Não dá para adorar Elis Regina pelo avesso

Capa do álbum Te Adorando Pelo Avesso de Illy Gouveia (Foto: Reprodução)

Ana Júlia Trevisan

Cantar Elis com certeza não é para qualquer um. Reconhecida até hoje como uma das maiores vozes da Música Popular Brasileira, as regravações de seu repertório não devem ser vistas a título de comparação, mas sempre são como forma de homenagear a cantora falecida em 1982. No entanto, a cantora baiana Illy, uma das novas vozes da MPB estava em bom voo com sua carreira até dar um tiro no próprio pé, falhando friamente na homenagem à Pimentinha em Te Adorando Pelo Avesso.

No álbum lançado em 2020, Illy Gouveia revisita as canções de Elis Regina. O  disco recebe esse nome por conta do trecho da composição de Chico Buarque, Atrás da Porta, regravada por Elis na década de 70. E, partindo do ponto de vista de que a homenagem ficou completamente oposta ao esperado, o nome faz jus ao nome álbum. A capa de Te Adorando Pelo Avesso faz alusão a capa do disco de estúdio Elis (1973) e tem um trabalho de fotografia bem elaborado, mas o álbum escolhido como inspiração não é o de encarte mais marcante, como dos discos 1972 e 1977. Isso faz com que a referência não fique tão clara logo de início.

A música de abertura do trabalho é Alô Alô Marciano, composta por Rita Lee e Roberto de Carvalho em plena ditadura militar. A letra traz a conversa de um humano e um extraterrestre, onde o humano desabafa sobre a situação brasileira, denunciando que está “cada vez mais down no high society”. Na regravação de Illy, a sonoridade, bem feita pelos instrumentistas, não sustenta a fraca interpretação da artista, que deixa apagada a crítica presente na canção, tornando-se apenas mais uma melodia em meio todo contexto que a música pretendia criar.

Depois de Alô Alô Marciano vem a maior decepção do disco: Como Nossos Pais. Hino de uma geração, a composição da lenda Belchior tem uma das letras mais fortes da música nacional. Conhecida por sua atemporalidade, todo grito de resistência e luta social que a música representa foi diminuído a um mero reggae. O que não necessariamente é o problema, mas sim a sonoridade ter mais destaque do que a letra, abafando a História e toda força que essa música representa.

O disco conta com a participação de outros dois cantores de sucesso no cenário atual da música, são eles Baco Exu do Blues e Silva. A participação de Baco salvou a regravação de Me Deixas Louca, música de forte sensualidade, que com sua voz rouca consegue transmitir a energia da canção, já a de Illy não passa nem perto do feito. Mas, se a canção do Exu do Blues conseguiu salvar a gravação, a de Silva contribuiu para afundar um pouco mais Te Adorando pelo Avesso.

O cantor é uma admirável voz da MPB, mas não agregou positivamente na canção Atrás da Porta. A música com o verso que batiza o álbum, conta a história de um divórcio inesperado e sofrido pelo eu lírico do começo ao fim. A regravação começa de maneira boa, redesenhada no estilo certo, no entanto, logo vem o desapontamento. A um certo ponto da música, os artistas transpassam o sentimento de estarem lendo a letra de Atrás da Porta, quebrando qualquer sentimento que o dueto pudesse transmitir.

“A ideia é justamente fazer de forma contemporânea ou até mesmo futurista as músicas que cresci ouvindo”, disse Illy em entrevista para o portal Tenho Mais Discos que Amigos! (Foto: Reprodução)

Ao analisar o instrumental de forma separada das letras é fácil concluir que grande parte de Te Adorando Pelo Avesso foi bem produzida. Digo grande parte pois ele falha em duas canções: Dois Pra Lá Dois Pra Cá e Vida de Bailarina. Na primeira, Illy repete o erro de Me Deixas Louca e não imprime na música a sensualidade trazida na letra. Além disso, ao final foi incluído um conjunto de vozes masculinas que ficou anexada à música mas sem fazer o menor sentido naquilo que já havia sido apresentado ao longo da canção.

