Entre sustos e risos, M3GAN brinca com a reinvenção do ‘terrir’

Cena do filme M3GAN. Na cena, do lado direito, de perfil, há a atriz Violet Mcgraw, branca e com cabelos longos castanhos escuros. Ela veste uma blusa com estampa de flores. No centro esquerda, está sentada a boneca M3GAN. Branca e com cabelos loiros, ela veste um vestido sobretudo bege com um laço azul, amarelo e vermelho na gola. O sobretudo tem mangas curtas. A robô usa camisa de manga longa listrada cinza e bege abaixo do sobretudo. Na direita, de perfil, está a atriz Allison Williams, uma mulher branca com cabelos longos castanhos e que veste uma blusa de manga longa cinza. O fundo da foto é iluminado, com cortinas e almofadas variadas
Mais de 300 mil pessoas foram rir e se assustar nos cinemas nacionais com M3GAN, filme da Blumhouse que mistura diversos gêneros cinematográficos (Foto: Universal Pictures)

Felipe Nunes

Quem nunca teve medo de uma boneca durante a infância que atire a primeira pedra. Por meio de lendas, séries e filmes, a vertente do terror associada aos brinquedos ficou enraizada no imaginário coletivo popular cultural. O fruto disso foram as célebres sequências envolvendo bonecos sobrenaturais, como a franquia de Chucky e a de Annabelle. Se, no passado, estas obras foram as responsáveis por aterrorizar as crianças, agora, o brinquedo da vez – robô, na verdade – é M3GAN – uma boneca androide que é tão maldosa quanto seus antecessores, mas que, pela primeira vez, não é alvo da possessão de nenhum espírito maligno e sim da própria tecnologia da qual foi criada.

A história central de M3GAN gira em torno de Cady (Violet McGraw), uma jovem garotinha que fica órfã ao perder seus pais em um acidente de carro e é encaminhada para a casa de sua parente mais próxima, sua tia Gemma (Allison Williams). A nova tutora não almejava ter as responsabilidades de cuidar e educar uma criança pré-adolescente e que, como qualquer outra dessa faixa etária, carece de atenção, zelo e – o mais difícil para a mais nova ‘mãe’ -, afeto. Da mesma forma, a sobrinha também não sonhava em passar por essa avalanche sentimental, saindo da casa que vivia e da escola que estudava, sem nunca mais ver os pais com quem sempre conviveu.  

Tia e sobrinha unidas pelo infortúnio do destino. O gancho inicial da produção serviria muito bem para um longa dramático, em que ambas precisam aprender a viver suas novas realidades juntas. Porém, o filme rapidamente subverte essa narrativa e aniquila qualquer resquício dessa impressão. Ao invés de arcar com o compromisso de cuidar de Cady, Gemma tem uma ideia: aprimorar um projeto robótico e fazer com que ele cuide da sua sobrinha. Isso porque ela precisa inovar um brinquedo para empresa que trabalha, assim como também tem a necessidade de que alguém cuide da familiar. Por isso, investe no protótipo e tenta resolver dois problemas com uma única solução. Dessa forma, a grande vilã M3GAN (Model 3 Generative Android ou Androide Gerador do 3º Modelo), interpretada por Amie Donald e dublada por Jenna Davis, é criada no primeiro ato.

Cena do filme M3GAN. Na cena, há, do lado direito, uma boneca humanóide branca com cabelos loiros, ela veste um sobretudo bege com um laço azul, amarelo e vermelho na gola. O sobretudo tem mangas curtas. A robô usa camisa de manga longa listrada cinza e bege abaixo do sobretudo. Do lado direito, há Cady (Violet McGraw), uma menina branca com cabelos castanhos escuros e que veste um casaco verde. Ela e a boneca brincam com as mãos dadas e estão sobre uma paisagem arborizada.
A obra é uma crítica aos pais que não passam tempo com os filhos e os deixam o tempo todo em frente a televisores, celulares e tablets (Foto: Universal Pictures)

Como na maioria das obras cinematográficas de terror, o ato inicial de M3GAN é incumbido de ambientar a trama. Tudo parece fluir com o desenvolvimento da boneca animatrônica: Gemma tem mais tempo para se dedicar ao trabalho sem se preocupar com a criação da sobrinha, já que a boneca é quem cuida de tudo. À princípio, a jovem Cady não vê problema nisso, porque finalmente tem alguém para cuidar dela e escutá-la. No entanto, uma grande reviravolta começa, aos poucos. À medida que fica na companhia do brinquedo, a personagem de Violet McGraw fica cada vez mais dependente emocionalmente dele e transfere para o robô o carinho que nutria pelos seus falecidos pais. Enquanto supre a carência de Cady, M3GAN é sobrecarregada com a chuva de informações que uma criança em desenvolvimento pode transmitir e solicitar ao decorrer de seu dia a dia na era tecnológica. 

