O prazer sombrio do Roxy Music

Estileira completamente foda: imagem do gatefold original de For Your Pleasure (Reprodução)

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O grupo britânico Roxy Music quiçá seja a encarnação máxima do glam rock. David Bowie pode ter surgido antes, mas a trupe comandada pelo vocalista Bryan Ferry elevou os arranjos coloridos e roupas chavosas do estilo a outro patamar na década de setenta. Interessante notar, porém, que sua obra-prima utiliza dessa estética sob perspectiva sombria, às vezes beirando o desconfortável.

For Your Pleasure, segundo disco da banda, acaba de completar 45 anos. O início com “Do the Strand” já escancara a identidade glam: piano e saxofone, instrumentos fora do eixo tradicional do rock, são proeminentes, junto da batida pulsante. O ouvinte é intimado a se mexer, e tal convite é reforçado pelas letras, conduzidas pela abordagem teatral de Ferry. “A danceable solution/ To teenage revolution“, diz ele. Referências a figuras históricas, obras de arte e elementos da natureza amarram o tom universal da canção – qualquer um tem o direito de se divertir mandando aquele passinho estranho.

Engana-se, porém, quem imagina que o restante do repertório segue a mesma toada. A introdução de “Beauty Queen” invoca uma aura fantasmagórica e nem os acordes serenos nos versos conseguem esconder a melancolia da composição. Trata-se de uma canção de amor madura, onde se reconhece a impossibilidade da relação ao mesmo passo em que exterioriza respeito pela antiga musa. Romantismo barroco é uma boa definição para a construção lírica:

One thing we share
Is an ideal of beauty
Treasure so rare
That even devils might care

Your swimming pool eyes
In sea breezes they flutter
The coconut tears
Heavy-lidded they shed
Swaying palms at your feet
You’re the pride of your street

Este é o último álbum do Roxy Music a contar com o tecladista Brian Eno, e sua presença é essencial para o clima lúgubre aqui. A linha intermitente de teclado na excelente “In Every Dream Home a Heartache” casa de maneira cirúrgica com a narrativa de Ferry, declaração amorosa à uma boneca inflável. A tensão calcada em instrumentação esquelética já adiantava traços da sonoridade do Joy Division e foi experimentada à exaustão na carreira solo de Eno, seja como instrumentista (foi pioneiro da música ambiente) ou produtor (onde auxiliou David Bowie em discos seminais). Post-punk antes do punk.

É interessante notar como a banda dialogava com inspirações contemporâneas. O groove hipnótico do Can, nome máximo do krautrock, é traduzido em lente noir: as repetições lisérgicas agora servem como fundo para um retrato incômodo e devidamente roteirizado, distante do êxtase livre e infinito das jams do conjunto alemão. A impressão que fica é que somos colocados dentro de uma cena de perseguição policial, cujo alvo é o maníaco sexual dos versos.

A capa do álbum: sexy sem ser vulgar

Melhor é observar que o grupo aborda a questão do prazer carnal de forma humanizada, mas sem ocultar facetas tabu. Isso acontece até mesmo na capa, que traz a artista francesa Amanda Lear em trajes de ar fetichista (e que olhar de superioridade o dela!) enquanto Bryan Ferry fica em posição quase voyeur no lado oposto. Lear e Ferry eram namorados na época, e isso talvez explique o fato da foto ser a mais sutil dentre as que estamparam os álbuns do período considerado clássico do Roxy Music (até Siren, de 1975) – todas retratos de mulheres, enquadradas como musas místicas.

Na faixa-título, o verso “Part false, part true/ Like anything” é certeiro: afinal, até onde as sensações de prazer dependem de idealizações egoístas? Em que ponto isso deixa de ser erótico e se transforma em algo doentio? São indagações que o LP deixa em aberto para o ouvinte, sem imposição de julgamentos moralistas ou exaltação pervertida. Eles estão apenas interessados em observar as nuances dos indivíduos, como bem reflete “Strictly Confidential”:

Tongue tied the thread of conversation
Weighing the words one tries to use
Nevertheless communication
This is the gift you must not lose
Hauling me always are the voices
(Tell us are you ready now?)
Sometimes I wonder if they’re real
(We’re ready to receive you now)
Or is it my own imagination?
(Have you any more to say?)
Guilt is a wound that’s hard to heal
(It’s a cross you have to bear)
Could it be evil thoughts become me
(Tell us what you’re thinking now)
Some things are better left unsaid

Embora não chegue perto do tamanho de The Dark Side of the Moon, lançado no mesmo ano, For Your Pleasure está entre os títulos mais influentes do rock inglês setentista. Morrissey, eterno líder dos Smiths, já chegou a declarar que este era o único verdadeiro grande disco britânico do qual se lembrava. David Byrne tomou emprestado não apenas o estilo vocal teatral de Ferry, como escolheu Brian Eno para produzir Remain In Light, a obra-prima do Talking Heads. Fora o impacto direto no glam, gêneros como synthpop e post-punk devem muito ao álbum.

O Roxy Music teria mais sucesso comercial com álbuns seguintes, assim como Bryan Ferry e Brian Eno construíram carreiras solo elogiadas. Mas nada atingiu o mesmo pico que For Your Pleasure, cuja versão para o mote “sexo, drogas & rock ‘n’ roll” permanece entre as mais peculiares já postas em disco. Um prazer, enfim.

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