Pavement e o impulso para seguir em frente

screw the RIAA (não fui eu que botei isso aí mas concordo)

Nilo Vieira

Discutir música é um negócio complicado, seja pelo nível de abstração da arte ou pelo quão obsessivo (tradução: mala) você seja em relação ao assunto; “música é difícil de explicar porque ela é muito fácil de se entender”. Não sei se é uma citação real, mas faz sentido o suficiente: às vezes, exercícios solitários acerca da arte são mais proveitosos do que discussões coletivas. Se divertir com as próprias interpretações é um belo alimento pro ego e divertidíssimo, afinal.

Em termos de som, a experiência de encontrar um grande disco talvez só esteja abaixo da redescoberta do poder de obras antes menosprezadas por nós. No meu caso, a bola da vez é Wowee Zowee (1995), terceiro álbum da entidade do indie rock Pavement. Um trambolho com 18 músicas, sucessor do seminal Slanted and Enchanted (1992) e do inquestionável Crooked Rain, Crooked Rain (1994); várias músicas ali pareciam inacabadas ou estendidas por nenhuma razão coerente, sem nenhum hit bombástico. O tracklist como um todo é uma montanha-russa desgovernada, sem uma narrativa aparente.

A contracapa do disco e os membros preocupadíssimos em ser o próximo Nirvana
A contracapa do disco e os membros preocupadíssimos em ser o próximo Nirvana

Spiral Stairs, guitarrista e fundador do grupo, o avaliou como o pior LP da banda recentemente. Bryan Charles, autor do livro sobre o disco para a série 33 ⅓ (Bloomsbury), admitiu que este era o registro da banda que menos havia escutado por anos – idem Lucas Marques, o maior fã de Pavement da Unesp Bauru (e meu primeiro contato nela), dotado de paciência e parcimônia budistas para analisar arte. O esforço das revisões não deve valer a pena. É só um disco bem legal e pronto, não há necessidade de ser uma obra-prima como os antecessores. A essência da estética slacker, da qual o líder Stephen Malkmus é peça-chave, é essa mesmo.

Deleta o disco. Tá, não apaga tudo, deixa só as melhores: Wowee Zowee tem boas ideias, mas, acima disso, MUITAS delas. Bah, mantenha ele onde está, você tem espaço sobrando. Ok, já que você nunca irá comprar o disco físico, passe os arquivos mp3 pro seu celular novo; na pior das hipóteses, 56 minutos de música ajudam a passar o tempo.

“Eles nem mesmo parecem estar tentando” – Beavis & Butthead sobre o elaborado clipe para o primeiro single de Wowee Zowee

Eu teria muito tempo pra passar em uma semana, na minha primeira viagem sozinho fora do país. Ainda no avião, coloquei os fones e dei play: “Nós vamos dançar/ mas ninguém dançará conosco/ nesta cidade boba”, cantava Malkmus em “We Dance”. Diferente dos outros discos, a abertura de Wowee se dá com uma faixa serena, distante das tradicionais guitarras ruidosas que marcaram o Pavement. É como se fosse um bis após o final de Crooked Rain, com a épica “Fillmore Jive”: a calmaria após a tempestade, ou só Stephen voltando ao palco com um violão e dizendo “ok, gente, vamos tentar algo diferente agora”. Como bem aponta Marshall Gu em sua resenha, qualquer outra banda teria colocado a faixa como um encerramento dramático para o disco. Bryan Charles é igualmente enfático em seu livro:

We Dance inicia com uma piada freudiana, e então muda para os anseios silenciosos que ele [Malkmus] faz tão bem. (…) O apelo para mim, desde o começo, foram as entrelinhas. Onde alguns viram apenas sarcasmo ou distanciamento, eu maliciosamente vi medo mascarado, alegria, tristeza, luxúria.

Perdido nas ruas de Barcelona, dei play no disco mais uma vez. Não pra me sentir menos sozinho, mas pra ter alguma trilha pra caminhada de uma hora imposta pelo Google Maps. Os slides de guitarra em “Black Out” são executados com uma firmeza que sugere movimento, mas soam leves como uma brisa aleatória num gramado qualquer. “Rattled by the Rush” é Malkmus brincando de guitar hero, em um solo tão bem lapidado quanto espontâneo.

E lá está o imbecil, quase sendo atropelado por carros, na ciclovia, ou mesmo pelas pessoas com pressa na calçada porque se empolgou com as músicas no celular. Maturidade é só um conceito pra alguns tentarem impor superioridade sob outros: como alguém taxa “Brinx Job” como filler? Meu deus, é a melhor interpretação de Can já feita por alguém que não eles! E tem “Grounded” logo depois.

Dine by candle light and hold your savings tight

You never, you never know

When the bridge falls apart

We spoke of latent causes sterile gauzes

And the bedside morale

We traipse around the table talking sentences

So incomplete… plete! please!

