Napalm Death: 30 anos depois, o barulho ainda é a resposta

Napalm Death
“A Terra de onde todos evoluímos / essa Terra em que todas as pessoas são oprimidas / oprimidas por pessoas que prosperam da exploração / oprimidas por aqueles que infestam suas mentes fracas” (Foto: Reprodução)

Gabriel Leite Ferreira

“A arte reflete a vida. Tempos extremos demandam respostas extremas. Silêncio é ridículo. Barulho é sempre a resposta.” Essa é a frase de abertura da biografia virtual do Napalm Death, pioneiros da música extrema – mais especificamente do grindcore, subgênero notório pela velocidade alucinante e vocais ininteligíveis. O grupo foi fundado em 1981 no interior da Inglaterra, mas somente em setembro de 1988 gravou sua obra definitiva, aquela que consolidou uma das formas mais peculiares de se fazer música pesada.

Em 1982 a Grã-Bretanha e a Argentina se enfrentavam na guerra das Malvinas. A vitória britânica impulsionou Margaret Thatcher e o Partido Conservador à eleição. From Enslavement to Obliteration resume o clima caótico já na icônica capa, enquanto o título (“da escravidão à obliteração”) parece uma reinterpretação niilista da frase “de Gênesis à Revelação”, primeiro e último livros da Bíblia, respectivamente.

Toda forma de arte é intimamente ligada ao contexto social, político e econômico do local em que se dá, e no caso do Napalm Death a contextualização é ainda mais necessária porque um(a) ouvinte desavisado(a) pode taxar o som da banda como barulho incompreensível de bate pronto. Não que exista uma preparação adequada para a agressividade dos 30 minutos distribuídos em 22 canções (mesmo a abertura cadenciada com “Evolved as One” pode chocar e/ou irritar pela repetição e pelas guitarras dissonantes), mas, acredite, há muito mais do que massacre auditivo gratuito por trás do ND.

Napalm Death
Bill Steer, Shane Embury, Lee Dorrian e Mick Harris: garotada bem apessoada (Foto: Reprodução/Getty Images)

Na vanguarda

O Futurismo foi uma das manifestações mais drásticas das chamadas vanguardas europeias, tendências artísticas de rompimento com o status quo europeu no início do século 20. O manifesto futurista publicado em 1909 afirmava, entre outras coisas, “o amor ao perigo, o hábito da energia e a intrepidez” e a exaltação da “ação agressiva, uma insônia febril, o progresso do corredor, o salto mortal, o soco e o tapa”. A estética do Napalm Death tem pontos de contato fundamentais com essa filosofia.

Em primeiro lugar, eles são vanguardistas no estrito senso da palavra. Em entrevista à Kerrang!, o baixista Shane Embury disse: “Nós não estávamos tentando quebrar regras conscientemente, mas não estávamos prestando atenção a elas também.” Usando um vasto leque de influências do underground da época, do pós-punk ao death metal, transcenderam o hardcore, criaram uma nova fórmula de som extremo e quiçá chegaram aos limites da música – afinal, qual a diferença entre a lendária “You Suffer”, a menor música do mundo segundo o Guinness, e os ruídos de uma cidade grande? Daí a exaltação à “ação agressiva” do Futurismo.

Os futuristas pregavam também a glorificação da guerra e o combate ao feminismo. Nesse ponto, o grupo está no extremo oposto: as letras de From Enslavement abordam questões como a crueldade dos conflitos bélicos, a ganância dos grandes capitalistas e o machismo. Se em 2018 esses assuntos são espinhosos, imagine em 1988 em uma cena punk que pregava o anarquia e ao mesmo tempo reproduzia sexismo? Também por essa razão a banda sempre habitou um nicho muito particular.

Nesse caso, por que prejudicar a compreensão da mensagem ao optar por vocais que não raro se aproximam de vômitos? Aí está a dualidade primordial do Napalm Death: criticar o sistema capitalista de forma tão violenta quanto ele próprio, assim devolvendo toda a opressão na mesma moeda. Não há como escapar dos urros ora esganiçados, ora graves, dos riffs cirúrgicos, do baixo imundo e dos famigerados blast beats que formam a massa sonora sufocante tal qual o ritmo de trabalho das indústrias modernas. Mesmo desligando o som, o mundo lá fora continuará rodando e trucidando os despossuídos.

Participação da banda no programa What’s That Noise, da BBC: pitoresco é pouco

O que resta é se expressar com os meios disponíveis e da forma como bem entender para dar conta do prejuízo emocional. Sim, emocional; From Enslavement bebe da fonte do death metal, mas passa longe da frieza lírica e técnica deste. Por trás dos discursos igualitários há um profundo sentimento de inadequação (vide títulos como “Social Sterility”, “Emotional Suffering” e “Mentally Murdered”), algo incômodo e inexprimível por meio de palavras bem articuladas. Fazendo uma analogia mais atual, é como o uso do auto-tune para distorcer vozes até os cantores ficarem irreconhecíveis.

