Palavras são, para a autora de Harry Potter, sua inesgotável fonte de preconceito

A Maldição Cruciatus era usada para causar dor em suas vítimas para benefício de seu agressor (Foto: Reprodução)

Júlia Paes de Arruda

O sucesso da saga de Harry Potter deriva do fascínio dos fãs pelo mundo mágico. Essa admiração não faz parte apenas das aventuras dos personagens, como extravasa para além do papel. Não é nem necessária uma dose de Cerveja Amanteigada para observar o quanto das histórias de magia influencia a nossa realidade. 

A energia trazida pelo trio Harry, Hermione e Rony vendeu mais de 500 milhões de cópias no mundo inteiro. Ainda que já tenham se passado 20 anos do seu lançamento no Brasil, as aventuras de origem britânica se constitui como uma das bases sólidas da literatura mundial. 

A saga se baseia na trajetória de Harry Potter através mundo bruxo. Diferente da sua vida anônima na rua dos Alfeneiros nº 4, o garoto passa por momentos turbulentos, de muita luta e de muita coragem. Desde o começo, todo o percurso enfrentado pelos personagens estão baseados na luta da resistência, seja na busca da Pedra Filosofal chegando até à luta contra o mais poderoso bruxo das trevas. 

O primeiro livro chegou ao Brasil em abril de 2000 pela editora Rocco (Foto: Júlia Paes de Arruda)

Os primeiros indícios dos males da realidade na ficção são perceptíveis em A Câmara Secreta. Após o esconderijo de um dos fundadores de Hogwarts ser aberto, muitos dos alunos nascidos trouxas (com pais não bruxos) começam a ser petrificados. O fundador, da Sonserina, pregava uma filosofia segregacionista dentro da escola: apenas sangues-puros (filhos de bruxos) eram dignos de frequentar as aulas. A marginalização dos outros alunos já começa por seus nomes: sangues-ruins, considerados inferiores aos nascidos bruxos. A postura da família Malfoy é a que mais representa esse cenário, e a personagem que mais sofre esses julgamentos é Hermione Granger, uma alunas mais inteligentes da escola. 

Mas esses comentários preconceituosos não ficam restritos apenas às páginas amareladas. A autora J. K. Rowling foi alvo de críticas (inclusive dos próprios fãs) por causa de tuítes transfóbicos. A polêmica começou quando ela defendeu Maya Foster, uma pesquisadora que perdeu o emprego ao contrariar a legislação que permite pessoas trans se identificarem com outros gêneros. Essa situação pôs em xeque a legitimidade das posições de JK, vista como “fada sensata” por muitos seguidores por apoiar diversas causas sociais.

Ataques preconceituosos também surgiram quando Nona Dumezweni foi escalada como intérprete de Hermione na peça teatral de “Harry Potter e a Criança Amaldiçoada” (Foto: Reprodução)

Essa, infelizmente, não foi a única vez que a escritora postou tuítes transfóbicos. Depois desse, muitos argumentos problemáticos começaram a repercutir e muitas pessoas a taxaram como “cancelada”. Termo recente que surgiu com a chegada da cultura participativa, estudada pelo pesquisador Henry Jenkins. Esse objeto de pesquisa surgiu graças a convergência midiática, isto é, ao fluxo de conteúdos em várias plataformas, principalmente as das novas tecnologias. No caso de Harry Potter, a saga pode ser apreciada em filmes, livros, jogos, parques e até mesmo em pontos turísticos usados nas gravações no Reino Unido. 

Em virtude disso, a cultura participativa, ou cultura de fãs, passou a agir mais ativamente. Essa ação visionou a criação de sites derivados da franquia, como é o caso de Pottermore. Além disso, os mais aficionados puderam estar envolvidos com a chegada das redes sociais e se sentir mais próximos da história que tanto os encantou, dividindo experiências com usuários ao redor do mundo. 

