O niilismo divertido de The End of the F***ing World

Gabriel Leite Ferreira

A casualidade às vezes nos reserva boas surpresas. Foi sem muito entusiasmo que comecei a assistir ao primeiro episódio de The End of the F***ing world, série em oito partes disponibilizada pela Netflix no começo do mês. Tiro e queda: devorei os sete episódios que restavam de uma tacada só, sem intervalos.

A premissa é simples. James (Alex Lawther) é um adolescente de 17 anos que acredita piamente ser um psicopata. Alyssa (Jessica Barden), sua nova colega de classe, é uma jovem rebelde que vê em James uma chance para fugir de sua família disfuncional. Não demora muito para que ambos se juntem e planejem escapar da cidade com o carro do pai de James. Contudo, logo a jornada ganha contornos perigosos.

Baseada na história em quadrinhos homônima de Charles S. Forsman, a adaptação audiovisual de The End of the F***ing World guarda traços cartunescos, desde os diálogos surreais de James e Alyssa ao ritmo agitado – cada episódio tem cerca de 20 minutos. Some aí dois atores com química indefectível e temos uma boa pedida para um passatempo descompromissado.

Porém, isso não quer dizer que a trama seja comum. À medida que a relação da dupla se desenvolve, camadas mais profundas da psique de cada um vão se desvelando e, então, a rebeldia apática dos primeiros episódios se transforma em um escudo de proteção para os traumas individuais.

O enredo remete aos filmes de Wes Anderson, enquanto o recorrente humor negro permite analogias com Assassinos por Natureza (1994), de Oliver Stone. O desprezo ao mundo adulto e o romance torto de Moonrise Kingdom (2012) estão aqui, ainda que mais niilistas. James e Alyssa são como Mickey e Mallory Knox para baixinhos. Os delitos da dupla de fugitivos juvenis não passam de mero exercício de autoafirmação, atos exagerados de rebeldia pela rebeldia, sem crueldade intrínseca; inclusive por parte de James. Alyssa desperta sentimentos inesperados no rapaz, até então um jovem extremamente frio, e, assim, ele supera seu trauma e encontra a redenção.

Esse não é seu romance adolescente comum (Foto: Reprodução)

Alyssa esconde sua carência com uma pretensa maturidade traduzida em referências sexuais nonsense. Ela busca se redimir ao procurar pelo pai biológico que não vê há anos: ao finalmente encontrá-lo, acredita ter encontrado, também, sua felicidade. No entanto, Leslie (Barry Ward), um traficante bicho-grilo, logo se revela tão fútil quanto os demais adultos da série. Phil (Steve Oram), o pai de James, aparenta ser zeloso, mas é incapaz de comunicar o desaparecimento do filho à polícia com esperanças de que ele retorne ileso. Gwen (Christine Bottomley), por outro lado, escolhe a apatia, uma vez que Alyssa não se encaixa em sua vida burguesa com um novo marido e três filhos pequenos e, portanto, não é mesmo bem-vinda.

Aí, então, nada resta a não ser a rebeldia com causa da dupla, temperada com um romance igualmente esquizoide e doce. A relação entre Alyssa e James é feita de altos e baixos, muito por conta da personalidade fechada do garoto. Alyssa se pergunta várias vezes se ele realmente gosta dela (e se a recíproca é verdadeira), enquanto James trava uma batalha entre sua suposta tendência psicopata e seus sentimentos verdadeiros. Por fim, os sentimentos vencem, mas não sem baques. Afinal, o cáustico humor inglês é o toque de mestre da série.

Quem são as crianças? (Foto: Reprodução)

Interessante notar como o outro núcleo da série, formado pelas detetives Eunice Noon (Gemma Whelan) e Teri Donoghue (Wunmi Mosaku), também transpira tensão sexual – mas contida. De cara, é palpável o crush de Eunice por Teri, que resiste às investidas da parceira sem muita determinação. Ao iniciarem a busca pelos fugitivos, as diferenças entre as duas se tornam mais pronunciadas: Teri acredita em uma abordagem não-violenta, ao passo que Eunice não é tão empática. O papel de ambas é pontual, mas útil para tirar o foco de James e Alyssa por alguns momentos.

Mesmo que The End of the F***ing World não iguale produções como Stranger Things ou Black Mirror em termos de roteiro ou até mesmo em aspectos técnicos, não deixa de ser um exercício divertido e competente de desenvolvimento de personagens. A estranheza do casal protagonista cativa e o final aberto da primeira temporada desperta curiosidade: o que será de James e Alyssa? Aguardemos.

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