A fictícia Kubanacan dos anos 50 diz muito sobre o atual Brasil

À esquerda a atriz Nair Bello e, à direita, o ator Marcos Pasquim.
Afinal, quem é Esteban Maroto? A novela de 2003 com Nair Bello, Marcos Pasquim e grande elenco retorna na íntegra na Globoplay (Foto: Gianne Carvalho)

Rubens Júnior

Um presidente ligado ao exército, uma primeira-dama com um passado duvidoso, um parrudo de passado polêmico que faz oposição ao governo e a maior cantora do país, além de muito sensual, canta em espanhol. Quem lê pode imaginar que isso seja um texto sobre o Brasil de 2020, mas na verdade são as personagens principais de Kubanacan, uma novela de Carlos Lombardi exibida pela Rede Globo entre 2003 e 2004 que retornou com seus longevos e instigantes! 227 capítulos na íntegra na Globoplay. A trama de dezessete anos atrás pode servir como esperança para os dias atuais ou uma grande retrospectiva da nossa história recente… o melhor é que se pode rir sem culpa!

Kubanacan é uma pequena e fictícia ilha  com duas cidades principais que logo no início são surpreendidas por um mistério e um golpe palavra que ganhou força em nossa história recente! Em La Bendita, a capital da ilha, a primeira-dama Mercedes (Betty Lago) uma espécie de Evita Perón tupiniquim favorece o golpe do general Carlos Camacho (Humberto Martins) para ser o presidente da ilha. Mercedes e Camacho são amantes! Paralelo a isso, em Santiago, a costa da ilha e berço dos pescadores do país, um homem ferido, nu e sem memória cai do céu direto no mar.

Esteban (Marcos Pasquim) ao cair no mar é socorrido pelo casal Marisol (Danielle Winits) e Enrico (Vladimir Brichta) e, sem memória, não consegue entender porque é temido e desperta tanto desespero em algumas autoridade e na segurança do país. Numa dessas fugas da polícia, Esteban esbarra com Lola (Adriana Esteves) e a empurra num cercado para despistá-los e, com Luís Miguel ao fundo cantando No Me Platiques Más, nasce ali o casal mais irresistível das telenovelas brasileiras.

Da esquerda pra direita: A atriz Carolina Ferraz, o ator Marcos Pasquim e a atriz Adriana Esteves.
Ao estilo ‘Lombardiano’ de novelas há um intenso rodízio de pares romântico dividindo o público e abrindo possibilidades (Foto: Gianne Carvalho)

Lola é uma modesta dona de casa que nutre intimamente o sonho de ser uma grande cantora, entretanto ela esbarra nas condições da família que tanto se esforça para cuidar: sua mãe Dolores (Nair Bello) e a irmã Rubi (Carolina Ferraz). Rubi sonha em ser a primeira mulher do exército ‘Kubanaquenho’ e a mãe vive em pé de guerra com a vizinha Isabelita (Lolita Rodrigues) uma celebrada homenagem a amizade de Nair e Lolita, e por isso, sentimos imensamente a ausência de Hebe Camargo que completava esse trio. Por volta do capítulo 200, a cena das duas entrevadas, engessadas e de cabeças para baixo em suas respectivas camas, lado a lado, tentando pegar as agulhas no chão é um deleite maravilhoso. Clássico das antigas novelas das sete!

Com o texto ágil e os diálogos sarcásticos de Lombardi, as cenas abertas e sequências que exploram os cenários, os corpos sarados e parrudos e os decotes expostos todas as personagens se cruzam ocasionando muitas reviravoltas, romances relâmpagos, encontros e desencontros e encontros que as personagens acham que são reencontros… Marcos Pasquim dá vida a mais três personagens além de Esteban. Adriano Allende, Léon e Dark Esteban são figuras que vão sacudir, confundir a história e revirar todo o país que, junto com o público, vai tentar saber qual é a diferença de um para o outro.

Com tudo isso, a novela já propõe um estilo e um ritmo de seriado antes mesmo da febre dos streaming no país. Lombardi definiu Kubanacan como uma ‘novela-ônibus’, ou seja, independente da idade, gênero ou humor, quem embarcar na história vai conseguir entender e chegar ao ponto final. Mas até o derradeiro e explicativo último capítulo, a novela é permeada de um número imenso de participações especiais e de sátiras ao Brasil que fomos e que parece que não deixamos de ser.

À esquerda o ator Marcos Pasquim e, à direita, a atriz Regina Duarte
O número de participações especiais na trama ultrapassa ao número de atores/personagens fixos (Foto: Reprodução)

Perto do capítulo 100, uma participação que estremece a história e que prepara uma das viradas da trama é daquela que também estremeceu nosso país e trouxe uma virada no atual governo: Regina Duarte. A ex-secretária da cultura surge como Maria Félix, uma bandidona, que ao invés de ajudar o governo só atrapalha e que mesmo com tanta coisa bonita pra falar, some. Ou melhor, é gentilmente posta para fugir. Pelo menos na novela, a personagem consegue dar um grande encaminhamento para história…

As comparações com o Brasil atual não param por aí. Carlos Camacho sempre que não sabia lidar com os jornalistas, com a crise do país e com a abordagem dos mais pobres sempre convocava seu sócia Capacho (Marcelo Saback) para essas missões. Bem semelhante ao que o atual presidente do Brasil provocou no início de março deste ano ao colocar o humorista Carioca, caracterizado como o mesmo, para responder questões importantes quanto aos números do PIB que cresceu menos que os anos anteriores.