Boys are dying on these streets… *bend dramático na guitarra*

Aí está. O grande triunfo lírico de Stephen Malkmus não está em criar narrativas lineares: é na forma em que ele amarra fragmentos da realidade, em um fluxo de consciência onde tédio e ansiedade convergem. Não é como se ele não estivesse se esforçando e apenas jogando palavras ao ar; é a urgência em apenas seguir adiante. Meses antes do Oasis estourar com “Wonderwall” em 95, o Pavement já tinha “AT&T”, que inicia com “Maybe someone’s gonna save me”. Ao contrário do romantismo dos Gallagher, Malkmus prega a superação sem dependências de outrém, quase como em um karaokê bêbado. “GO!/ Whenever, when-n-n-n-ever I feel fine, I’m going to walk away from all this all that”.  A postura desleixada slacker não é perante às composições, e sim aos formatos impostos como regras: observe como a entrega dos vocais se relaciona com o instrumental fragmentado da canção.

É. São muitas ideias colocadas em Wowee Zowee, sucessiva e/ou simultaneamente. No fim, minha cabeça funciona de maneira similar, ainda que sem as boas melodias. É, talvez. Definitivamente: semana passada, uma menina que eu já tinha visto virou pra mim no ônibus em Bauru e só falou.

Você sabia que, no topo de uma montanha-russa, a inércia faz com que seus órgãos parem por instantes e então todo seu corpo fica frio?

Foi a coisa mais aleatória que alguém me falou na vida, e uma das mais fofas também. Conversamos o resto do trajeto, e eu estava com a cabeça tão centrada em Barcelona que esqueci de perguntar o nome da moça. Ela desceu do ônibus, e então chegou no meu ponto. O “why didn’t I ask? why didn’t i ask?” de “Kennel District” veio imediatamente à mente. Tão simples, tão pegajoso, tão escorregadio. Desci até a sala do Persona.

Semanas antes, tinha entrado pela primeira vez naquele lugar. Coloquei “Fight This Generation”, minha favorita do álbum. O título é certeiro, e se transforma em um mantra na parte central da canção. A mesma música que, tempos atrás, cantei sozinho na rua após ir embora de uma festa modorrenta agora entoava em um lugar que me dava alguma esperança. Lute contra esta geração. Faça alguma coisa da vida.

Das melhores coisas do jornalismo musical: financiem a série 33 1/3, pelo amor
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Eu ainda não achava o disco uma obra-prima, mas o magnetismo que ele exercia sobre a minha rotina só expandia. O livro de Bryan Charles não havia me convencido de que este era o melhor registro do Pavement. Porém, a análise poética foi inspiradora como poucas obras na minha vida, ainda mais se tratando de algo tão específico e complexo: crítica musical. Uma leitura tão boa que não me importei de emprestar meu exemplar ao grande Lucas Marques; aquilo ali precisava ser compartilhado, em especial com quem gosta do tema. Jornalistas? Críticos musicais? Balela. Estamos tão perdidos e alienados quanto às pessoas que julgamos estar. Criamos vínculos por gostar das mesmas bandas ou apenas por rir das impressões mirabolantes do outro. O abstrato pessoal se junta no coletivo concreto, por mais cafona que possa soar.

Mas não teve jeito. Wowee Zowee só me atingiu com força plena em uma viagem solitária. Volta de São Paulo, confuso com tantas coisas desaguando naquele fim de semana. A tia retornando pra UTI em São José do Rio Preto, meus pais mudando os planos para visitá-la, eu mantendo os meus e passando o dia com uma pessoa muito querida, com a cabeça nos dois lugares e evitando transparecer um lado para o outro com medo de represália moral. A sensação de não ter falado tudo que devia para nenhuma pessoa.

E tinha Bauru, onde a divertida festa de sábado parecia estar novamente desfarelando perante as brigas de camaradas e a sensação de que talvez estejamos em um caso irreconciliável. A consciência de que não adiantava mais fazer o papel de mediador quando eu mesmo estava irritado com a situação veio à tona, acentuada pelo frio repentino (acentuado pela minha falta de blusas na mochila). Tudo ao mesmo tempo. Só uma opção de trilha sonora em minhas mãos parecia condizer.

Maybe we could dance. Together, together.

I don’t – need – this – corporation attitude!

And the laps i swim from lunatics don’t count

Your western homes are locked forever, the new frontier is not that near

Audição encerrada. Nem tudo no disco faz sentido ou é bom. O conjunto, todavia, é uma ilustração pulsante e sincera de toda essa bizarrice que nos cerca, por desleixo ou iniciativa própria. Pra esta semana não temos nenhum texto programado ou pauta em desenvolvimento pra lançar. Vou escrever sobre a minha experiência com Wowee Zowee, sem gancho temporal algum. Talvez irrite alguns, mas dane-se. Dê play no disco, escreva. Siga em frente – é a única opção.

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