“Eu Nunca…” ensinou como séries teens devem ser feitas

Maitreyi Ramakrishnan (Devi) teve o primeiro papel da sua carreira como protagonista em uma série da Netflix (Foto: Reprodução)

Natália Santos

Depois das polêmicas com o final da primeira temporada de 13 Reasons Why (2017) e da queda instantânea – e previsível – de Insatiable (2018), a Netflix USA deu uma segurada nas produções teens norte americanas. Nesse cenário fracassado, a empresa de streaming decidiu investir em novas vozes e expandir o território ao apostar em seriados para jovens feitos em outros países. Foi assim que nasceu a espanhola Elite (2018) e a britânica Sex Education (2019) – ambos seguindo a mesma fórmula de sexos e drogas.

Depois de muito bater a cabeça, eis o dia de glória ou melhor, a mulher da glória: Mindy Kaling, também conhecida como Kelly Kapoor de The Office (2005-2013). Já conhecida por ter escrito alguns roteiros de The Office e The Mindy Project (2012-2017), Mindy criou Eu Nunca… (Never Have I Ever), a nova série de comédia adolescente da Netflix. Lançada no final de abril, a nova produção tornou-se o programa mais popular do streaming em 10 países diferentes logo no primeiro final de semana de estreia. Um mês desde o lançamento já se passou e Eu Nunca… ainda ocupa o top10 de programas mais vistos em alguns países. 

Inspirado na juventude de Mindy Kaling, o seriado conta a história de Devi Vishwakumar (Maitreyi Ramakrishnan), uma jovem norte-americana e filha de indianos. Após um ano traumático, a adolescente de 15 anos volta para o colégio com alguns objetivos em mente como melhorar a sua popularidade e ter um “namorado gostoso” – palavras da Devi. A trama desenrola-se com a garota na busca por realizar seus desejos ao mesmo tempo em que tem que lidar com três problemáticas: o fato de não sentir-se indiana, os dramas adolescentes do colegial e o luto pela morte de seu pai. 

Eu Nunca…, que também contou com a co-criação de Lang Fisher (Brooklyn Nine-Nine e The Mindy Project), trata dos dramas adolescentes ao longo de seus 10 episódios com uma sensibilidade e humor jamais vistos nas telas. Com um discurso simples, o roteiro aprofunda-se em questionamentos pessoais não apenas da protagonista, mas também dos personagens periféricos, indo a fundo no iceberg pessoal de cada um. Ainda com os clichês das comédias românticas e muita referência à cultura pop, o novo sucesso da Netflix fala verdadeiramente sobre a adolescência de uma forma leve, consciente de seu impacto e memorável.

A cultura hindu, trabalhada fielmente em todos os episódios do seriado, recebe um episódio inteiramente para aprofundar o espectador em suas tradições (Foto: Reprodução)

Devi, que em poucos minutos do piloto já nos mostra ser uma personagem determinada e um pouco necessitada de atenção, vive a intersecção dos dois núcleos principais da história: o doméstico e o escolar. O núcleo doméstico é caracterizado majoritariamente pela cultura indiana, representada por Nalini (Poorna Jagannathan), mãe de Devi e uma mulher muito rígida, fortemente ligada com as tradições hindu; e Kamala (Richa Moorjani), a prima ‘exemplo da família’ que mudou-se para os Estados Unidos com o intuito de terminar o doutorado. Além disso, é em casa que a convivência com a ausência do pai se torna mais latente para Devi, fazendo com que ela tenha que bater de frente com o luto algumas vezes.

O núcleo escolar, por sua vez, é o foco dos dramas adolescentes. Totalmente oposto da casa, nele, Devi tem a companhia de suas melhores amigas Fabiola (Lee Rodriguez) e Eleanor (Ramona Young); Ben (Jaren Lewison), o rival que vive competindo por notas; e Paxton Hall-Yoshida (Darren Barnet), sua paixonite e garoto mais lindo – consequentemente, mais popular – do colégio.