Eis o diferencial do filme, que tem o roteiro assinado por James Wan e Akela Cooper: a tecnologia e a sua relação com o desenvolvimento infantil. Uma obra futurista de terror que mistura comédia e ficção científica parece ser uma combinação improvável. Esses elementos destoantes, que até então pareciam formar uma junção desarmônica, se unem em uma nova abordagem cinematográfica com fortes raízes no subgênero ‘terrir’. Por essa razão, a grande aposta do longa é  fazer o telespectador, principalmente aquele que ama cultura pop, rir e sentir medo ao mesmo tempo. Sentimentos conflitantes, mas que exalam a sensação tida assistindo a nova obra da produtora Blumhouse.

As risadas são garantidas pelas inesperadas ações de M3GAN, que vão desde uma dança do TikTok, logo antes do assassinato de um cidadão, até a playlist excêntrica que transita entre Titanium, de  Sia e David Guetta, e Wrecking Ball, de Miley Cyrus. Já o medo é ambientado com as mortes que a boneca promove a cada pessoa que, de acordo com suas impressões robóticas sensoriais, oferece algum tipo de risco à Cady. Na verdade, o medo da vilã não é que alguém arrisque a integridade física e mental da personagem interpretada por McGraw e sim interfira na doentia relação que ambas criaram. Por isso, com um jeito animalesco e amedrontador, ela executa qualquer pessoa ou animal que vire um obstáculo em seu laço com Cady. 

Cena do filme M3GAN. Na cena há a atriz Allison Williams, uma mulher branca com cabelos longos castanhos e que veste uma blusa de manga longa azul. Por baixo dessa blusa de manga longa azul, ela veste uma blusa branca. A atriz olha um computador. O fundo da cena é uma sala desfocada com quadros variados.
Allison Williams brilha na interpretação de uma engenheira robótica que não sonha com a maternidade, mas se vê obrigada a assumir esse papel (Foto: Universal Pictures)

A produção brinca muito bem com essas diferentes facetas. Porém, em muitos momentos, a obra escancara o seu viés mercadológico e isso não agrada – essencialmente, quando negligencia assuntos que mereciam atenção ao enfatizar a publicidade que se reverbera dentro e fora da ficção. Diversas questões importantes são levantadas – como a relação de crianças com o luto e os danos da utilização de brinquedos e equipamentos tecnológicos em excesso – mas, todos os pontos são abordados de forma totalmente superficial. Embora o gênero a qual pertence não seja focado exclusivamente na construção dos personagens e no desenvolvimento das temáticas sobre as quais discorre, M3GAN falha em sustentar as situações que apresenta e se perde na proposta disruptiva que a todo momento tenta destacar na composição narrativa.

Já a direção de Gerard Johnstone é assertiva e equilibrada. O arco de M3GAN e toda sua construção vilanesca é um dos acertos da obra, desde as cenas iniciais da criação da boneca até as catárticas mortes provocadas por ela. Tudo isso vem com a representação de uma personagem que não é humana, mas que atrai a atenção de quem assiste e, mais do que isso, revela os porquês que a fizeram ser quem ela é: um robô androide assassino, mas com uma aparência totalmente doce e meiga. Um dos diferenciais da produção é desmistificar a ideia de que, para ser assustador, é necessário ser grotesco e monstruoso imageticamente. Com isso, a produção enfraquece as analogias que poderia sofrer com seus antecessores, como os brinquedos Chucky, Billy (de Jogos Mortais) e Annabelle.

