectativas da grandiosa cena de abertura do álbum, que curiosamente contraria o que era esperado para a sua narrativa. Aqui, não existem traições cinematográficas, enormes segredos revelados ou grandes decepções. Surpreendentemente objetiva, Kacey Musgraves ‘apenas’ analisa as complexas tramas que compõem uma relação amorosa entre um homem e uma mulher, desde as influenciadas pelos padrões sociais de gênero até as expectativas individuais de cada um para com o outro, tratando, assim, do melodrama mais natural da vida.

É por isso que, depois que o clímax de star-crossed se acalma no coro angelical que encerra a faixa-título, ela nos orienta diretamente para “voltar ao começo”. A narrativa, então, tem seu início oficial com good wife, que coloca Kacey Musgraves para interpretar quem ela era no início do casamento: uma jovem mulher intimidada pelos ideais do matrimônio e os padrões que envolvem o ato de ser uma boa esposa. Numa cantoria meio sufocada, ela desenvolve um fluxo de consciência em cima das expectativas, e ensaia concluir que ser disposta, compreensiva, protetora, divertida, forte e apoiadora não seria um fardo tão grande se existisse o mesmo esforço do outro lado.

Mas ela está tão perdida que não vê como problema manter a parceria da relação sozinha, o que, por fim, rasga a sua maior vulnerabilidade diante de nós. “E eu não quero ficar sozinha”, Kacey desabafa em mais um clímax musical, com a coragem de verbalizar a insegurança mais recorrente e escondida de uma geração de mulheres treinada para subverter padrões de fragilidade e almejar a independência plena. É que ao mesmo tempo, existe a fraqueza que acomete todo ser humano dotado de emoção: o medo da solidão. Assim, imersa nas expectativas externas, motivações sinceras e necessidades incompreendidas, Musgraves aprofunda o significado do refrão, que com a ajuda da instrumentação mais próxima de um rock alternativo, adquire um significado muito mais delicado e forte quando ela suplica pela última vez que só quer “ser uma boa esposa”.

“Porque ser adulto é meio merda” (Foto: Jasmine Safaeian)

Assim, Kacey chega ao dream pop suave de cherry blossom pronta para confessar seu sentimento contrastante de fragilidade e florescimento diante do amor. Mas conforme o drama de star-crossed processa o momento presente, mais a protagonista dele sente falta do passado, quando a vida acontecia fora das grandes responsabilidades que ela assumiu em sua maturidade. Aí está, então, o que gera o terceiro momento principal do disco e sustenta ainda mais o seu primeiro ato: simple times.

Entre os seus sentimentos tão complexos, Musgraves sente falta dos tempos mais simples. E embora suas palavras sejam sutis ao retratar o casamento como principal sustentação dessa sobrecarga emocional, suas simbologias não poderiam ser mais representativas no vídeo da canção. Ao figurar com vestes juvenis ao lado de um grupo de amigas que passeia sem compromisso por um shopping durante uma tarde qualquer, a artista referencia a adolescência como esse período de liberdade e inocência. O clímax da vez é quando ela destrói uma loja de vestidos de noiva junto de seu clã, levando a sutileza crítica da canção junto com o vidro das vitrines imaculadas.

A essa altura da história, Kacey já sabe que a razão da sua tragédia não é falta de amor. Na verdade, sentimento é o que mais existe ali, e na dificuldade de lidar concretamente com tanta subjetividade, ela fantasia uma forma de salvar o seu relacionamento em if this was a movie... Adicionando uma camada de metalinguagem à sua própria dramatização, ela imagina como seria se estivesse em um daqueles romances hollywoodianos que nos fazem acreditar que o amor é tudo o que é preciso para sustentar o relacionamento e salvar um casal em crise. Mas bom, como bem nota a protagonista de star-crossed no encerramento de seu primeiro ato, isso não é um filme.

A canção, mergulhada numa melodia noturna e envolta em elementos eletrônicos vintage, é também o que finaliza a definição de star-crossed como o disco mais pop da carreira de Musgraves até o momento. A familiaridade que a artista tem com o gênero é o que expandiu o alcance do seu timbre doce e acessível, que ninguém acreditava que poderia se encaixar na rusticidade elevada do country. Mas acontece que Kacey não é nada rústica, como comprova star-crossed. Envolto numa estética refinadamente densa, criativa e mantendo sua concepção artística do início ao fim, o ponto alto do disco é sua identidade consistente, que define cada verso, cada acorde, cada tom e cada melodia. 

E para Musgraves, que não cometeu nenhum disco mal executado desde sua estreia em 2013 e que, desde então, já flertou com o rock, mergulhou em seu gênero de raiz e se mesclou ao som mais comercial da indústria, nada é impossível. Mestra em se adaptar e extrair o melhor que pode de suas eras, Kacey não deixou o potencial narrativo e estético de star-crossed ser desperdiçado, transformando-o numa obra que existe entre um álbum visual e um curta-metragem. Na direção de Bardia Zeinali, ela estrela a sua própria história, concretizando toda a sua potencialidade artística.

