60 anos de X-Men e sua alegoria disruptiva

Imagem retangular do quadrinho de X-Men. No desenho estão 16 pessoas que fazem parte da narrativa, divididos principalmente em três grupos, os cinco mutantes originais ao centro com seus uniformes pretos e amarelos em destaque. À esquerda estão focados personagens mais vilanizados e a direita outros membros uniformizados. Todos estão em cima de destroços com um fundo com fumaça escura apocalíptico.
Wolverine, a estrela dos mutantes, apareceu pela primeira vez como vilão – e não em uma história X-Men, mas em uma HQ do Hulk (Foto: Marvel Comics)

Henrique Marinhos e Henrique Rabachini

A história das HQs é datada desde o fim do século XIX, como uma evolução das tiras cômicas publicadas em jornais. Os primeiros quadrinhos eram voltados para o humor e a sátira, mas logo começaram a explorar outros gêneros como a aventura, o romance, o terror e a ficção científica. Um dos que se destacou foi o dos super-heróis, que se consolidou na década de 1930 com a criação de personagens como a dupla da DC Comics, Super-Homem e Batman, e Capitão América, pela Marvel. Esses heróis representavam os ideais de justiça, coragem e patriotismo, em um contexto de crise econômica, guerra mundial e ameaças totalitárias. Eles também refletiam as aspirações e os medos da sociedade norte-americana, que buscava escapar da realidade através da fantasia. 

No entanto, nem todos os super-heróis eram tão simples e otimistas. Na década de 1960, surgiram os X-Men, uma equipe de mutantes que traziam uma nova perspectiva para os quadrinhos. Nessa época, o mundo passava por grandes transformações, com movimentos pelos direitos civis como a luta contra o racismo e o movimento hippie, em paralelo a Guerra Fria e a corrida espacial. Sean Howe, jornalista e autor do livro Marvel Comics: The Untold Story, descreve o grupo como provavelmente o mais explicitamente político dos quadrinhos da Marvel dos anos 1960, quando a cultura pop ganhava cada vez mais influência através da Música, do Cinema, da Televisão e, claro, das HQs. Os heróis mutantes são um importante exemplo refletor de seus valores e transformações que completam seu sexagenário aniversário em 2023, propondo questionamentos e a busca por mudanças, influenciando a cultura e a política até hoje. 

Cena dos quadrinhos de X-men. No canto superior esquerdo está um recorte da mão de Xavier segurando gentilmente o queixo do mutante ciclope envolto em uma gosma laranja. O centro da página e a imagem principal está o Professor Xavier em uma roupa colada totalmente preta sem adereços, em sua cabeça um capacete que cobre sua visão em formato de um X. Ele olha para baixo onde estão outros três mutantes saindo da gosma laranja totalmente despidos. Abaixo há um recorte de sua boca abaixo do capacete e o balão de fala escrito “To Me, My X-Men”, ou “À Mim, meus X-Men”, em tradução literal.
Em Krakoa e Arakko, os mutantes têm suas próprias preocupações em uma nova fase completa da franquia, com nações inteiras e independentes do que conhecíamos antes na Terra (Foto: Marvel Comics)

Não mais vistas como figuras perfeitas e admiradas, Stan Lee e Jack Kirby criaram um grupo que luta pela sua sobrevivência e aceitação em um mundo que os teme e os odeia, representando as vozes e as lutas de quem se sente diferente, excluído e marginalizado – qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência durante a luta pelos direitos civis. Seu enredo, no entanto, não é tão complexo assim, seguindo alguns padrões da narrativa do herói. O conjunto é liderado principalmente por Professor Xavier, um telepata que acredita na coexistência pacífica entre humanos e mutantes, e Magneto, que já não seguia essa integração, sendo o grande antagonista (ao menos no princípio), representando uma explícita e não intencionada alegoria a Martin Luther King e Malcolm X que formou-se durante os anos seguintes.

A primeira aparição do grupo nos quadrinhos foi em setembro de 1963 na revista The X-Men #1, publicada pela Marvel Comics. Além de todos os conceitos sociais que definem o que é ser mutante nesse universo, eles são, básica e primordialmente, humanos que nasceram com um gene que lhes confere poderes dos mais variados, representando a próxima evolução da humanidade. Ciclope, Garota Marvel, Fera, Anjo e Homem de Gelo foram os primeiros mutantes liderados pelo Professor Xavier, fundador da Escola Xavier para Jovens Superdotados, que os ensinava a controlar seus poderes e a usá-los para o bem da humanidade. Longos anos depois, se tornaram candidatos para a HQ de edição única mais vendida da história, com cerca de oito milhões de cópias vendidas em 1991.

