Sonhos e pesadelos na Twin Peaks de Raf Simons

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Matheus Fernandes

David Lynch, Angelo Badalamenti, Cindy Sherman e Martin Margiela. Essas são as influências que guiam Nightmare and Dreams, coleção do designer belga Raf Simons apresentada em 2016 na edição outono/inverno da semana de moda de Paris, a primeira após sua saída da Dior.

Após coleções inspiradas por Kraftwerk (A/W 98 Radioactivity), Manic Street Preachers (A/W 01 Riot Riot Riot) e Joy Division (A/W 04 Closer) é natural a escolha de outro elemento da cultura pop, a série Twin Peaks, cujo auge de popularidade coincide com o período da faculdade do designer, como fio condutor do desfile.

Em sua essência, Twin Peaks segue o arquétipo da ficção de terror: uma cidade pequena e pacata que esconde uma série de segredos, revelados a partir da morte da rainha do baile de formatura. A diferença se dá na condução de David Lynch e Mark Frost, dando tons oníricos e surrealistas à trama, sem perder o ar novelesco. Não é a toa que outros clássicos autorais do terror surgem como inspiração para Simons, como Halloween (1978), Pânico (1996) e A Hora do Pesadelo (1984), esse também marcado pela mescla entre sonho e realidade.

Untitled #153, de Cindy Sherman
Untitled #153, de Cindy Sherman

Cindy Sherman é outro nome que aparece como inspiração central. A fotógrafa se tornou central no mundo da arte há décadas com seus intrincados auto-retratos que capturam de forma onírica tanto o comum (como a clássica garota adolescente em Untitled  #96) quanto o monstruoso. Em sua série “Disasters and Fairy Tales” (notem a semelhança de título), o macabro ganha tons de estranha beleza, como em uma de suas imagens-chave, Untitled #123, que retrata um jovem cadáver sujo de terra, não muito diferente do que dá origem à série de Lynch.

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Modelo de Nightmares and Dreams

No desfile, os modelos caminham desorientados por um ambiente tão misterioso quanto o Black Lodge dos sonhos de Cooper. A trilha inicial é a catártica descrição de Badalamenti do processo de composição de “Laura Palmer’s Theme”, seguida por “Blue Moon”, na versão de Elvis Presley, e “Crimson & Clover”, de Tommy James. Como na trilha de Blue Velvet, as canções tomam ar assustador ao serem recontextualizadas.

Elementos característicos do figurino da série, assinado por Sara Markowitz, são frequentes no desfile. Da onipresente knitwear aos padrões xadrez, que aqui aparecem em casacos e lenços.

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A knitwear destruída é o principal elemento da coleção

As peças-chave aqui são os suéteres oversized repletos de apliques de letras, insignias de escotismo e listras coloridas, símbolo supremo do estilo de vida das high schools. Ainda assim, essas peças estão corroídas e com as letras desalinhadas, mostrando o lado pesadelo do sonho americano, a profanação da inocência juvenil, como o corpo sem vida de Laura Palmer à beira do rio.

A campanha da coleção, referência direta ao trabalho de Sherman
A campanha da coleção, referência direta ao trabalho de Sherman

A ligação do designer com os uniformes escolares é antiga, desde sua primeira temporada, em 1995, com o tema sendo retomado frequentemente em suas coleções. Em 1997, foi a vez da versão punk dos blazers associados às faculdades de elite. Em Nightmare and Dreams, a rebelião não é inspirada mais nos jovens de terno dos internatos europeus, mas nos atletas, como Andrew Clark, de Clube dos Cinco, filme que recebe menção nas notas nos shows.

Nadine e Mike, inspiração nos uniformes da série.
Nadine e Mike, inspiração nos uniformes da série.

Em sua coleção Virginia Creeper (A/W 04), que também tem como localidade o interior da América, o estilista já jogava com as varsity jackets, ainda que em um contexto militarista, mostrando a reapropriação de seus próprios temas.

Fear Generation, coleção que já jogava com sobreposições oversized.
Fear Generation, coleção que já jogava com sobreposições oversized.

Outro exemplo da auto-inspiração é a escolha pelas silhuetas massivas. Simons é creditado (junto do minimalista alemão Helmut Lang) pela ascensão do terno skinny, mas também foi um dos popularizadores do oversized, ainda que não na mesma proporção, em coleções como sua obra definitia Woe unto those who spit on the fear generation… (S/S 02). Essa opção remete ainda ao trabalho do belga Martin Margiela, maior influência de Raf e de toda a moda contemporânea.

Maison Martin Margiela, 1999
Maison Martin Margiela, 1999

As silhuetas, elemento chave de sua costura à partir de sua mudança para a maison Jil Sander, dão o tom apocalíptico do desfile, com o contraste de uma parte de cima alongada e uma parte de baixa justa, composta de calças de alfaiataria skinny e botas militares com detalhes em camurça, peça que captura bem o espírito de rebeldia com beleza e sensibilidade que norteia sua obra.

As jaquetas massivas da coleção.
As jaquetas massivas da coleção.

Da juventude techno europeia, sai a bubble jacket, a jaqueta longa com insulamento térmico próprio para o frio, hit noventista junto de Air Max 97s, item que marcou presença em coleções recentes da marca streetwear Supreme e da Vetements de Demna Gvasalia. O artefato se tornou o maior hit da coleção fora das passarelas, sendo adotada por celebridades como a cantora Rihanna.

Posteriormente, o belga assumiu a direção criativa da Calvin Klein, e, com sua mudança para os Estados Unidos passou a se dedicar integralmente à americana. Nightmares and Dreams, porém, continua um de seus principais trabalhos recentes, combinando as duas fases de sua carreira: a juventude e as referências pop de seus primórdios, que o tornaram destaque mundial, e o cuidado com a construção do período pós-2004, em uma obra de beleza inquietante.

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