No elenco do filme, Kacey conta com a companhia de Victoria Pedretti, Princess Nokia, Megan Stalter, Symone e Eugene Levy (Foto: Jasmine Safaeian)

Mas para a artista que transforma tudo em possibilidade, os singles do disco foram um empecilho. Como o primeiro material de divulgação de star-crossed, lançado em 27 de agosto de 2021, justified não atendeu às expectativas e não entregou o impacto prometido para o primeiro sinal da esperada nova era de Kacey Musgraves. Dentro da tracklist completa do disco, a canção se encaixa perfeitamente como a forma de abrir a segunda parte da história, já com uma reflexão íntima sobre recuperação e perdão e trazendo a primeira manifestação musical mais country do quinto álbum da artista. Como faixa isolada, no entanto, sua lírica perdeu boa parte de sua força e sentido, longe de atingir a mesma sensação provocada por qualquer uma das 5 primeiras faixas, todas mantidas em segredo até o lançamento de star-crossed

O mesmo acontece com a segunda faixa de divulgação do disco, promovida de uma maneira um pouco diferente depois do lançamento, já em janeiro de 2022. A balada de camera roll foi a escolha para a campanha de Kacey no Grammy, onde a artista encontrou mais um obstáculo para star-crossed. Pelo desempenho de seu primeiro single e de seu lançamento, era de se imaginar que o novo disco não teria o mesmo alcance e impacto de Golden Hour. E com a referência firme do pop, era difícil competir com as obras mais fechadas no gênero e com seus adversários, inflexíveis quanto às obras country que enfrentariam no prêmio mais importante da Música ao lado do peso do nome de Musgraves.

Assim, Musgraves não sabia onde se encaixar na temporada de 2022. Impedida de competir pelo título de Melhor Álbum Country, onde marcava presença desde o seu segundo disco, por decisão da Academia de Gravação diante da identidade pop marcante do disco, ela teve de arriscar as abarrotadas categorias gerais e do gênero secundário, onde, infelizmente, a riqueza de star-crossed não encontrou seu lugar. A artista se manifestou, apontando a sua ausência dentre os nomeados do gênero como um prejuízo para os avenços conquistados para as mulheres no country, e alcançou apenas duas nomeações por cameral roll, como Melhor Performance Country Solo e Melhor Canção Country

Apesar de ser o centro das controvérsias e o vetor da desconsideração pelo trabalho de Musgraves, o segundo ato de star-crossed é, como todo o resto do disco, repleto de joias. Na área dominada pelas letras mais reflexivas da tracklist, angel é uma dolorida – e portanto, perfeita – balada country pop, assim como easier said, que se destaca na seleção das faixas confessionais do álbum. No entanto, para perturbar ainda mais a mente dos que tentam colocar a obra de Kacey e uma única caixinha e delinear suas críticas, breadwinner ascende com uma batida soft pop que tira sarro do frágil ego masculino.

Lá atrás, Kacey desabafou que a cura não acontece de forma linear, mas depois da 10ª faixa de star-crossed, ela já tem o caminho de recuperação muito bem definido. De volta ao controle consciente do retrato da história, ela parece deixar um conselho através da melodia branda de hookup scene, dizendo que nem tudo de um cenário apaixonado é o que parece ser. Diferente das tendências autodestrutivas do início em good wife, agora ela reconhece que entregar tudo de melhor que tem em si mesma para um contexto que apenas te esvazia e não te preenche não é a forma correta de se viver um amor, muito menos construir um relacionamento.

Agora apreciando a experiência de sua personagem para além de refletir sobre suas dores, Musgraves invoca a força natural de seu gênero original para encher keep lookin’ up de uma sabedoria segura. “Eu vi a verdade se transformar em mentira/E o verdadeiro amor se transformar em dor”, ela relembra seu cenário inicial para deixar um conselho a partir de sua vivência, no melhor jeito country de ser e em mais um auge musical de star-crossed: “Continue procurando/Não deixe o mundo te derrubar/Mantenha sua cabeça nas nuvens/E seus pés no chão/Continue procurando”.

E ela procura, até encontrar sua luz própria e descobrir que pode sobreviver por si mesma. Explodindo sua recuperação em formações mais eletrônicas, ela cede a alguns clichês para louvar seu bem-estar em there is a light e a sua experiência em what doesn’t kill me. A dimensão sonora, no entanto, tem a liberdade de apresentar novidades experimentais nos últimos minutos de star-crossed, através de percussões acústicas, instrumentos de sopro, e coros que compreendem desde uma forma mais orgânica até os mais sintéticos, algo que só confirma o sucesso da produção premiada de Kacey Musgraves ao lado de Ian Fitchuk e Daniel Tashian, prenunciada logo no início do disco.

“E se sua tragédia mais sombria se tornasse seu maior triunfo?” (Foto: Jasmine Safaeian)

A dor do fim e o prazer do recomeço se mostram os elementos paradoxalmente fundadores de star-crossed. E nada melhor para alinhá-los do que uma canção clássica que expressa perfeitamente os ônus e os bônus de estar à flor da pele da vida. Então, para o encerramento triunfal de sua obra, Kacey Musgraves aproxima sua história dos romances de novelas mexicanas e aos melodramas passionais latinoamericanos, emprestando as palavras de Violeta Parra na canção mais popular do folclore chileno, que se popularizou na voz dos artistas mais importantes da história da América Latina. gracias a la vida, agradece a artista ao fim da sua história.

“Obrigada à vida, que me tem dado tanto
Isso me deu risadas e me fez chorar
Então, eu distingo felicidade de tristeza
Os dois materiais que compõem minha música
E a música sua que é a mesma música
E a música de todos é minha própria música
Obrigada à vida”

A manifestação de star-crossed não acontece plenamente no ouvinte que está preso ao que Kacey Musgraves foi. Muito pelo contrário, a obra existe justamente para compreender mais uma face intensa de suas experiências como artista. E tamanha é a sua consciência sentimental, artística e estética, que também influencia a forma como ela encara seu tema principal. Se um dia ela criou a partir do cenário mais apaixonante da vida, hoje ela se desenvolve no contexto mais hostil que nela se pode gerar. Mas não existe dor incurável para o coração corajoso que nunca foge do amor. Não existe infortúnio que não se converta em sorte, e disso, Kacey Musgraves sabe bem.

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