Boca a Boca e seus vírus: série combina cor com beijo de língua e epidemia

(Foto: Netflix/Divulgação)

Victória Rangel

Línguas, línguas e mais línguas… É o que você vai ver logo no primeiro episódio de Boca a Boca. A série fala de um grupo que, como bons jovens de cidade pequena, tem que escapar atrás de diversão para uma região próxima, mas proibida pelos pais – a chamada Vila, cujos habitantes são tão diferenciados que existe até uma versão brasileira do cantor Will.i.am (do Black Eyed Peas) morando lá. Dá para imaginar uma festa regada a drogas e luzes psicodélicas acontecendo? É nesse contexto mesmo que aparece a principal motivação da série – por meio de muitos e muitos beijos no calor dessa aglomeração, começa a se espalhar a doença misteriosa.

Muito diferente desse cenário é o lugar de tons pastéis em que esses adolescentes acordam no dia seguinte, de volta a sua origem: a cidade de Progresso, em que o único colégio existente é militar e gerido por Denise Fraga, que incorporou tão bem Guiomar, uma mulher amargurada e controladora, que logo se nota, em sua forma de gargalhar, que vai ser difícil gostar da sua personagem. É ela quem assegura as regras severas e o monitoramento dos alunos de uniforme cor-de-rosa.

Alex sendo inspecionado pela mãe (Foto: Netflix/Divulgação)

Ah, mas é nacional? Sim, é nacional! E o Brasil está sempre ali, aliado a aspectos da ficção científica cinematográfica. É um Brasil quente, ambientado no Velho Goiás, com janelas de madeira, em que a economia gira em torno da pecuária. É por isso também que a figura do boi está presente em muitos e muitos quadros da série, e que merece destaque a releitura da canção boi da cara preta, que embala algumas cenas da obra. 

Num lugar de muita riqueza, evidenciam-se, é claro, as camadas sociais impostas pela renda – os criadores da série utilizam, inclusive, o nome de Colônia para nomear a moradia dos trabalhadores da fazenda Nero. É esse o sobrenome da personagem muito bem interpretada por Bruno Garcia, homem de cabelos penteados para trás e barba longa, que coordena a economia da cidade com sua criação de gado. Como um bom representante da elite agrária brasileira, Doni Nero é um daqueles conservadores que acredita em meritocracia, defensor do discurso a gente dá moradia, mas eles tem que trabalhar – essa fala está mesmo presente em uma cena de Garcia e que ele, curiosamente, fecha com a expressão tá ok?.

Guiomar interrogando Chico na diretoria (Foto: Netflix/Divulgação)

Com uma fotografia potente, uma câmera bem conduzida e uma edição de dar inveja em qualquer videoclipe de música alternativa, Boca a Boca une a temática do filme Corrente do Mal (2014), cujo suspense se dá no contágio por meio sexual, com o audiovisual do nacional Paraísos Artificiais (2012), que ilustra festivais de música eletrônica, drogas e psicodelia. E, falando em música, a trilha sonora da série também é tão boa que ela mal tinha sido lançada na Netflix e já possuía uma playlist de destaque no Spotify. Letrux, Trupe Chá de Boldo e Baco Exú do Blues se unem ao som de sintetizadores para compor o ritmo contemporâneo da narrativa. 

No meio desses 6 episódios de 40 minutos cada, existem momentos em que podemos visualizar a epidemia para além de seus sintomas físicos, como num batom compartilhado entre meninas na escola. A doença é assustadora, mas não é feia. É tão colorida quantos as festas na Vila, de um lilás e um azul sedutores – tudo contrastando muito bem com o azul dos olhos de Michel Joelsas – o Fabinho de Que Horas Ela Volta? e o Chico de Boca a Boca

Fran, Alex e Chico (Foto: Netflix/Divulgação)

O Chico? Ah, o Chico… Ele é aquele alguém carismático, com quem, muito provavelmente, você gostaria de conviver. Sabe aquela pessoa que incorpora a festa na alma e leva ela pra todo lugar? Então, esse é o Chico, amigo de Alex Nero (Caio Horowicz), o filho vegetariano do dono dos bois. Alex, para fechar o círculo de protagonistas, une a amiga Fran ao trio que conduz a série. 

No caso dos dois, você conhece aquela história das crianças de diferentes classes sociais, que crescem brincando juntas, mas são atrapalhadas pela delimitação de sua renda? Então, em Boca a Boca, Fran é uma menina negra, interpretada por Iza Moreira, que mora na colônia da fazenda Nero. Ela, além de melhor amiga de Bel – a primeira jovem infectada pelo novo vírus -, também se divide entre a escola e os cuidados com sua mãe, uma mulher explorada pelo trabalho duro na fazenda de Alex. 

Cidadãos de Progresso (Foto: Netflix/Divulgação)

A série oscila entre pinceladas de naturalidade cotidiana, como no simples oferecer de uma maçã a um amigo, e a apresentação de uma realidade quase distópica, em que os pais da cidade fazem academia juntos, ouvindo passagens da Bíblia, por exemplo. Uma tendência a que a Gullane Entretenimento e a Fetiche Features, produtoras da série, seguem, e que está aumentando nos últimos anos nas produções audiovisuais, é a de utilizar a tecnologia das redes sociais como um elemento da cena. Em Boca a Boca, eles imitam aplicativos como Facebook, WhatsApp e Instagram, com suas lives e stories (uma boa analogia para a nova era das lives que estamos vivendo atualmente, né?)

Aliás, é válido informar que a série foi pensada por Esmir Filho há cerca de dois anos e a epidemia que inspirou o criador, diretor e roteirista foi a do vírus HIV. O que a produção não imaginava era em que pé estaria o mundo durante a estreia de Boca a Boca. A temática, surpreendentemente, não poderia ter caído em melhor hora pois, ao falar de epidemia, também nos mostra o conservadorismo, a homofobia, a exploração de classes que parecem ser evidenciados em situações extremas.

Festas na Vila (Foto: Netflix/Divulgação)

Outro aspecto relevante é que a série, além de mostrar uma situação semelhante a da nossa realidade com o surgimento do Coronavírus, também acentua a falta que faz a liberdade para andar nas ruas e nos escancara uma juventude que, por enquanto, não podemos viver. Boca a Boca precisa é ser sentida. 

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