Surpreendentemente, o Napalm conseguiu um lugar no imaginário coletivo britânico, mais pela peculiaridade do som que por qualquer outro motivo. A participação deles no programa What’s That Noise da BBC, por exemplo, chega às raias da comédia. Também encontraram apoio importante no rádio através de John Peel, notório incentivador do underground na Inglaterra. Sem mencionar a gravadora dos primeiros álbuns, Earache (“Dor de ouvido”),  um dos selos independentes mais importantes do mundo, especializado em música extrema e sem concessões.

Ao vivo em 2012: mais brutais do que nunca

Trinta anos depois, eles continuam firmes e fortes, provando de uma vez por todas que existe vida além do mainstream. Inclusive, os brasileiros puderam testemunhá-los ao vivo mês passado: foram 9 shows com o Cannibal Corpse nas principais capitais. Interessante mencionar que a formação do grupo mudou drasticamente, bem como a sonoridade. Por outro lado, o inconformismo e a resiliência não diminuíram um milímetro. O planeta continua tão cruel e extremo como em 1988 e o silêncio não é opção. Barulho é sempre a resposta – questão de sobrevivência.

3 comentários em “Napalm Death: 30 anos depois, o barulho ainda é a resposta”

  1. 1ª PARTE

    Obrigadíssimo por postar um texto sobre uma das três obras primas que compõem o que os caras da Inglaterra já fizeram de melhor (Scum, FETO e Mentally Murdered EP). Sem Lee Dorrian, SEM Napalm Death.

    A formação com Dorrian e Steer representa muito em minha vida. Foi a trilha sonora (ou parte dela) que eu usei em minha fase pré-graduação (1º Sem. 1997). A traseira do F.E.T.O., com as fotos dos caras em provável ensaio deles, num “local nojento e feio”, conforme um amigo meu, em contraste com o tom rosa (coisinha fôfa, heh-heh) é de autoria que eu desconheço até hoje e, em virtude disso, amaria saber o nome do “Photoshooter” por trás dela.

    No Equipboard.com eu li que Steer usou um “Big Muff Green Russian Pi” tanto no “From…” quanto nas “Peel Sessions”. Maaaan, I can’t believe. Semprei achei que fosse um Boss Distortion ou algo assim… Tão “podre” que soa. Discão do KCT! F***stico! Ademais, a influência dos Swans sobre Harris e Embury aqui assume um nível muito alto. A intro (o som “Evolved As One”, “Desenvolvido Em Sua Totalidade”, em tradução livre) é beeeem “Swanica”, percebe? E contrasta com o restante do disco. Os riffs dela foram “reaproveitados” no instrumental “The Curse”, que dá nome a um EP posteriormente adicionado a uma versão mais atual do F.E.T.O. Deus… O Bônus “Internal Animosity”, cuja letra ainda hoje “peermanece” DESconhecidíssima de todos nós, parece versar sobre a “animosidade interna” entre os membros da banda. Dorrian, é consenso isso, ficara infeliz com os rumos comerciais que a banda tomava e resolveu partir. Uma perda significativa para o ND! Depois, Steer. Naaaada contra o Barney, puta vocalista, mas sua entrada conferiu um som mais “americanizado” ao ND, deixando de lado sua “grindcority” para assumir um tom bem mais Death Metal from Tampa, Florida (audi-visível em “Harmony Corruption”, 3º disco da banda). Não um disco ruim, nada disso. Mas nem sombra do som que os caras faziam.

  2. 2ª PARTE

    Em termos técnicos, creio que as guitarras do “From…” tenha eliminado um pouco os tons médios; isso é particularmente interessante de ser feito quando se pretende um tom mais sombrio e adequado ao metal extremo.

    Espero não ter ofendido nem magoado ninguém com esse meu palavrório, essa minha verborrágica manifestação metálica. E, de igual modo, agradeço: a) pelo Post de utilidade musical/artística e b) pela Paciência e Respeito caso publicar esse meu comentário.

    W. Venom Metalhead (Wellington Vinicius Fochetto Junior; autor de livros [poesia concreta/verbovisual e ficção] e professor de língua portuguesa e literatura, com pós-graduação em Saberes e Práticas em Língua Portuguesa. Ah, sim: publicitário registrado na Delegacia do Trabalho em SP. Porém, não atuante no meio do marketing. E apaixonado por fotografia. Atualmente em vias de voltar a arranhar guitarra e distribuir, previamente sem fins lucrativos, demos de seus projetos musicais — com enorme influência do Napalm Death, sua banda do coração).

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