Em um universo de dores, Rico Dalasam nos entrega um alívio

Capa do álbum Dolores Dala Guardião do Alívio, de Rico Dalasam. Fotografia quadrada com um céu azul ao fundo. Na imagem, ao centro, Rico Dalasam, um homem negro, de barba e cabelo preto em dreads na altura dos ombros, usando uma maquiagem dourada com detalhes em azul. Vestindo um sobretudo branco semitransparente de gola dourada com detalhes em azul, ele ergue os braços esticados para os lados, com as palmas das mãos viradas para frente, enquanto está em cima de um carro pelo teto solar, em movimento. Na parte superior há três símbolos minimalistas em branco: uma lua minguante, uma rosa e uma lua cheia, respectivamente, intercalados por quatro símbolos de espadas, dois com corações na ponta à esquerda, e dois com gotas na ponta à direita. Na parte inferior, centralizado, pode-se ler a sigla “DDGA”, escrita na vertical.
Capa do álbum Dolores Dala Guardião do Alívio, lançamento mais recente do artista (Foto: Reprodução)

Enrico Souto

Rico Dalasam foi o primeiro rapper gay a ganhar grande projeção na cena do hip-hop nacional, e um dos principais expoentes do gênero queer rap no Brasil, que contudo hoje se mostra um termo limitado demais para o que ele representa. Em suas palavras, “depois que você lança uma música e vai existindo, as coisas tomam caminhos que uma tag não suporta”. E acredite, nenhuma tag suporta Dalasam. E caso ainda houvesse dúvidas, Dolores Dala Guardião do Alívio vem para cravar o artista como um dos nomes mais relevantes da música brasileira atual.

Emicida, em entrevista ao Roda Viva em julho de 2020, ao ser perguntado sobre o envolvimento da comunidade LGBTQ+ no movimento do hip-hop, citou Rico, que colaborou com o rapper em Mandume, como “um dos melhores letristas que nós temos hoje”. E de fato. Depois de alguns anos de hiato e polêmicas que reverberam até hoje, o cantor e compositor retorna com os dois pés na porta com um álbum extremamente conciso, maduro e de identidade visual marcante, acompanhando 11 faixas e um curto clipe de quase 2 minutos que introduz as temáticas abordadas no disco e sintetiza a mensagem proposta.

Anteriormente lançado como um EP de cinco faixas em maio de 2020, dessa vez sua premissa é elevada à décima potência, transformando-se em uma experiência imersiva e em uma viagem pelas emoções, vivências e pensamentos do autor, resultando no trabalho mais sensível e intimista de sua carreira, e com certeza um tiro acertado. O disco, de cerca de 26 minutos, pode até ser consideravelmente curto para a duração padrão de um LP hoje, mas, em compensação, ele não tem uma grama de gordura. Como um legítimo álbum conceitual, todas as faixas têm papel crucial e relevante para o resultado da obra final. Tanto sua estrutura narrativa quanto a forma com que as faixas são agrupadas não são por acaso. 

Com produções assinadas por Dinho, Mahal Pita, Moi Guimarães, Netto Galdino, Pedrowl, RDD e Chibatinha (ÀTTØØXXÁ), Dolores Dala Guardião do Alívio nos conduz à jornada emocional de Rico, através de uma fábula envolvida por versos poéticos e rimas instigantes, de alguém que incessantemente procura a calmaria em um mundo hostil. Enquanto Orgunga, álbum anterior do rapper, é “o orgulho que vem depois da vergonha”, aqui ele nos revela o alívio que vem depois da dor.

magem do rapper Rico Dalasam, homem negro de barba e cabelo preto preso em dreads. Ele está sem camisa, usando apenas uma calça da cor marrom presa por um cinto de balas, com uma corrente repleta de pequenas chaves pendurada em sua lateral direita. Ainda usa um grande colar composto de várias franjas de seda da cor vermelha, algumas pulseiras de palha em seu pulso direito e um brinco em sua orelha direita, com uma pequena pedra branca em formato circular pendurada. Além disso, ele tem uma corda de alho pendurada sobre seu ombro direito, envolvendo toda a lateral do seu tronco. Ele está em pé, com os dois cotovelos apoiados no teto de um humilde carro cinza. O seu semblante é sério. O ambiente é um campo verdejante durante um anoitecer nublado. Na parte inferior, centralizado, pode-se ler reticências.
A recepção do disco foi extremamente positiva, já totalizando quase cinco milhões de plays no Spotify (Foto: Reprodução)

A música de abertura é a intro DDGA, faixa em spoken word que apresenta um eu-lírico absorto e contemplativo, olhando para trás depois de um longo caminho percorrido e refletindo sobre sua trajetória, essa que acompanharemos nas 10 faixas que virão a seguir. Entre todo o texto que é recitado, uma frase ecoa em destaque: não falaria de alívio se não tivesse doído tanto”. Aqui, Rico evoca as duas máximas que irão ditar o curso que sua narrativa percorrerá: dor e alívio. Essa dualidade é exposta e será posta em constante conflito até que ela ache seu equilíbrio para, desse modo, abrir passagem para a cura. Afinal de contas, depois de tudo o que ele passou, simplesmente não há como continuar o mesmo.

