A liberdade como sacrifício em O Cão que Não Se Cala

Cena do filme O cão que não se cala. Na foto em preto e branco, há um homem branco com o braço direito levantado, segurando-se em uma fina barra de ferro acima de sua cabeça. Ele possui cabelos curtos e lisos de cor preta, barba de cor preta, e veste uma blusa de cor cinza. Ele está dentro da parte de carga de um pequeno caminhão, coberto por uma lona de cor cinza clara. Atrás dele, há uma mulher branca olhando desconfiada, cuja roupa constitui-se em uma blusa com listras cinzas e uma macacão cinza. Mais ao fundo, há mais dois homens brancos, onde o primeiro, à esquerda, veste uma jaqueta de cor preta e possui cabelo preto, e o segundo, à direita, veste também uma jaqueta preta e utiliza um boné de cor branca.
Compondo a seção Perspectiva Internacional da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, O Cão que Não Se Cala é um retrato fantástico de uma vida comum (Foto: Oh my Gomez)

Bruno Andrade

Pense naquele famoso discurso de paraninfo intitulado Isto é água, proferido por David Foster Wallace aos formandos do Kenyon College em 2005. Nele, lemos que a “verdadeira liberdade requer atenção, consciência, disciplina, esforço e a capacidade de se importar genuinamente com os outros”. Pronto, esse pequeno trecho pode muito bem apresentar a ideia por trás de O Cão que Não Se Cala (El Perro que No Calla, no título original), filme argentino exibido na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, dirigido e co-roteirizado por Ana Katz.

Ao longo dos 73 minutos dessa comédia dramática, acompanhamos a vida de Sebastian (Daniel Katz), um homem comum que dedica sua vida ao cão fiel. Ele trabalha em diversos empregos temporários e tenta adequar-se à mudança constante da vida adulta, em paralelo aos problemas impostos por uma Argentina em crise. À moda de Tolstói, Sebas (como também é chamado) resolve as adversidades com delicadeza e empatia, mas não se sente pertencente ao mundo, vivendo cabisbaixo como um cão sem dono, embora nunca reclame ou apareça chorando. No filme, há um equilíbrio entre o absurdo e o drama empático.

Cena do filme O cão que não se cala. Na foto em preto e branco, há um homem conversando com uma mulher em um escritório. Os dois estão de pé e, cada um está utilizando um cilindro transparente na cabeça, e ambos são pessoas brancas. O rapaz possui cabelos curtos de cor preta, e barba de cor preta. Ele veste uma camisa cinza escura. A mulher possui cabelos de cor cinza, e veste uma blusa também de cor cinza. Ela está com sua mão esquerda levantada.
O Cão que Não Se Cala ganhou o Big Screen Award no Festival de Roterdã, e também foi apresentado no Festival de Cinema de Sundance (Foto: Oh my Gomez)

O protagonista — um homem sem qualidades — caminha por terrenos distintos, compondo sua visão fragmentada do mundo. Ele nos é apresentado como designer gráfico de uma empresa, mas prefere ser demitido a deixar de levar o cão ao trabalho, em decorrência de sua tentativa de evitar o incômodo dos vizinhos, visto que, ao sair de casa, o cão não para de chorar (essa é a cena inicial do filme, e também a que justifica seu título). Depois, inicia um emprego em uma cooperativa de alimentos naturais, confrontando suas concepções nesse ambiente singular e humilde, como na sequência em que ensina os demais a utilizarem um smartphone. Transforma-se, ainda, em professor universitário e, anos depois, retorna a empresa em que foi designer para ser uma espécie de atendente, visto que agora é pai e suas escolhas tornaram-se escassas.

Uma das metáforas que não passam batido em O Cão que Não Se Cala é o da chegada de um misterioso cometa. Ao colidir com a Terra, o corpo celeste torna o ar tóxico — parece familiar de alguma forma? —, obrigando as pessoas a utilizarem um cilindro para respirar. Por uma razão estranha, somente uma determinada altura da atmosfera é comprometida, e a utilização do aparelho permite que os indivíduos caminhem de forma ereta. Porém, mesmo com a situação de calamidade, o apetrecho permanece caro e inacessível a muitos, o que obriga os mais pobres a andarem agachados. Após ter seu cilindro furtado, Sebastian compõe o grupo dos que se locomovem sob essas circunstâncias, mas não parece se incomodar.

Cena do filme O cão que não se cala. Na foto em preto e branco, o personagem Sebastian está sentado em uma praia com os dois braços apoiados para trás, ao lado de um cachorro que está sentado ao seu lado. Os dois estão olhando para a frente. Sebastian é interpretado por um homem branco, e veste camiseta branca e shorts cinza. Ele possui cabelos longos e lisos de cor preta e barba preta. O cão possui os pêlos de cor cinza e branca, e está com as duas orelhas levantadas.
Daniel Katz, ator que interpreta o protagonista Sebastian, é irmão de Ana Katz, diretora do longa-metragem (Foto: Oh my Gomez)

Após a superação da condição pandêmica, Sebas não está mais casado — algo que fica subentendido como uma consequência dos desgastes ocasionados durante o período atípico. Então, através das pausas silenciosas do filme, somos jogados a sensação de que a vida é composta por pequenos fragmentos intensos, nos quais a beleza consiste justamente na efemeridade dessas parcelas visuais. De certa forma, a aposta da diretora Ana Katz são as reflexões, e o que está em voga é essa visão existencialista, acompanhada da consciência de que a imprevisibilidade da vida é o que a torna especial. 

A composição em preto e branco do filme sinaliza para uma simplicidade que foi deixada de lado em troca de um mundo complexo e interconectado. O saudosismo dessa época menos complicada, na qual a urgência não havia dominado o todo, diz respeito à infância e à juventude, observadas no filme como fases infelizmente passageiras. Devido a brevidade da existência — sinalizadas no longa através dos cortes em eclipse, que ilustram os saltos temporais na vida do protagonista —, a liberdade verdadeira materializa-se como algo difícil, pois não tem a ver exclusivamente com o que é feito diante de uma situação, mas sobre como os demais a recebem por você. Trata-se de entender que o livre-arbítrio é sobre os outros, e, sabendo disso, decidir seguir ou abdicar. No fim, O Cão que Não Se Cala é uma ode aos recomeços.

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