Não se sabe ao certo quando começou a cultura do cancelamento, mas há indícios de que isso se relaciona com a mobilização da era #MeToo, que utilizou as redes sociais como forma de divulgar os casos de assédio e abuso sexual de Hollywood, em 2017. Com o passar dos anos, os usuários passaram a ser mais críticos e tolerar ainda menos comportamentos que atingem as minorias sociais. Os alvos das críticas, então, passam a ser “cancelados”. 

Muitos atores da saga como Rupert Grint (Rony Weasley), Evanna Lynch (Luna Lovegood) e Bonnie Wright (Gina Weasley) utilizaram suas redes sociais para contrariar os posicionamentos de Rowling (Foto: Reprodução)

Muitos seguidores ficaram desapontados com essas opiniões da autora, principalmente por sua franquia de maior sucesso ter tantos elementos da luta pela resistência. A Sala Precisa, apresentada em A Ordem da Fênix, foi um espaço utilizado para a luta armada. Os alunos descontentes com o autoritarismo de Dolores Umbridge se uniram para praticar feitiços, uma situação semelhante ao que acontece nos movimentos estudantis. 

Existem, ainda, reflexões sobre a manipulação da mídia na figura de Rita Skeeter, do jornal Profeta Diário. Para garantir sua glória pessoal e o desprestígio dos outros personagens, a “jornalista” articula as palavras de seus entrevistados. O exemplo mais clássico é em O Cálice de Fogo, quando divulga um suposto relacionamento entre Hermione e Harry, recém escolhido para o torneio tribruxo. Sendo que se tratava apenas de uma preocupação, ainda que disfarçada de torcida, de uma amiga aflita. 

Também em O Cálice de Fogo são discutidos os dogmas morais ao apresentar as Maldições Imperdoáveis, que são alegorias para o sistema de tortura bruxo. Em O Prisioneiro de Azkaban, é trazido à tona a precarização da prisão mágica, construída por paredes de ferro, sem janelas e no meio do oceano. Além disso, como forma de poupar custos, a fortaleza de Azkaban é circundada por dementadores, criaturas que sugam a felicidade de suas vítimas e causam sofrimento a quem está ao seu redor. Os presos estariam mais propensos a sofrer em suas próprias cabeças (por causa da agonia causada pelos dementadores) do que pelo próprio cárcere. 

Revolucionária, altruísta, corajosa e a mais inteligente das bruxas de sua idade: a verdadeira heroína da saga, na verdade, é Hermione (Gif: Reprodução)

Uma das cenas mais ilustrativas de luta pela resistência é apresentada apenas nos livros. Hermione, inconformada com a situação dos elfos domésticos, cria o Fundo de Apoio à Liberação dos Elfos, como forma de melhorar a qualidade de vida das criaturas. Por serem prisioneiros de seus senhores, eles vivem como escravos, usando trapos e sofrendo violentas repressões. Para serem livres, eles precisam ser presenteados com roupas, algo que a aluna não hesitava em fazer, até mesmo costurando-as. 

Outra cena que alude esse movimento, apesar de ser muito mais caótica e sanguinária, é a batalha final em As Relíquias da Morte. Alunos e professores, pais e outros personagens da saga dão sua própria vida numa guerra contra Voldemort e seus Comensais da Morte. Hogwarts acaba se tornando um campo minado, com escombros, cadáveres e sobreviventes. Para a alegria do público, a vitória é da resistência.

“As consequências de nossos atos são sempre tão complexas, tão diversas, que predizer o futuro é uma tarefa realmente difícil” (Foto: Reprodução)

Em Harry Potter e a Pedra Filosofal, livro aniversariante deste ano, o bruxinho conhece o Espelho de Ojesed, objeto que nos mostra quem realmente somos pelos nossos desejos mais íntimos. Através do processo de autoconsciência, o personagem que antes vivia à mercê de seus tios começa a desenvolver caráter próprio e embarcar num crescimento pessoal. A autora da saga devia muito bem seguir o próprio conselho já que, como diria Dumbledore, “são as nossas escolhas que revelam quem realmente somos, muito mais que nossas qualidades”.

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