Cena da animação X-Men Evolution. A ambientação é uma cantina  com vários estudantes conversando entre si em suas mesas. Ao centro e em foco está a mesa do grupo de Mutantes que aparentam ser adolescentes normais. Á esquerda está Ciclope e Noturno, dois garotos brancos de cabelos curtos e escuros. À direita está Kitty Pride e Jean Grey, duas garotas brancas também sentadas conversando. Jean é uma mulher ruiva de cabelos soltos que está comendo um sanduíche, e Kitty de cabelos castanhos e rabo de cavalo está a sua direita tomando um suco de canudo.
Além de X-Men: Evolution, outras animações fora da curva produzidas pela Marvel incluem os animes do grupo, um dedicado apenas ao Wolverine e suas participações na produção de mesmo tipo dos Vingadores (Foto: Marvel Studios)

As animações também foram uma importante influência para os quadrinhos dos mutantes, como no caso do uniforme da personagem Mística em X-Men: Evolution, série produzida por Boyd Kirkland e Michael Wolf. Com quatro temporadas e um total de 52 episódios produzidos de 2000 a 2004, a animação consagrou-se como um dos históricos mais palpáveis da narrativa transmídia da Marvel para a época, integrando seus universos e expandindo-os para outras produções como jogos, animes e brinquedos. 

A saga reimagina os personagens como adolescentes e explora suas lutas por relacionamentos e pelo mundo com poderes mutantes, o que a torna uma produção interessante e relevante para o público jovem. Ainda que a sua construção não tenha um teor de adaptação pleno, ao menos no roteiro, fazendo com que muitas das cenas e enredos originais da série sejam vistos como infiéis aos universos originais, isso não é realmente um problema quando bem feito.

No Brasil, o desenho teve grande influência e se tornou um marco nostálgico para quem assistia TV aberta ao almoçar, mas, infelizmente, não teve a mesma popularidade em outros países, ocasionando seu cancelamento por motivos financeiros. Sobretudo, essa e outras animações dos X-Men foram uma grande influência para os primeiros filmes da franquia, como afirmou o diretor Simon Kinberg durante a CCXP 2018

Cena dos quadrinhos de X-men. No canto esquerdo ciclope, um mutante de uniforme e visor amarelo retangular em seus olhos falando em um microfone destinado a William Stryker, um político branco de cabelos grisalhos que veste um terno. Ele está com balões de fala que dizem: “Será que rótulos arbitrários são mais importantes que o modo como vivemos? E o que dizem de nós, mais importante do que o que realmente somos? Afinal de contas, quem pode me provar que você não é um mutante, e nós a verdadeira espécie humana?” Ao lado, William Stryker aponta para noturno, um mutante azul de roupas vermelha e preta com três dedos em cada mão e pé e diz: “Humana? Você ousa chamar ele… Aquilo… De humano?”
William Stryker tornou-se um dos maiores vilões de X-Men ao concluir que a única razão de Deus permitir que seu filho fosse um mutante foi para conduzi-lo à sua verdadeira vocação: livrar o mundo deles (Foto: Marvel Comics)

Alguns mutantes podem passar despercebidos na sociedade, escondendo ou disfarçando seus poderes, enquanto outros têm fenótipos que os tornam facilmente reconhecíveis como pele azul, pelos, escamas, asas e caudas, por exemplo. Com isso, toda riqueza da história de X-Men se concentra nas complexidades individuais de cada personagem que a trama oferece. Longe de aspirações fúteis e infundadas, cada um é desenvolvido como uma pessoa real, marcada por nuances como abandono, discriminação, violência e trauma, consequentemente, convergindo em visões e atitudes sobre sua condição. Noturno, Fera, Mística e Anjo são exemplos de desenvolvimento da alma da obra.

Noturno, além de ser um mutante, é um católico devoto que busca aceitar sua aparência como uma dádiva divina, mesmo que se pareça com demônio com pele azul, cauda, orelhas pontudas e três dedos em cada mão e pé. Por muito tempo, desejou ter os poderes de Mística, que apesar de compartilhar uma aparência sobre-humana com ele, pode assumir a identidade de qualquer pessoa ou animal. Ela já foi uma X-Men e também aliada de Magneto, além de uma mercenária e terrorista independente, sendo, sobretudo, uma sobrevivente.

Por outro lado, Fera e Anjo nem sempre foram assim. Enquanto Fera tenta inibir seu gene X a partir de uma solução experimental fracassada que o transformou em uma criatura peluda e azulada, com garras e presas, Anjo adquiriu seus poderes ao longo de sua puberdade. No início do filme X-Men: O Confronto Final (2006), dirigido por Brett Ratner, o mutante tenta arrancar suas asas no banheiro para esconder sua mutação quando criança. Seu pai o flagra e ele, chorando, se desculpa.

