The End of Evangelion e a transcendência violenta

O pôster original traduzido em inglês: bastante convidativo para um programa de fim de semana
O pôster original traduzido em inglês: bastante convidativo para um programa de fim de semana

Nilo Vieira

Os 26 episódios de Neon Genesis Evangelion já bastariam como justificativa para o culto quase fervoroso acerca do anime: seu teor filosófico ainda ecoa fortemente na geração Y, cada vez mais acometida pela depressão, e dialoga também com a parte de pancadaria da série. O único possível porém seria para o final que, apesar de compreensível em seu tom mais leve (não à toa, virou meme), talvez não fosse o ideal e nem o mais realista – nós adoramos desfechos felizes para distúrbios existenciais, mas não nos contentamos sem ver toda a trajetória sofrida do protagonista que, no fim, tomamos como projeções de nós mesmos.

Isso mudou no ano de 1997, com a estreia do filme The End of Evangelion. O longa foi concebido por Hideaki Anno como um encerramento alternativo para a saga – as duas partes da película funcionam como substitutas para os capítulos 25 e 26 da TV – e funciona muito bem como tal. Mas essa definição é muito limitada, ainda mais para uma das obras mais viscerais projetadas em tela; se a própria ideia de fornecer duas opções como finais já carrega grande complexidade semântica, a execução de Anno eleva as coisas a um patamar ainda maior. A existência per se de uma dualidade não basta para o diretor, e este faz questão de não utilizar didatismos em nenhuma ocasião.

O final do anime: quando um meme é um dos maiores spoilers divulgados na rede

Se a amistosidade dos aplausos recebidos pelo protagonista Shinji Ikari na televisão impõe certa dificuldade para o espectador, acostumado com a verve caótica do enredo, a versão em cinema mexe com a sensação de desconforto em níveis ainda mais doentios. Um breve resumo sobre o enredo confunde mais os leigos da série do que esclarece, e acaba por não englobar todos os prismas pincelados ao longo de uma hora e meia. Tratemos de um modo menos específico, então.

Como filme de guerra, The End of Evangelion é quase tão apocalíptico como a obra-prima russa Vá e Veja (1985), tanto por seu realismo impiedoso quanto pela natureza gráfica: os protagonistas são adolescentes imaturos e confusos, e logo se veem no centro de um conflito armado que não só não poupa mulheres e jovens, como mostram estas mortes de maneira explícita. Hideaki também já trabalhava com a ideia de que o ambiente virtual seria parte intrínseca do cenário bélico e, mesmo vinte anos depois, a tensão política do enredo parece não ter envelhecido um segundo; militantes inflamados de qualquer espectro político podem encontrar paralelos no filme com a atualidade. Acima de tudo, porém, o filme acerta ao cravar que “o ser humano é a única espécie capaz de odiar seus semelhantes”.

O quadro O Grito, de Edvard Munch, claramente foi inspirado no momento acima

Na esfera psicológica, essa contemporaneidade é ainda mais interessante. Shinji, piloto da unidade 01 dos Evangelion (os robôs gigantes que não são robôs, e sim tentativas de recriação da imagem de deus), tem o destino da humanidade em suas mãos, mas ainda é uma criança deprimida e confusa com os limites da pŕopria libido. Valeria a pena salvar o planeta do Terceiro Impacto (aniquilação em massa) se temos medo das pessoas? É no ato de abraçar estas contradições que mora o diferencial da obra. Ao contrário do que prega o simbolismo-fatalista-pós-moderno-onde tudo é literal, o ser humano não necessariamente é apenas uma coisa o tempo todo.

Nenhum personagem do núcleo é unilateral. O desenvolvimento das mulheres em Evangelion merece menção especial, nestes tempos: ainda que rodeadas por certo misticismo, todas são figuras imponentes. The End of Evangelion nos lembra que essa multipolaridade de personalidades causa estranhamento por ser algo muito individual, mas que estas particularidades são comuns a todos os seres humanos. Cabe a cada um compreender os limites do outro, antes de impor julgamentos como verdades absolutas.

Clássica fração da cena inicial: dos momentos em que você percebe que VAI DOER
Clássica fração da cena inicial: dos momentos em que você percebe que VAI DOER

O diretor utiliza das próprias estruturas técnicas para brincar com essa dualidade. A trilha sonora para os momentos violentos é composta por música erudita ou pop, e tal contraste extrai beleza do horror, ao passo em que a experimentação com quadros fora da animação e narrativa fragmentadas mostram a real importância da quebra da quarta barreira. Não se trata da obra falar com o público por questões de vanguardismo. O caso aqui é emergir o subconsciente de cada espectador e mostrar que a barreira entre ficção e realidade na arte é ele, e não o artista, quem deve estabelecer ou romper.

