Uma Mulher Alta: o olhar da mulher russa sobre a guerra

Isabella Siqueira

O drama histórico Uma Mulher Alta, ou Beanpole, é a aposta da Rússia para Oscar 2020. O filme do diretor Kantemir Balagov é emocionante e brutal. A inspiração vem do livro A Guerra Não Tem Rosto de Mulher da escritora Svetlana Aleksiévitch, vencedora do nobel de literatura de 2015. Na trama, duas mulheres que lutaram no exército vermelho enfretam as consequências do pós-guerra. Ao se basear nessa obra corajosa que dá espaço à vozes esquecidas, Kantemir criou um roteiro original que transborda força e violência trazendo também o espírito da escrita de Svetlana. 

O enredo de Balagov acontece na cidade de Leningrado, em uma União Soviética em escombros no pós-guerra. A história se concentra nas duas amigas Iya (Viktoria Miroshnichenko) e Masha (Vasilisa Perelygina) que tentam reconstruir a vida após lutarem na segunda guerra mundial. A protagonista Iya, ou Dylda –  equivalente russo para “grandona”- , é uma mulher alta e tímida que trabalha em hospital militar enquanto cuida do pequeno Pashka. Ao contrário dessa personagem introspectiva, sua amiga Masha é expansiva e tenta, seja através do prazer físico ou de uma criança, aplacar a dor deixada pela guerra. A atriz Vasilisa Perelygina brilha em demonstrar com sinceridade o egoísmo ocasionado pela tristeza da personagem.  

A cena inicial lidera a intenção da trama. Nela vemos uma Iya sofrendo de Transtorno de estresse pós-traumático. A personagem completamente paralisada e não consegue exibir nenhuma reação durante longos segundos. Esses gemidos sufocados pela protagonista geram desconforto, mas também ditam a proposta do longa. Apesar da esperança, o fim do conflito não apaga os traumas deixados em todo um país. As mulheres e homens soviéticos estão em choque, as pessoas se jogam na frente dos bondes e os feridos se vêem apenas como um fardo para suas as famílias. 

O livro de Svetlana também teve uma adaptação para o teatro, numa peça paulistana de mesmo nome dirigida por Marcello Bosschar (Foto: Divulgação/Companhia das Letras)

O filme também faz em pequenos detalhes um retrato do período em que vários países integravam a União Soviética. As protagonistas, assim como a população russa na época, dividiam a casa com várias famílias nos chamados Apartamentos Comunais (ou Kommunalka) onde, por ordem do governo socialista, havia uma visão coletiva no cotidiano da população. Dessa forma, a vida privada existia junto a limitações.

As duas procuram um significado a vida após o período em que serviram, contudo, o cenário de um país tão deprimido e destroçado é um empecilho. A relação das duas é abalada por uma tragédia causada pela condição de Iya, e Masha passa então a exigir da amiga um sacrifício para preencher um vazio dentro de si. No decorrer do filme a amizade fica cada vez mais tensa, e o carinho se mistura com abusos constantes. 

Na história, a participação feminina soviética no exército vermelho foi sufocada e essas mulheres obtém espaço na obra de Svetlana e seus traumas também são vistos no texto de Kantemir. Em diálogos brilhantes, Masha revela as dores de ser uma mulher no campo de guerra. Afinal, lidar com os abusos sexuais em troca de comida e roupas também é uma forma de sobrevivência. 

As atrizes Viktoria Miroshnichenko e Vasilisa Perelygina interpretam, respectivamente Iya e Masha (Foto: Reprodução)

A menor presença masculina na trama se acentua até na falta de figuras importantes. Valem duas menções: Nikolay (Andrey Bykov) médico do hospital onde Iya trabalha, e Sasha (Igor Shirokov), namorado de Masha. No longa as mulheres lideram os diálogos cruéis e inflexíveis do roteiro. As atrizes estreantes Viktoria e Vasilisa impressionam com a química e exibem sentimentos e traumas sufocados sem a exigência de muitas palavras.

Uma Mulher Alta passa em diversos momentos a sensação de desconforto. O longo silêncio, a falta de diálogos muito longos e os ruídos do ambiente contribuem para construir um cenário melancólico. A câmera é vacilante em várias situações e se aproxima do rosto das protagonistas. Já a fotografia do filme, é insistente em tons de verde fosco e vermelho. 

Com esse seu segundo longa-metragem, Kantemir Balagov recebeu em Cannes, na seção Un Certain Regard, o prêmio de melhor diretor e o Prêmio FIPRESCI (Federação Internacional de Críticos de Cinema) de Melhor Filme, no mesmo festival. A obra consegue ser sensível e perturbadora ao mesmo tempo e constrói bem o cenário pós-guerra soviético em ruínas e a imagem de mulheres que lutam com a dor, física e emocional, deixadas pela participação na guerra. Uma Mulher Alta é uma inspiração corajosa e humana de uma importante obra literária. 

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