Em contraponto à faixa anterior, voltamos à estaca zero e somos levados à Expresso Sudamericah. Dessa vez, ao invés de ouvirmos um discurso auspicioso e otimista, nos deparamos com o manifesto de um homem confuso, angustiado, largado sozinho na estação, procurando sentido em sua caminhada. Acompanhamos o seu raciocínio junto às batidas compassadas, de quem questiona sua posição no mundo e as responsabilidades que essa posição lhe infere. Como uma carta para o seu público, vinda direto de um período em que o próprio Rico, depois de sofrer constantes ataques por unicamente reivindicar um direito trabalhista, perguntava-se qual era o seu papel como músico em uma indústria tão opressiva e sufocante.

Mas ali ele encontra uma resposta. Ou, senão uma resposta, uma faísca de esperança. Dalasam usa a sua experiência individual como homem, negro, gay e latino para comentar todo o processo de henrança colonial da América do Sul, posicionando-se no centro desse cenário. Não é à toa que, durante o refrão, ele se dirija diretamente ao ouvinte: “Alô parceiro, passageiro”. Afinal, ele não caminha sozinho. E, no fim das contas, não adianta de nada produzir um hit de milhões se isso significar se render à ordem vigente e tornar-se ainda mais refém desses poderes. Ele, enfim, conclui que não importa o quanto tentem calá-lo, ele mesmo abrirá o seu caminho para o topo, traçando seu propósito: “Tô desenhando um coração onde todo dia apagam um monte”.

Imagem de divulgação do disco Dolores Dala Guardião do Alívio, do rapper Rico Dalasam. Ele é um homem negro, de barba e cabelo preto em dreads na altura dos ombros, usando uma maquiagem da cor dourada com detalhes em azul. Ele está dentro de um carro da cor cinza com rodas amarelas, apoiando a cabeça e os braços sobre a porta do motorista. Usando um sobretudo branco, ele olha diretamente para a câmera. Ainda usa um anel colorido em formato de flor no dedo do meio de sua mão direita e duas pulseiras de palha em seu pulso direito, com uma pequena pedra branca pendurada em uma delas. Ao fundo, observamos um campo verdejante.
“Porque a melhor de nós nunca foi na agonia, na confusão dos ódios, na distração dos brancos” (Foto: Reprodução)

Esse artifício de utilizar vivências individuais para comentar um fenômeno social coletivo rege toda a estrutura de Dolores Dala Guardião do Alívio. Em Não é Comigo, é introduzido, através de um áudio de WhatsApp, um dos arcos centrais a serem abordados: um relacionamento interracial, homoafetivo, e as implicações disso para ele como homem negro. Rico então atravessa um importante tópico: a solidão do gay negro, constantemente hiperssexualizado e idealizado em fantasias e fetiches sexuais, porém nunca considerado digno de amor e afeto genuíno. O rapper decide enfrentar diretamente esse imagético e coloca o seu parceiro – evidentemente branco – contra a parede ao questionar o motivo dele não assumi-lo para seus familiares e amigos.

Tal temática continua se estendendo na faixa que sucede, Última Vez. Musicalmente, essa é a que mais se diferencia do resto do álbum: um afrobeat que abusa de 808’s e arranjos eletrônicos, predominantes no gênero do trap – o que se encaixa perfeitamente com a estética densa e soturna que a música quer transmitir –. No entanto, ela também opta por batidas mais orgânicas, somadas a suaves dedilhados de cavaco em segundo plano, fazendo com que sua sonoridade, ainda que destoante, continue soando familiar com o resto da tracklist. Além disso, com sua voz sustentada por um autotune modesto, porém marcante, e um flow melódico à la Beli Remour, Rico explora sua extensão vocal como nunca antes, expressando sentimentos que vão da agressividade à melancolia.