As nomenclaturas religiosas transpostas para a área militar em Evangelion, por exemplo, não são simbólicas. São práticas. Todo um sentido foi apropriado e reconstruído. A função da arte não deve ser a de fornecer respostas em uma existência representativa, e sim a de incitar perguntas em um processo ativo. Na obra-prima de Hideaki Anno, esta tarefa é cumprida com louvor, e cada revisão impressiona mais. Não porque os elementos centrais se sustentam sozinhos: a cada nova observação, detalhes novos surgem no horizonte. Os eternos debates sobre a famigerada cena final são o melhor exemplo; uma interpretação plausível não precisa ser a única. O conforto da sensação de familiaridade se une à consciência de que sempre existirá algo além da superfície para explorar. Transcendência é a palavra.

DisINALIEN

Ainda mais gratificante que analisar trabalhos com tamanha potência é reparar como outros artistas utilizam deles, como base para suas criações (ou interpretações, talvez) igualmente poderosas. É o caso do último disco do trio de grindcore Discordance Axis, The Inalienable Dreamless (2000). A influência de Evangelion é escancarada já nos títulos das canções (“Angel Present”, “The Third Children”, “The End of Rebirth”), e o conteúdo sonoro também se relaciona com a estética perturbadora do filme. Os vocais de Jon Chang pegam a expressividade dos gritos de Shinji em The End of Evangelion e a transforma de algo pontual para uma experiência maior e mais desafiadora. A alternância entre gritos e urros graves profundos aumenta o peso do álbum, e nos lembra da questão de várias possibilidades em uma personalidade.

Já suas letras (sim, elas existem no meio da gritaria!) mostram um teor poético incomum para o gênero, e isto vai além da citação de T.S. Eliot em “Pattern Blue”. Seus versos conciliam metáforas oníricas a descrições angustiantes, e sua abordagem intensa não se prende a métricas padrões – vide a cataclísmica “A Leaden Stride to Nowhere” e seu tempo esquisito. “The Necropolitan” é um bom exemplo do lirismo de Chang, quase plathiano em sua rejeição à natureza e na agressividade em que trata a intimidade humana:

The last few years here seemed a lifetime

 

(Sincerly) alone again I masturbate

But it feels more like rape

 

Lean back and bask bask in the sunshine

Even it doesn’t make me seem seem more alive

 

Poisonous cares without words are expressed

How could I resist such a polite feign of death

Touch me oh please I want to know that it’s real

And if it’s not it’s better just to pretend

O instrumental não fica atrás. Curioso notar como a banda soa tão plena em seu peso sem grandes recursos: os bumbos suprem a ausência de baixo, os timbres monstruosos de guitarra são obtidos com afinação apenas em um tom abaixo e os acordes dissonantes executados por Rob Marton nas cordas são relativamente fáceis de aprender – como mostram os arquivos compartilhados por Andrew Childers, autor de um livro sobre o álbum, em seu blog. Impressiona também o quão cinematográfica a banda soa, variando de riffs esquizofrênicos à transições mais tradicionais em músicas que, não raro, não chegam a dois minutos de duração. O disco inteiro soma 23 minutos, espalhados em 17 faixas, tempo equivalente a um episódio regular de Evangelion.

A intensidade da banda transposta para o palco em sua apresentação final: o guitarrista que gravou o disco abandonou o grupo antes da turnê por ter adquirido convulsões por ficar muito pertos dos amplificadores (pelo vídeo, parece legítimo)

Ainda que existam debates sobre o grindcore ser ou não subgênero do metal, é uma imbecilidade não aceitar The Inalienable Dreamless como parte do estilo. Toda a estética do LP dialoga com obras do mesmo período, tidas como seminais no metal moderno (ou metal alternativo, como trata o jornalista Luiz Mazetto nos livros Nós Somos a Tempestade), e essa aproximação do Discordance Axis com temas tabus (baseados em anime, mídia tabu no gênero), abordados de modo filosófico em um produto tão compacto é de uma vanguarda notável. Não à toa, é um dos poucos títulos do grindcore onde críticas fazem questão de mencionar beleza, por mais contraditório que possa soar. A bela capa pode sugerir contemplação, mas o conteúdo emana uma aura quase invasiva: não é possível sentir essa música e permanecer indiferente, assim como não dá pra ficar ileso às provocações do filme.

Cabe citar a fala mais marcante do filme: o destino da destruição é também a alegria do renascimento. Afinal, a transcendência real é um processo violento, que demanda conexões com faces grotescas da existência para só assim enxergarmos de outra maneira e experinciarmos sensações legitimamente novas. The End of Evangelion e The Inalienable Dreamless podem ser pontos finais nas trajetórias dos artistas, mas ainda representam grandes aberturas iniciais para quem estiver disposto a encará-los de maneira profunda. Só entre no maldito robô, Shinji.

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