Entre polêmicas de transfobia e discurso de ódio, J. K. Rowling se revela mais nefasta que as figuras vilanescas que escreveu
Vitor Evangelista
Em 15 de julho de 2011, a cultura pop mudou para sempre. Era o fim da saga do bruxinho mais famoso do pedaço, a conclusão épica, que levou uma década desde o primeiro vestígio da magia de Hogwarts até o adeus choroso na Estação King’s Cross. 10 anos depois da exibição de Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 2, o mundo não enxerga a aura juvenil da história da mesma maneira que o fazia. E isso se deve a um vilão que os livros de fantasia não deram conta de desmascarar: sua própria autora.
Joanne Kathleen Rowling penou para publicar o primeiro volume da história infanto-juvenil que viria a se tornar o maior fenômeno cultural de sua década. Assinando com suas iniciais a fim de ‘mascarar’ a identidade feminina por trás de uma escrita voraz, envolvente e cheia de valor sentimental, J. K. ascendeu ao estrelato logo que o público passou a consumir suas criações como água no deserto. O mesmo valeu para as adaptações para as telonas, que viram grandes nomes do Cinema britânico escalados em figurinos escandalosos, perucas malucas e uma porção de varinhas e vassouras mágicas.
A saga Harry Potter ditou tendências no mercado, e a divisão do derradeiro livro de conclusão, As Relíquias da Morte, em dois filmes, foi seguida por todo mundo que queria bebericar nessa fonte de ouro. Pode-se até considerar que a narrativa seriada que a Marvel cultivou na década pós-HP foi tão frutífera por uma necessidade do público em acompanhar algo por anos, envelhecer junto daquelas criaturas que tanto amam. Fato é que, por muito tempo, Potter e Rowling eram sinônimo de sucesso e glória.
Após o fim da publicação dos livros em 2007, e das adaptações cinematográficas quatro anos depois, Rowling se dedicou à produção de conteúdos fora do Mundo Bruxo. The Casual Vacancy foi um sucesso de crítica, ganhou uma minissérie na BBC e mostrou ao mundo o tato da autora para uma trama adulta e completamente plantada na realidade. Na sequência, ela surpreendeu com a revelação de que publicava, sob o pseudônimo de Robert Galbraith, uma série de livros de suspense, que prontamente ganharam versões televisivas. No meio de toda essa evolução de sua gama como escritora, Rowling revelou que seu preconceito é mais perverso que qualquer Maldição Imperdoável.
Ignorando o alcance e responsabilidade que possui como figura pública, Rowling tweetou uma crítica ao termo “pessoas que menstruam” em um artigo, dizendo que a palavra correta para a frase seria “mulheres”, alegando que o órgão reprodutor é o que determina o “sexo” de alguém. Essa declaração foi recebida com revolta. O preconceito da britânica, apagando a vivência de pessoas trans desse grupo de indivíduos “que menstruam”, foi apenas a ponta do iceberg do que seria um festival de horrores, intolerância e um discurso de ódio que mata homens e mulheres trans todos os dias.
Orgulhosa, Rowling continuou disseminando esse discurso. Ela compartilhou uma loja com produtos transfóbicos nas suas redes, e, no olho do furacão, decidiu publicar um livro que fazia chacota da discussão. Troubled Blood, outro volume da saga publicada sob o nome de Robert Galbraith, trazia como vilão um assassino que se transvestia para cometer crimes contra mulheres. Em linhas gerais, o tema ressoado era uníssono: nunca confie em um homem de vestido. Mais uma vez massacrada, ainda foi descoberto que a inspiração para a assinatura da saga detetivesca veio de Robert Galbraith Heat, psiquiatra britânico que dedicou a vida a experimentos de conversão sexual, a “cura gay”. Rowling desconversou o assunto.
Se engana quem pensa que Harry Potter, sua obra famosérrima e com maior projeção cultural, não tenha reflexos desses preconceitos que só vieram à tona agora, dez anos depois do último adeus e em meio ao fracasso colossal que está sendo a recepção da continuação da saga do Mundo Bruxo, Animais Fantásticos. Série de filmes em andamento e que tinha como protagonista um agressor de mulheres, defendido por Rowling e demitido frente à indignação do público.
As ficções fantasiosas que Harry, Hermione e Rony viveram na Batalha contra Voldemort podem não ter tido reflexos diretos do ódio de sua criadora, mas a figura de Rowling foi gigantesca na criação dos filmes, atuando como produtora, dando pitaco em roteiro, respirando acima de suas criaturas, e, portanto, tornando impossível o ato de desassociá-la da obra. Em 2021, não há maneira de discutir Harry Potter sem sublinhar o preconceito da mulher que o criou.
Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 2 chegou aos cinemas na transição para a tecnologia 3D, e abusando dessa prática, seja nos dementadores que assustam os desavisados, pulando na tela do cinema ao redor de uma fantasmagórica Hogwarts, seja nas mortes de Voldemort e de Bellatrix. O roteiro de Steve Kloves abriu mão do fator mundano dos corpos frios e inertes batendo no chão, dando espaço para uma explosão de frangalhos, capturados com destreza pelo 3D, transportando quem assiste para o campo de batalha. Afinal, não tem recompensa melhor do que assistir uma imponente e enlutada Molly Weasley (você já reparou que é Julie Walters dando vida à matriarca?) vociferar “a minha filha não, sua vadia” para Bellatrix, e explodi-la em cinzas de um fogaréu de raiva que queima há anos, desde que Lestrange empurrou o primo Sirius Black pelo Portal na Ordem da Fênix.