Em Vida de Bailarina os erros já começam na introdução, com uma sonoridade que não se encaixa na dramaticidade da letra e nem no conjunto de músicas selecionadas pro álbum. O fator dramático da intensa letra, que traz uma história forte e real, também não é expressa no vocal leve da cantora, que mais uma vez diminui uma música significativa a uma balada desconexa.

O álbum foi lançado após os singles “Alô Alô Marciano”, “Fascinação” e “Querelas do Brasil” (Foto: Julia Pavin)

O arranjo bem pensado de Fascinação poderia ter funcionado de maneira interessante para outras músicas, mas não para a própria. O funk melody não casou com a composição francesa traduzida por Armando Louzada, muito menos com a interpretação feita por Illy. Passando a sensação que houve um desencontro entre a banda e a intérprete, como se a canção tocada fosse totalmente diferente da música na qual a cantora está dando voz. A nova versão se torna completamente esquecível.

O maior problema de Te Adorando Pelo Avesso foi a escolha de repertório, músicas calorosas foram selecionadas para serem interpretadas por uma voz suave que soou fraca. O Trem Azul, original de Milton Nascimento e Lô Borges, foi eternizada com uma interpretação marcante de Elis, com o sentimento passado na canção ainda vivo no imaginário brasileiro por ter servido como hino de resistência a muitos presos políticos durante a ditadura. A faixa tem começo marcante na voz de Illy, mas se desfaz antes mesmo do refrão ser cantado pela primeira vez.

“Bahia, terra da felicidade” (Foto: Reprodução)

A nona faixa de Te Adorando Pelo Avesso, Na Baixa do Sapateiro, apesar de ir na contramão do samba-canção gravado por Elis, é redesenhada de maneira correta, com um gosto diferente do que tinha sido apresentado até então. A regravação de Illy ao ritmo do rock se mostra forte, da forma que é esperada em todo álbum: uma homenagem à Elis que não seja cópia da cantora, mas que tenha a potência que a homenageada merece.

Em Ladeira da Preguiça, a preguiça foi na hora de mixar a faixa. O instrumental apresenta uma sonoridade que nos leva a pensar em Gilberto Gil, compositor da música, entretanto ele ficou desconexo de todo resto da canção. Erro que poderia ter sido evitado durante o processo de mixagem e pós-produção, e que comprova que o processo de construção do disco não ocorreu de forma natural, respeitando as limitações e corrigindo aquilo que fugia das expectativas. 

Se o álbum foi uma sucessão de erros, ao caminhar para o final ele parece tentar se redimir. Querelas do Brasil, composição do saudoso Aldir Blanc, foi a melhor escolha do repertório de Illy. Além do arranjo pensado para a canção casar com a voz da intérprete, é um lado B de Elis essencial que a nova geração tenha conhecimento da letra crítica e denunciante. “O Brazil não conhece o Brazil/O Brasil nunca foi ao Brazil” “O Brazil não merece o Brasil/O Brazil tá matando o Brasil” “Do Brasil S.O.S ao Brasil”.

“Eu cresci ouvindo Elis e me sinto totalmente influenciada por ela e por sua força” (Foto: Reprodução)

A música que encerra o álbum é Vou Deitar e Rolar de Baden Powell e Paulo César Pinheiro, dupla responsável por respeitáveis clássicos da MPB. A quebra de expectativa é positiva nessa canção. Apesar da voz de Illy não sustentar todas as técnicas vocais escolhidas, sua assinatura fica impressa na faixa. O que foi planejado pra esse trabalho é alcançado apenas no final dele. Uma homenagem à Elis Regina que além de introduzir a nova geração ao repertório da cantora, tivesse a leitura e os arranjos feitos pela produção.

Admiro a coragem de Illy ao embarcar numa aventura que lhe traria um mar de críticas devido à importância da inalcançável discografia de Elis Regina. Não há problemas em recriar músicas tão vivas no imaginário coletivo brasileiro, mas o risco é alto. O que faltou para cantora foi uma ajuda técnica na seleção musical,  o lado fã deveria ser deixado de lado fazendo escolhas realistas que se encaixassem em sua voz suave. Cantar Elis é cantar uma parte frágil e sombria da História brasileira. O ritmo contemporâneo, quando não bem sustentado, como aconteceu nesse disco, soa desrespeitoso. 

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