Por volta do capítulo 180, para segurar Adriano no país e ganhar tempo para achar alguma coisa que consiga o prender na terra das bananas para enfrentar as eleições com o tal General que ainda não sabia se queria se reeleger, Mercedes inventa que o país passa por uma pandemia e que todos estão fazendo quarentena e isolamento até a situação se resolver… Nisso, Kubanacan se distancia de nós! Adriano cumpre a quarentena, mesmo que falsa, e fixa-se no país por conta da sua paixão pelo… futebol. E fazendo o caminho contrário de muitos aqui no Brasil, Adriano abandona a política para se tornar um jogador de futebol.

A atriz Betty Lago
Betty Lago em uma das fases de Mercedes; Em Kubanacan ou no Brasil: ser mulher e estar envolvida em política é um grande desafio, e Mercedes sofre com isso (Foto: Reprodução)

Se Kubanacan foi o rompimento da parceria entre Carlos Lombardi e Wolf Maya, também foi a união de Adriana Esteves e Vladimir Brichta. A ascensão do “Macaulay Culkin brasileiro” Pedro Malta e de Danielle Winits, que fazia uma cantora próxima ao que é Anitta. A reinvenção de Carolina Ferraz, que vinha de tipos muito sensuais. E trazendo as melhores personagens das saudosas Nair Bello e Betty Lago que sempre foram as favoritas de Lombardi e justamente por isso, não poupou grandes cenas a elas.

Nair é confiada todo o humor da trama, seu tempo de respiração e comédia são primorosos; Dolores tem a cara de pau certa para a ambiguidade dos diálogos. Já Betty traz sua beleza de modelo internacional e sua total disponibilidade de atriz para as diversas fases que Mercedes passa. Desde a Era platinada, mãe dos pobres e classuda. Até a popular, traída e escorraçada que luta para se vingar do General que era visto como um mito para o povo… Além da própria trama, rever o trabalho de ambas é um presente que se ganha com o retorno da novela.

Para quem acha que Adriana Esteves só se encontra com o humor dois anos depois com Toma Lá Dá Cá, se engana. A modesta e humilde Lola é uma base para Adriana interpretar a conservadora Celinha do seriado de Miguel Falabella. Inclusive até os ‘tiques’ que Celinha tinha no seriado são importados de Lola. A maior diferença de Lola para Celinha, além do formato e da distância de cinquenta anos, é o despudor e a coragem que Lola vai ganhando ao descobrir-se cada vez mais apaixonada por Esteban. Lola rendeu a Adriana o segundo dos seus seis troféus dos Melhores do Ano do Domingão do Faustão.

A atriz Adriana Esteves em cena no centro do palco
Carlos Lombardi se inspirou num clipe da cantora Sade para criar Lola: a trama ambientada na década de 50, tinha o rádio como meio de comunicação; cinco anos depois, Adriana interpreta Dalva de Oliveira, também cantora de rádio (Foto: Reprodução)

Carlos Lombardi possui uma rara qualidade em saber dividir as atenções para todas as personagens de suas tramas o que faz que, mesmo com uma grande barriga no terço final, a história ainda continua nos trilhos. Uma das características das séries, inclusive, bem semelhante também com a última novela de Lombardi Pecado Mortal em 2013 na Record TV, que tinha um protagonista parrudo de passado misterioso, uma mulher-mãe solteira e que usava a sensualidade pra ganhar dinheiro, uma mocinha conservadora que ia mudando pelo amor ao parrudo e Betty Lago, mais uma vez, querendo vingança. E óbvio, os diálogos pouco didáticos e não mastigados que instigam quem assiste a buscar entender o futuro (literalmente!) da história, uma vez que, Marcos Pasquim vai se multiplicando em cena e nós não entendemos por quê.

Mas agora não só temos a oportunidade de entender isso como também dar o real valor que esta obra merece Kubanacan não deixa a desejar diante de qualquer série estrangeira, consegue ser até mais polêmica que a recente temporada de Dark. E também podemos rir de um país que cada vez mais se assemelha ao nosso. Ao mesmo tempo que isso nos deixa um tanto quanto desconfortável, podemos nos esperançar com os desfechos que a história traz, já que há muitas semelhanças com o Brasil, não custa sonhar que caia um homem do céu e este que homem venha a ser um… enfim! 

O que dá pra adiantar é que Carlos Lombardi brinca e arrisca com a máxima de Santo Agostinho de Hipona que dizia que além do passado, presente e futuro ainda existem: “o presente das coisas passadas, o presente dos presentes e o presente dos futuros”. Enquanto em nosso presente não há uma vacina, rir com o passado continua sendo o melhor remédio e embarcando nessa lúdica, mas tão real história, podemos ter esperanças para o futuro. Talvez viajar para Kubanacan possa nos ajudar entender muita coisa…

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