30 anos de Loveless, o ruído total de My Bloody Valentine

Capa do álbum Loveless do grupo My Bloody valentine. Na imagem, há o captador de uma guitarra coberto por uma camada nebulosa de cor rosa. Toda a imagem possui um filtro de cor rosa. Na parte inferior esquerda, está escrito my bloody valentine também em fonte de cor rosa.
Loveless, segundo álbum de My Bloody Valentine, completou 30 anos em 4 de novembro de 2021 (Foto: MBV Records/Domino Recording)

Bruno Andrade

Músicos são, geralmente, indivíduos que se alimentam da matéria sonora presente em seu tempo, buscando criar algo totalmente novo; por essa razão, a Música está sempre morrendo e renascendo. Quando tentamos classificá-la, surgem descrições que tendem a separá-la do todo, numa tentativa de evidenciar o que a define como única e distinguível àquela sociedade. Mas como classificar o ruído? Alguns podem chamar de shoegaze, gênero no qual My Bloody Valentine carrega o maior prestígio, e cujo hipnótico Loveless, segundo álbum de estúdio do grupo, completou 30 anos no começo de novembro.

Se você reparar bem, há sempre um som de V percorrendo seus ouvidos; de forma paradoxal, esse tinido cria a sensação de que não há silêncio absoluto. Na Acústica, ramo da Física que estuda os sons, de fato não há silêncio, pois este só é realmente possível no vácuo do universo. Mas, em Loveless, a estranheza é quase essencial. O que fez de My Bloody Valentine uma banda única é sua abordagem de som completamente inovadora, composta por uma textura melancólica, ruidosa, e inexplicavelmente aconchegante — talvez um resultado natural da divisão vocal entre Bilinda Butcher e Kevin Shields, em um interesse mútuo de amplificar esse zumbido dos nossos ouvidos. 

Brilhantemente exposta nas 11 canções que compõem o disco, essa nova sonoridade abriu as portas para álbuns como Siamese Dream (1993) e Mellon Collie and the Infinite Sadness (1995), do Smashing Pumpkins, cuja reverência de Billy Corgan aos integrantes de Valentine soou tão natural que, numa possível comparação a Gish (álbum de 1991 e estreia dos Pumpkins), temos a sensação de que tudo estava bem ali, à distância de uma pequena regulagem de pedais e amplificadores.

Foto em preto e branco dos integrantes da banda My Bloody Valentine. Na fotografia, os quatro estão sentados em um sofá preto com listras brancas, dentro de um estúdio repleto de instrumentos. Agora, da esquerda para a direita. Kevin Shields, um homem branco, que possui cabelos lisos de cor preta a altura do ombro e veste calça de cor cinza e blusa de cor preta. Ele está com uma guitarra branca sobre as pernas; Bilinda Butcher, uma mulher branca com cabelos lisos de cor preta, presos com uma trança. Ela veste blusa preta e camiseta branca. Colm Ó Cíosóig, um homem branco de cabelos lisos de cor preta. Ele está com as pernas esticadas e os dois braços cruzados, vestindo uma calça jeans de cor cinza e uma camiseta de cor preta. E, por fim, Debbie Googe, sentada com a perna direta cruzada sobre a perna esquerda, com a cabeça apoiada na mão esquerda. Ela é uma mulher branca, possui cabelos lisos de cor preta bem curtos, veste camiseta de cor preta, calça de cor preta e sapatos de cor preta.
Os três álbuns de estúdio de My Bloody Valentine só chegaram as plataformas de streaming em março deste ano, após o grupo assinar com a gravadora Domino (Foto: MBV Records/Domino Recording)

O estilo shoegaze tem sua origem no Reino Unido, mas encontra sua primeira grande repercussão no álbum de estreia de My Bloody Valentine, Isn’t Anything (1988). Estima-se que o gênero tenha surgido através da forma tímida de tocar em público, pouco se importando com a performance, olhando para os pedais e analisando os próprios sapatos pela timidez (ou arrogância) — daí o título ‘shoegaze’, algo parecido com “contemplador de sapatos”. Todavia, como qualquer movimento ou gênero musical, reduzi-lo a um simples trocadilho pode parecer raso.

Musicalmente, o shoegaze é uma espécie de caos sonoro, marcado por camadas pesadas de instrumentos, através da sobreposição de guitarras distorcidas e baterias que abusam dos pratos de ataque. Esses diversos revestimentos musicais visam desenvolver uma instrumentalização harmônica, na qual torna-se difícil distinguir cada item. Esse é um dos estilos musicais mais determinantes para o surgimento do dream pop e do indie rock, e a capa de Loveless representa essa sensação de caos. Nela, observamos uma guitarra coberta por uma camada fosca que dificulta a nossa visão — de forma mais ou menos igual, transmite o que sentimos ao escutar o disco. 

O som pesado é, ao mesmo tempo, relaxante e profundo. No limiar entre o barulho confuso e a sonoridade habitual, o álbum apresenta um tipo de desafio ao ouvinte, no qual precisamos aceitar a intimidação que é atentar-se aos ruídos, como se os vocais fossem deixados de lado e servissem de instrumentos para todo o resto. Na canção Sometimes — que inclusive faz parte da trilha sonora de Lost in Translation (2003), de Sofia Coppola — ouvimos uma guitarra base que se mantém durante toda a canção, nos guiando em uma viagem totalmente íntima, cuja voz, bem lá no fundo, parece ser a mensagem que precisamos decifrar. Enquanto When You Sleep parece a trilha sonora de um sonho, Blown a Wish nos mantém presos em suas repetições psicodélicas.