Imagem do rapper Rico Dalasam, homem negro de barba e cabelo preto preso em dreads. Ele está sem camisa, usando apenas uma calça da cor marrom, com uma corrente repleta de pequenas chaves pendurada em sua lateral direita. Ainda usa um grande colar composto de várias franjas de seda da cor vermelha e algumas pulseiras de palha em seu pulso direito. Ele está agachado em frente a uma pequena mesa circular encoberta por um tecido preto. Em cima da mesa há um prato branco, que carrega um objeto preto com o formato de um coração humano, com duas pequenas espadas de cor prata inseridas em sua lateral direita. O homem está com a cabeça abaixada inclinado sobre o prato, olhando para ele, com a mão esquerda segurando o objeto e a mão direita segurando uma terceira espada, enquanto a insere na lateral direita do objeto junto às outras. O ambiente é um campo de terra. É noite e o redor está completamente escuro, exceto pela luz de um holofote que ilumina a cena. Na parte inferior, centralizado, lê-se os dizeres “por causa de um amor?”.
“Você vai peitar 500 anos de uma parada, por causa de um amor? De um suposto amor, você nem tem certeza” (Foto: Reprodução)

Por meio de rimas ríspidas, cruas e diretas, Rico se localiza e deixa claro: ele não será cativo de ninguém. Frases como “quer meter, mas não quer manter” o colocam em uma posição ativa e reforçam a sua ofensiva, de alguém que sofreu calado por tempo demais. De tônica semelhante, a faixa Mudou Como?, um afropop enérgico que cativa logo na primeira ouvida, relata o momento em que essa relação adquire um caráter abusivo, fatalmente repercutindo as dinâmicas de uma hierarquia colonial. Nos deparamos com um eu-lírico complexo e impotente, em conflito com a contradição de ainda desejar permanecer em uma condição que o faz tão mal. 

Com o intuito de realizar um mergulho mais íntimo sobre esse romance e seus efeitos tanto internos quanto externos, o primeiro single de Dolores Dala Guardião do Alívio e seu maior hit, Braille, é conduzido por um sample notável de Chanel, do Frank Ocean, acompanhado por um singelo pandeiro, culminando, no refrão, em um dos clímax mais memoráveis que o rapper já nos proporcionou. Seu talento como compositor se manifesta em versos intensos e frases icônicas que tratam da forma mais franca possível os infortúnios vivenciados com seu parceiro.

E então, finalmente, depois de tantos tormentos e anseios, Supstah é uma quebra que vem como um balde de água fria, um momento de respiro diante de tantas perturbações. Supstah é a utopia de Rico Dalasam, quando, nem que seja por um breve instante, ele se entrega aos seus sonhos e se permite descolar de sua existência material, idealizando um mundo diferente para si e para os seus. 

Talvez, exatamente por ser um momento mais brando e menos urgente, essa também seja uma das faixas de menor destaque de Dolores Dala Guardião do Alívio. Porém, independente do seu impacto dentro do panorama geral, esse ainda é um dos takes mais bonitos feitos no disco. Visto isso, faz sentido que, na faixa seguinte, o interlúdio Circular 3, protagonizado pela mãe de Rico, o vejamos comentando, através da metáfora de uma espera em um ponto de ônibus, sobre a cultura imediatista de uma geração superexposta, sedenta por controle, que recebe estímulos de todos os cantos e não consegue mais enxergar valor nas pequenas coisas.

Imagem de divulgação do disco Dolores Dala Guardião do Alívio, do rapper Rico Dalasam. Ele é um homem negro, de barba e cabelo preto em dreads na altura dos ombros, usando uma maquiagem da cor dourada com detalhes em azul. Ele veste um sobretudo branco, de gola dourada com detalhes. Ainda usa um anel colorido em formato de flor no dedo do meio de sua mão direita. O homem, olhando diretamente para a câmera, toca as palmas das mãos, colocando a palma esquerda abaixo da palma direita, mantendo-as levantadas na altura de seu tronco. Ele está sentado no capô de um carro da cor cinza, com várias rosas brancas agrupadas verticalmente ao seu redor, também em cima do capô. Nas duas pontas superiores do teto, se equilibram dois vasos brancos. Ao fundo é possível observar um campo verdejante, com um céu nublado.
O hit Braille ainda marcou presença em premiações ao ganhar o Prêmio Multishow de Canção do Ano em 2020 (Foto: Reprodução)

Voltando à realidade, agora em busca de tornar essa utopia tangível, Vividir chega como uma revisita nostálgica a um local e tempo distantes. Dalasam inicia citando elementos importantes de um período longínquo de sua vida: “Um pedaço de colo/Um gole de café/Uma foto de um ano/Que eu não lembro qual é”, até que por fim ele tenha que confrontar o fato inevitável de que as coisas mudaram e, não importa o quanto ele queira, elas nunca voltarão a ser o que eram antes: Onde era minha casa não é mais/Onde era minha escola não é mais/Onde era a minha vida não é mais/Cadê?”. Mas, afinal, já que não temos controle sobre o que acontece ao nosso redor, o que fazer a respeito?