Para as crianças que cresceram vendo os bruxinhos passarem do quadribol para a Cerveja Amanteigada para os namoricos do sexto filme até chegarem às Horcruxes que fecham a saga, o processo de crescimento e amadurecimento foi gradual e nada apressado. Então, desde dar adeus aos queridos membros da Ordem, até comemorar a destruição de cada parte da alma do Lorde das Trevas, tudo abraçava um lado emocional que despertava o sentimento de conclusão. Ora, a frase do pôster (“tudo acaba aqui”) já prenunciava o luto que estaria previsto para o fim de qualquer sessão do filme, o chororô, a negação, o sorriso alegre ao vermos o Trio de Ouro, 19 anos envelhecido, vendo seus filhos (nossos filhos, tamanho amor cultivado nessa década por eles) embarcarem para se aventurarem por conta.
Cada morte doía na alma, cada respiro final, cada feitiço ricocheteado. Tudo potencializa o amor que, uma década e dezenas de ataques transfóbicos depois, envelheceu como poção polissuco estragada. Diante das declarações da autora, atores que trabalharam nos filmes se pronunciaram, indo contra Rowling. Daniel Radcliffe, o Menino que Sobreviveu, publicou um texto reiterando que “mulheres trans são mulheres”. No mesmo artigo, Daniel reconheceu o papel fundamental que J. K. desempenhou em sua vida pessoal e profissional, mostrando a linha tênue entre ser grato pelas oportunidades oferecidas e crítico quanto às posições degradantes da mulher.
Radcliffe não esteve sozinho na defesa da população trans. Emma Watson, advogada ferrenha de temas sociais e ligados ao feminismo, condenou Rowling, dando orgulho para sua Hermione, uma mulher ciente de seus privilégios e disposta a lutar pelos menos favorecidos e pelos vulneráveis. Eddie Redmayne, protagonista dos recentes Animais Fantásticos, também se opôs à britânica, com quem tem muito contato por seu papel como roteirista das novas aventuras do Mundo Bruxo. Vale lembrar que Redmayne e a comunidade trans tem o histórico recente de Garota Dinamarquesa, longa que levou o ator, cis e heterossexual, até uma indicação ao Oscar, interpretando uma mulher trans, em mais uma das escalações hollywoodianas que optam pelo caricato ao invés do representativo.
Muito do status de lendário que o final de Harry Potter carrega vem da performance de Ralph Fiennes. O ator dá à Voldemort resiliência, pompa, arrogância e selvageria. O grande vilão da saga não é mero espectador do caos, ele maquina, se move, se vira nos trinta e consegue o que quer. Deathly Hallows – Part 2 pode muito bem ser considerado um filme de vilão, com foco na derrocada do bruxo maligno. Algo que a Marvel puxou para si quando colocou o Thanos de Josh Brolin no centro da resolução de sua história super-heróica. É preciso que os criadores não se prendam ao maniqueísmo para que grandes histórias se encerrem em tom louvável.
Maniqueísmo que virou regra na outra grande avalanche cultural dos anos 2010: a Guerra dos Tronos. A falta de planejamento e material base para a adaptação trucidou Game of Thrones, mas foi a balela da Guerra com o Rei da Noite que finalizou a matança. No brilhante capítulo que antecede a porradaria, a série da HBO cria o clima perfeito de despedidas e perdição. O ó do borogodó acontece no pós, quando quase ninguém bate as botas, e todo o misticismo do frio na barriga frente aos Caminhantes Brancos se esvai. No último filme de Harry Potter, o diretor David Yates dosa cenas de riso contagiado pela ansiedade com sequências ardilosas, onde assistimos, imponentes, figuras queridas mortas, sem qualquer resquício de felicidade.
Fred Weasley (James Phelps) morre, nos capando do tom brincalhão que ele contagiava. Tonks (Natalia Tena) e Lupin (David Thewlis) também, nos mostrando que os erros do passado podem e irão se repetir. O filme não dá trégua para ninguém, ceifando a vida de Severo Snape, papel magnânimo do imortal Alan Rickman (incompreendido para alguns, rato imundo para outros), justificando seus vis atos ao longo da década com a figura do amor eterno pela mãe de Harry. Mãe essa, carinhosa, amorosa, lúcida e benevolente. Sinônimos repetidos à exaustão nas figuras maternas que cercam o garoto. A já citada Molly Weasley figura no topo da lista, mas McGonagall (a dama Maggie Smith) e até Narcissa Malfoy (a eterna Helen McCrory, falecida em 2021) demonstram uma aptidão ímpar em amparar esse bruxo que cresceu órfão e destinado à profecias macabras.
O lado contrastante vem da constatação de, após viver (nas páginas e nas telas) cercado por mães amorosas e cuidadoras, Harry Potter tenha se revelado filho de uma mãe maldita. Uma mãe real, preconceituosa, transfóbica, que gestou ele em sua mente e realizou o parto à beira de páginas e páginas do manuscrito da Pedra Filosofal. “Você tem os olhos da sua mãe”, repetem dezenas de personagens ao longo de sete livros e oito filmes, denotando o valor simbólico e hereditário da bondade que Harry herdou de Lilian e, metalinguisticamente, de Joanne. 10 anos depois de Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 2 estrear e dar cabo à uma fenomenal narrativa infanto-juvenil que mudou o mundo, J. K. Rowling vai contra tudo que arquitetou em Hogwarts, fugindo do heroico senso de justiça e propósito que sua própria história carrega. Harry pode até compartilhar o verde dos olhos com a mãe que assinou os livros, mas por instância alguma compartilha qualquer outro de seus sórdidos traços.