Cena do filme M3GAN. No GIF, há uma robô humanoide branca com cabelos loiros na altura do ombro vestindo um sobretudo bege com um laço azul, amarelo e vermelho na gola. O sobretudo tem mangas curtas. A robô usa camisa de manga longa listrada cinza e bege abaixo do sobretudo. No GIF, ela faz vários passos coreografados de uma dança repleta de acrobacias. Por fim, ela pega uma faca. O cenário é uma sala vermelha, com piso grafite.
A icônica dancinha que antecede um assassinato pode ganhar uma nova versão, já que uma sequência, intitulada de M3GAN 2.0, foi confirmada para Janeiro de 2025 (GIF: Universal Pictures)

O roteiro de M3GAN pode ser definido como suave, no mínimo. Quando esperamos ver um filme de terror, definitivamente não imaginamos acompanhar uma história como a desenvolvida por Wan e Cooper, que, inegavelmente, é muito mais cômica do que amedrontadora. As perseguições da boneca trazem a adrenalina e o medo conhecidos pelo gênero, mas o texto dos personagens quebra qualquer chance imersiva que a obra poderia oferecer. 

No entanto, considerando que a trama transita também para a ficção científica, é imprescindível enfatizar o bom trabalho da dupla de roteiristas no núcleo de engenheiros robóticos. Isso porque seria fácil  dificultar a compreensão dos diálogos por parte dos espectadores que não pertencem ao nicho. Os dois não se perdem em jargões técnicos e termos rebuscados, o que é extremamente recorrente em filmes com essa proposta tecnológica e científica.

Outro ponto que merece destaque é o conjunto de intérpretes. Allison Williams, que ganhou a merecida atenção com o ótimo Corra, dirigido por Jordan Peele, defende sua protagonista com total entrega em M3GAN. Ainda que não tenha um roteiro que a favoreça, ela abarca todas as singularidades que Gemma carrega: a vontade de não ser mãe, o desejo de alcançar sua estabilidade profissional e o luto pela perda de sua irmã e seu cunhado. Já Violet McGraw sabe muito bem como passear pelas camadas de sua personagem. A menina gera empatia no ato inicial e mostra vulnerabilidade, irrita nos insultos e agressões que tem com sua tia no segundo ato e faz o público admirar sua coragem no final da trama. Além das protagonistas, é essencial destacar o trabalho de Amie Donald como intérprete da boneca e Jenna Davis como dubladora, junto de Jen Brown (Tes), Kira Josephson (Ava) e Ronny Chieng (David). 

Cena do filme M3GAN. Na foto, há uma robô humanoide branca com cabelos loiros na altura do ombro vestindo um sobretudo bege com um laço azul, amarelo e vermelho na gola. O sobretudo tem mangas curtas. A robô usa camisa de manga longa listrada cinza e bege abaixo do sobretudo. Ela está no centro e, em ambos os seus lados, existem cortinas beges
Com arcos superficiais, a trama caiu no gosto do público e somou mais de 7,3 milhões de reais em bilheteria (Foto: Universal Pictures)

O longa usa e abusa da linguagem publicitária que demonstrou desde os teasers, trailers e divulgações, ancorando-se, principalmente, na cultura pop e no mar de possibilidades que pode ofertar quando memes, canções e referências de outros filmes são trazidos à narrativa. Contudo, a estratégia, promissora no quesito divulgação, torna-se cansativa e entediante para quem acompanha os desdobramentos da boneca-robô assassina. A sensação é que cada cena terá um elemento caricato ou de merchandising para que a trama se auto sustente em uma proposta engraçada e publicitária, como um ciclo que não para de se retroalimentar.

O fim, como é típico em obras de terror que almejam sequências, não é uma finalização amarrada e sem brechas. Muito pelo contrário, a conclusão mostra que Wan e Cooper têm planos para a nova bonequinha do terrir. M3GAN já foi feito para ter continuação e só expõe o que já mostra no começo: é uma história inovadora de um brinquedo matador que possui diversos caminhos narrativos quando se tem a internet como plano de fundo. Se o sonho de Wan era modernizar seu trabalho em uma proposta disruptiva, ele conseguiu. Mas sacrificar a narrativa de sua história realmente valeu o preço pago?

Entre risos e sustos, a produção cumpre algumas de suas promessas, como a de inovar o terrir e o slasher com foco em bonecos assassinos. Ao mesmo tempo, se perde na sua própria linguagem, linha narrativa e nos elementos externos que tenta incluir de forma totalmente exagerada. Aqui, o menos realmente seria mais. A sequência tem infinitas possibilidades de corrigir esses erros e uma delas é explorar ainda mais a tecnologia, as temáticas que envolvem a relação de pais e filhos com esse meio e os danos que o excesso pode causar não somente às crianças, mas também aos adultos. Além disso, M3GAN pode tomar cuidado com o excesso de humor e focar no medo que tanto atrai quem é fã de obras de terror, enfatizando ainda mais que uma boneca de aparência meiga também pode ser perigosa.

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