O grupo surgiu em Dublin, no ano de 1984, ainda como uma dupla composta por Kevin Shields e o baterista Colm Ó Cíosóig, cujo nome do projeto era The Complex. Posteriormente, os dois integrantes se mudaram para Berlim, lugar onde lançaram seu primeiro EP, This Is Your Bloody Valentine (1985), já sob autoria de My Bloody Valentine — nome tirado de um filme alternativo de 1981. Sem qualquer sucesso, o pequeno compilado foi desanimador, e ambos os integrantes mudaram-se no mesmo ano, desta vez para a Inglaterra.

Com a entrada da baixista Debbie Googe, gravaram outro EP, Geek! (1985), dessa vez deixando em evidência a influência de The Jesus and Mary Chain, mas ainda marcados pelo punk que dominava o cenário musical. Assim, de forma gradual, o formato pelo qual a banda seria reconhecida começava a dar as caras, tomando sua forma completa quando Bilinda Butcher ingressou no grupo, em 1987, passando a dividir guitarra, vozes e o protagonismo com Shields.

Foto da banda My Bloody Valentine. Na fotografia, há um fundo de cor azul e, da esquerda para a direita, estão fotografados da cintura para cima Bilinda Butcher, Kevin Shields, Debbie Googe e Colm Ó Cíosóig. Todas são pessoas brancas. Bilinda está com a mão direita passando pelo cabelo. Seu cabelo é de cor preta, e ela veste uma blusa de cor preta. Shields veste uma blusa de cor preta e uma camiseta azul; ele possui um cabelo liso bagunçado. Debbie Googe veste uma blusa de cor preta. Ela possui olhos de cor azul e cabelo liso preto, com a franja cobrindo metade de seu olho direito. Colm Ó Cíosóig veste um suéter de cor vermelha, com detalhes em cor preta, branca e amarela. Ele possui cabelos lisos castanhos, com a franja cobrindo toda a testa.
Da esquerda para a direita estão Bilinda Butcher, Kevin Shields, Debbie Googe e Colm Ó Cíosóig (Foto: MBV Records/Domino Recording)

A complexidade na gravação de Loveless se dava em detrimento da sonoridade específica que Shields queria retirar. Segundo ele, o álbum demorou para ficar pronto porque “até o último minuto, achávamos que terminaríamos tudo em mais dois meses. Passamos dois anos achando que terminaríamos tudo em mais dois meses”. Essa fórmula encontrada pelo grupo evidencia a ignorância daqueles que acreditam ser apenas barulho. Invariavelmente, o disco ou te prende imediatamente ou te afasta assustado, mas há algo que soa uniforme. Para chegar nesse resultado de novo, o My Bloody Valentine só lançou outro álbum inédito vinte e dois anos depois, intitulado m b v (2013), e igualmente genial.

Mas, no curso da História musical, nada poderia ter calculado o surgimento de um gênero que, grosso modo, colocaria a voz em segundo plano. Afinal, poucos anos antes do lançamento de Loveless — ou até mesmo antes do surgimento do grupo —, a Música pop era o típico rock de arena, com sua ode aos grandes festivais e apreço genuíno das performances vocais de seus representantes. Contudo, uma característica peculiar das gerações é que elas sempre estão negando a anterior. 

Inevitavelmente, Walter Benjamin estava certo quando escreveu em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1935) que a obra reprodutível extinguiria a “aura” — mas isso não era uma lamentação. Seu objetivo era manifestar uma desconfiança em relação ao discurso elitista, que evocava a “alta cultura” para distinguir as culturas de massa, transformando-as em itens de segunda categoria. Para Benjamin, esse culto da “arte pela arte” estava se transformando em idolatria fascista. Em outras palavras, a tecnologia na Música é uma ferramenta que possibilitou driblar os ditos ‘fiscais da cultura’, propondo, de forma silenciosa, ideias revolucionárias, como My Bloody Valentine propôs com Loveless. Mesmo que os grandes conglomerados adaptem-se ao consumo de massa, é interessante visualizar esse pequeno triunfo. 

Para muitos céticos, o advento da gravação digital foi uma catástrofe irreparável. Mesmo que seja particularmente estranho pensar na Música antes da era do streaming e até mesmo do CD, havia uma enorme cultura que cultivava o som ‘ao vivo’ — ou ‘orgânico’, se preferir. Isso pode ser visto na concepção de óperas inteiras, mas, não muito longe, também pode ser visualizado no rock já citado, sendo exatamente a característica que influenciou Shields a conceber o que seria o som ruidoso de My Bloody Valentine. 

Ao ouvir Live At The Hollywood Bowl, dos Beatles, o artista ficou tão impressionado na forma em que a gritaria do público ultrapassava a sonoridade do quarteto inglês, e como tudo isso estava gravado junto às músicas, que decidiu incorporar esse alvoroço aos seus ideais, conforme ele próprio declarou. Embora num primeiro momento essa ambição pudesse soar estranha, não é esquisito dizer que, ano após ano, as gravações musicais transformam-se em ambientes cada vez mais ficcionais, paradoxalmente buscando moldar as canções em objetos mais ‘reais’. 

No entanto, crises impostas à Música mostram uma maneira satisfatória de se compensar: intrusos e enganadores prosperaram ao longo da História da Arte, mas nunca antes artistas de enorme talento, negligenciados por suas origens distantes do mainstream, estiveram tão dentro do jogo. Aqui estamos, trinta anos depois, enxergando Loveless como algo original e um ponto fora da curva na história da Música. Mais do que isso: o disco é um recorte perfeito de uma época profícua musicalmente, e a marca permanente de My Bloody Valentine no mundo.

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