Vitor Evangelista
A tarefa de selecionar, entre uma vastidão de olhares e marcas, um único filme para representar o país mundo afora não é nada fácil. Afinal, qual a fórmula secreta para a submissão perfeita? Quais atributos um longa nacional deve possuir para, de fato, ser o “mais brasileiro” possível? Em 2022, a missão é de Deserto Particular, bela produção comandada por Aly Muritiba e presente na seção Mostra Brasil da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Escolhido como a submissão oficial do Brasil para o Oscar 2022, Deserto Particular nos apresenta Daniel (Antonio Saboia), um policial exemplar, mas agora afastado por um problema traumático que quebrou seu braço e colocou um homem na UTI. Desiludido, ele vive uma vida pacata em Curitiba, alternando sua rotina entre os trabalhos na Força e os cuidados do pai, um ex-sargento idoso e que sofre com problemas de memória.
Os únicos lampejos de vida nos olhos de Daniel acontecem no mundo on-line, quando troca mensagens com Sara, sua namorada virtual, residente da Bahia. De repente, a mulher para de respondê-lo e, sem nada a perder, Daniel sobe na picape e viaja do Sul ao Nordeste em busca da amada.
Ao passo que o roteiro, escrito por Muritiba ao lado de Henrique dos Santos, se dedica aos percalços da viagem na estrada, Deserto Particular parece estar migrando para uma trama simples de causa e efeito, onde a selvageria de Daniel iria de encontro a quebra de expectativas com a qual ele bateria de frente no momento que respirasse o ar seco da região. Mas o ponto de tensão da obra não é bem por aí.
Na marca dos quarenta minutos, quando o filme se situa na outra ponta do Brasil e Sara surge em cena, a narrativa vira de cabeça para baixo e justifica, com primazia, o destaque dado ao filme pelo país. Quase como uma lenda mística digna de nossa Literatura, Private Desert (como foi vendido lá fora) desvenda experiências humanas e sensoriais, abrindo espaço para discussões no eixo da sexualidade e da expressão de gênero, com a suavidade e o respeito que temas assim demandam.
A inserção de Robson, papel do brilhante e inigualável Pedro Fasanaro, na história dá o brilho necessário para que essa se torne uma das investidas queer mais potentes que o Brasil verá em muito tempo. Na interpretação do jovem, o ator não poupa nuances e realça o conhecido sofrimento de ser diferente dentro de uma sociedade religiosa e nada mente aberta. Entretanto, longe de se encaixar no estereótipo LGBTQIA+ que costumeiramente acaba em dor e perdição, Aly Muritiba dá sua cartada de mestre.
Ressignificando Total Eclipse of the Heart, Deserto Particular prova que o Cinema é máquina potente de histórias e vida, e, acima de tudo, de cultivar sonhos, fazer florir esperança, mesmo denunciando uma lenda triste de intolerância, recheada de passagens potentes e chorosas, mas nunca em baixo astral. A própria epifania experienciada por Daniel evidencia o caráter separatório desta obra quando em comparação com longas mais engessados e que buscam a solução esperada.
Tudo morre no deserto coletivo, tudo se fortalece no deserto particular. O árido do local físico é metáfora para reconstrução, é sinônimo de força, de reinvenção, é definição de sonho. O Deserto Particular de Aly Muritiba, povoado por Daniéis, Robsons e Saras, é palco de revoluções. Com ciência do potencial nutritivo e fortalecedor do ecossistema que escolheu para cultivar suas ideias e concretudes, o diretor narra o amadurecimento, a vida, e o Brasil que merece ser visto aqui dentro e lá fora.