É isso que Rico tenta responder no interlúdio Outros Finais, uma ponte para o final da grande odisseia de Dolores Dala Guardião do Alívio. O texto, declamado por Camilla Pellegrini, que transcende o concreto e sugere uma conexão etérea, divina e espiritual com sua ancestralidade, é introduzido ressoando a frase “Ninguém está mais no mesmo lugar”, como se contestasse diretamente as indagações feitas previamente em Vividir. Dalasam então, através de sua fé, encontra as respostas de que precisa, pavimentando o caminho para seu encontro consigo mesmo em Estrangeiro.

Imagem do rapper Rico Dalasam, um homem negro de cabelo preto em dreads na altura dos ombros. Usando um sobretudo branco, ele está de costas, caminhando por um campo verdejante durante uma tarde nublada, enquanto segura um vaso branco em sua mão direita. Na parte inferior, centralizado, é possível ler os dizeres “O trato era”.
“O trato era: seus braços ser meu travesseiro, amor” (Foto: Reprodução)

Essa música, mais do que uma reconciliação e um término pacífico ainda que não menos crítico para aquele romance tão atribulado, representa o Rico respeitando seu próprio tempo e, enfim, se chocando com a possibilidade da cura. Representa sua tomada de consciência de que aquele não é o seu lugar, e a retomada de sua busca por um espaço que é de seu direito. Estrangeiro não marca o fim de sua jornada, e sim o fechamento de um ciclo para a abertura de um novo. Libertando-se das correntes dessa relação tóxica, ele sai desse episódio amadurecido e em paz com sua decisão. Em virtude disso, não é por acaso que a frase que marque o desfecho dessa história seja: “Fui, porque acabou a fé/Não, porque acabou o amor”.

Uma coisa é certa: Dolores Dala Guardião do Alívio é rapRhythm and Poetry – em sua essência. Transbordando poesia, talvez essa faceta de Dalaboy nunca tenha estado tão escancarada antes, no melhor dos sentidos. Entretanto, o álbum não se restringe a isso. Construindo uma colcha de retalhos, ele bebe de diversos gêneros afrolatinos distintos – do dance hall ao samba e pagode –, pincelando doce e gentilmente sua obra por temas pesados como colonialismo, homossexualidade, afetos e negritude, elevando-a a uma experiência lúdica e acessível, sem diminuir o impacto, relevância e seriedade dessas questões.

Imagem do rapper Rico Dalasam em foto de divulgação de seu disco Dolores Dala Guardião do Alívio. Rico Dalasam é um homem negro, de barba e cabelo preto em dreads na altura dos ombros, usando uma maquiagem da cor dourada com detalhes em azul. Aparecendo apenas do tronco para cima, ele usa um sobretudo branco semitransparente, de gola dourada com detalhes em azul. Ele olha diretamente para a câmera enquanto ergue os dois braços esticados para os lados, com as palmas das mãos para cima. Ainda usa um anel colorido em formato de flor no dedo do meio de sua mão direita e várias pulseiras de palha no pulso direito, com uma pequena pedra branca pendurada em uma delas. Ao fundo, observamos um céu azul limpo.
“Você é parte da minha parte viva, ô, e a gente ainda é a parte viva do mundo” (Foto: Reprodução)

E, ao fazer isso, ele passa a destoar ainda mais dos seus trabalhos anteriores e das tendências musicais do pop atual. Mas, apesar disso, continua soando aconchegante e convidativo para quem acompanha o artista desde Modo Diverso. É um retrato tão pessoal e tão singular, mas que, ao mesmo tempo, de alguma forma, consegue soar completamente abrangente. Tal qual o próprio Rico pontua, alguns dos contos e versos apresentados poderiam muito bem serem cantados pela Marília Mendonça, porque amor, desilusão e rompimento são conceitos universais e identificáveis para qualquer um. No entanto, calhou por serem cantados por ele, o que é potente e político por si só.

Por fim, bem como a sua capa sugere, esse álbum é um abraço acolhedor. É a proposta de um alívio para um período tão doloroso quanto o que estamos passando ao, como ele mesmo define, “desenhar um coração dentro de um corpo preto sul-americano”. Coração esse que, não importa o quanto seja golpeado, continuará pulsando e resistindo obstinadamente. Assim sendo, me parece que a rosa é o signo perfeito para a sua fábula: algo tão bonito, ao mesmo tempo que potencialmente perigoso – Rico Dalasam consegue encontrar beleza em uma realidade espinhosa, e não poderia haver posição mais revolucionária do que essa.

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