A dualidade entre a cultura indiana e o american way of life é a aposta inicial do roteiro, entretanto, no decorrer dos episódios, a construção de Devi em busca da sua voz e da sua individualidade são afogadas pelo clichê das produções adolescentes no momento em que se passa a focar apenas no fato de que a garota não popular e nerd (ela mesma) está apaixonada pelo garoto mais popular do colégio (Paxton). Assim, a grande proposta de fazer a personagem principal se reconhecer e entender como norte-americana com descendência indiana vai por água abaixo. Em contrapartida, nesse mesmo contexto, também vale o questionamento: será que a própria Devi, ao se apaixonar, transformou sua vida em apenas conquistar Paxton, deixando seu desenvolvimento pessoal de lado?

As duas amigas de Devi são altamente diferentes: Eleanor (centro) é presidente do grupo de teatro enquanto Fabiola (direita) é capitã do grupo de robótica (Foto: Reprodução)

O seriado começa a andar quando o roteiro, mesmo focando nos dramas de Devi, abre espaço para os personagens paralelos criarem camadas e se desenvolverem. Todos, sem nenhuma exceção, passam por um processo de autoconhecimento, apresentando novas vontades e receios. Essa liberdade do roteiro favoreceu muito a trama como um todo, pois, de forma paralela e simultânea, muitas histórias envolventes acabaram por surgir, roubando atenção até dos dramas da personagem principal. De todas as construções, duas merecem atenção por serem o maior destaque da série: a prima Kamala e o popular Paxton Hall-Yoshida. 

O primeiro destaque é de Kamala que, até então a prima perfeita (e bonita), assume uma postura autêntica ao mostrar-se uma mulher decidida que não pretende ter um casamento indiano arranjado e sim, uma liberdade de atuação como indivíduo feminino numa cultura tradicional. O segundo é o Paxton que deixa de ser apenas um garoto popular e mostra que, como qualquer jovem do colegial, tem inseguranças. Ambos os processos de construção foram trabalhados com muito detalhe e sensibilidade, deixando bem claro aos espectadores que todas os questionamentos internos fazem da existência humana.

Essa construção de personagens é bem ousada, visto que, tradicionalmente nos filmes jovens, os personagens mais bonitos e populares são apresentados de forma rasa, sendo apenas pessoas perfeitas que devem servir de modelos para os outros. Isso, com o tempo, favorece a ideia juvenil de que ter inseguranças não é algo “normal”. Mas, não é bem assim que acontece em Eu Nunca…. Por aqui, todos os personagem são além de rostinhos bonitos!

Além da caracterização profunda de todos os personagens, outro fato que merece destaque em Eu Nunca… é o quesito diversidade e representatividade – fato de grande importância para Mindy. A própria personagem principal é descendente de indianos e possui, como melhores amigas, uma jovem negra e outra de ascendência leste-asiática. O rival é judeu. O garoto mais popular do colégio tem descendência japonesa e uma irmã com Síndrome de Down – cujo papel vai muito além de ser apenas a irmã mais nova.

Por trás das câmeras, a diversidade continua! Mindy buscou contratar roteiristas diversos que pudessem contribuir na produção de uma história recente com referências pop atuais e, ao mesmo tempo, refletissem acontecimentos reais, principalmente, nos momentos de reconhecimento pessoal de Devi como sendo uma grande miscigenação de povos e culturas. Essa demanda fez com que filhos de imigrantes compusessem a maior parte da equipe de roteiristas.

Com um humor sem exageros e uma trilha sonora pra lá de espetacular, Mindy Kaling e Lang Fisher ensinaram como se deve produzir conteúdo com e para adolescentes. Muito além da fórmula atual que se tem usado, Eu Nunca… trata das descobertas da juventude de forma natural e consciente, enfatizando e favorecendo a mensagem de que insegurança e imperfeições são o novo normal e descolado. A nova produção teen da Netflix fez tudo que os seriados anteriores morreram tentando fazer e, ainda por cima, deixou inúmeros ganchos para uma segunda temporada. Agora, só falta o streaming dar o espaço para uma segunda temporada.

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