Imagem animada do filme X-Men 3: Confronto Final. Nela está o mutante anjo criança, um garoto branco de cabelos loiros cacheados. Ele está chorando enquanto tenta alcançar suas costas com um barbeador para aparar suas asas recém nascidas.
Mesmo depois de se refugiar no Instituto Xavier por se recusar a tomar a cura financiada por seu pai, Anjo o salva de ser morto após ser atirado da janela do laboratório (Foto: Marvel Studios)

No começo dos anos 2000, a Fox, que havia comprado os direitos cinematográficos dos mutantes após uma quase falência da Marvel, deu início à trilogia de filmes dos X-Men. O desenvolvimento do primeiro longa teve início em 1989 e o lançamento ocorreu em 2000, lucrando 296,3 milhões de dólares mundialmente e se tornando a oitava maior bilheteria mundial do ano. Dirigido por Bryan Singer, o longa trouxe uma alçada mais séria para os mutantes, fugindo das roupas coloridas e assumindo roupas pretas de couro. Singer traça diversos paralelos entre os mutantes e a homossexualidade. Uma das cenas mais óbvias nesse ponto acontece em X-Men 2 (2003), quando o personagem Homem de Gelo, ao revelar para seus pais que é um mutante, escuta de sua mãe a frase: “Você tentou não ser um mutante?”.

O segundo filme dos X-Men trouxe uma simples adaptação de um dos arcos mais aclamados dos heróis nos quadrinhos, Deus Ama, o Homem Mata, introduzindo o vilão William Stryker, que tem como objetivo o genocidio de todos os mutantes. Outra renomada história adaptação foi a saga Dias de um Futuro Esquecido, em que é apresentado um futuro distópico no qual mutantes são caçados e exterminados, precisando dar um jeito de voltar ao passado para impedir que esse futuro aconteça.

Cena do filme X-Men Dias de um Futuro Esquecido. Nela está o ator Patrick Stewart e James McAvoy interpretando o mesmo personagem, Professor Xavier. Patrick representa sua versão idosa, um homem branco e careca em uma cadeira de rodas em trajes de couro pretos, encarando James, sua versão adulta, de cabelos castanhos compridos até seu ombro com uma jaqueta de couro marrom e uma camiseta florida. Ele apoia suas mãos na cadeira de sua versão mais velha e olha em seus olhos. Ao fundo há uma tábua com uma pessoa amarrada nela e outros dois mutantes conversando. Todo cenário é iluminado por ladrilhos coloridos nas paredes como vitrais.
Quando Simon Kinberg estava trabalhando na viagem do tempo de Dias de um Futuro Esquecido, James Cameron autografou seu livro “O Making of de O Exterminador do Futuro 2” e escreveu “Não foda tudo, com amor, Jim” (Foto: Marvel Studios)

É inegável que os filmes dos X-Men foram um tremendo sucesso, responsáveis por consagrar diversos atores nos papéis de mutantes como Wolverine, interpretado por Hugh Jackman, Professor Xavier (Patrick Stewart) e Magneto (Ian McKellen). O enorme sucesso foi, sem dúvidas, a chama que deu origem a um renascimento dos longas-metragens de quadrinhos e super-heróis que pode ser vista até hoje. A produção de 2000 foi responsável por dar abertura a discussões sobre o longa do Homem Aranha (2002) com Tobey Maguire no papel do herói, além de abrir espaço para o Quarteto Fantástico (2005) e trilhar o caminho para Homem de Ferro (2008), que marca o início de um universo cinematográfico de mais de 35 filmes e séries de heróis da Marvel e posteriormente da Disney, em 2009.

Embora os X-Men tenham rendido um bom dinheiro para a Fox e trazido uma revolução no mercado cinematográfico de super-heróis, é necessário apontar que a franquia dos mutantes terminou de uma maneira que não agradou os fãs e nem o público geral. O último filme, Os Novos Mutantes, foi gravado em 2017 e só foi lançado em 2020, depois de anos de adiamentos e até rumores de cancelamento. O longa ficou no meio de um momento conturbado dentro do estúdio, comprado pela Disney, que se apropriou dos personagens e já possui outros lançamentos com os mutantes em desenvolvimento.

O primeiro filme dos mutantes sob controle da Disney, Deadpool 3, teve suas gravações pausadas devido à greve de atores e roteiristas que afligiu Hollywood e irá trazer uma das duplas mais amadas dos quadrinhos, Deadpool e Wolverine de volta às telonas. Com Hugh Jackman reprisando o icônico papel de Wolverine e Ryan Reynolds novamente como Deadpool, que promete entregar uma história mais fiel à sua fonte, não cometendo os erros da obra de 2009, X-Men – Origens: Wolverine cometeu ao adaptar esses mesmos personagens. Além disso, o terceiro filme da trilogia provavelmente será o responsável por trazer uma ligação entre o universo dos X-Men da Fox e o universo de Vingadores da Disney, consagrando a cena pós crédito de The Marvels

O pouco que se sabe sobre Deadpool 3 se deve a fotos vazadas dos bastidores e, mesmo sem nenhum detalhe do enredo, é perceptível a principal diferença entre Fox e Disney: os uniformes. As adaptações da primeira tentavam trazer um tom mais sério, já a Disney, acostumada em adaptar personagens bem estranhos dos quadrinhos, irá trazer pela primeira vez um uniforme fiel para o personagem de Hugh Jackman, uma verdadeira vitória para os fãs que esperaram 20 anos de adaptações live-action dos X-Men e não tiveram uma adaptação fiel dos uniformes coloridos e únicos dos quadrinhos. Agora, nos resta esperar e ver se os mutantes serão realmente bem tratados em sua nova casa.

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